Quando a sentença for fundada em erro de fato verificável do exame dos autos?

JURISreferência™: STJ. O pedido de rescisão de julgado fundado em erro de fato (artigo 966, inciso VIII, parágrafo 1º do CPC/2015) pressupõe que o erro, apurável mediante simples exame das provas constantes dos autos da ação originária, seja relevante para o julgamento da causa, e que o fato em questão não tenha sido objeto de controvérsia nem de pronunciamento judicial

Data: 22/11/2019

É firme nesta Corte o entendimento segundo o qual o pedido de rescisão de julgado fundado em erro de fato (art. 966, VIII, §1º, do CPC⁄2015) pressupõe que o erro, apurável mediante simples exame das provas constantes dos autos da ação originária, seja relevante para o julgamento da causa, e que o fato em questão não tenha sido objeto de controvérsia nem de pronunciamento judicial.

Nesse sentido:

AGRAVO INTERNO NA AÇÃO RESCISÓRIA. PROCESSUAL CIVIL. PREVIDÊNCIA PRIVADA. AUXÍLIO-CESTA-ALIMENTAÇÃO. TEMA PACIFICADO À ÉPOCA. ALTERAÇÃO DE ENTENDIMENTO. VIOLAÇÃO LITERAL DE LEI. AFASTAMENTO. SÚMULA Nº 343⁄STF. APLICAÇÃO. ERRO DE FATO. NÃO CONFIGURAÇÃO.
NATUREZA DA VERBA. EFETIVA DISCUSSÃO.
(...)
2. A ação rescisória fundada em erro de fato pressupõe que a decisão tenha admitido um fato inexistente ou tenha considerado inexistente um fato efetivamente ocorrido, mas, em quaisquer dos casos, é indispensável que não tenha havido controvérsia nem pronunciamento judicial sobre ele (art. 966, § 1º, do CPC⁄2015). Isso porque, se houve controvérsia na demanda primitiva, a hipótese é de erro de julgamento e não de erro de fato.
3. Na situação em exame, a interpretação feita pelo acórdão rescindendo da legislação aplicável ao caso concreto não foi desarrazoada ou teratológica, tanto que seguiu a orientação jurisprudencial pacífica da época, o que atrai a incidência da Súmula nº 343⁄STF. Ademais, houve a efetiva discussão sobre a natureza jurídica do auxílio-cesta-alimentação - se verba de caráter remuneratório ou indenizatório -, a afastar a alegação de erro de fato.
4. Agravo interno não provido.
(AgInt na AR 5.849⁄RS, Relator Ministro RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA, SEGUNDA SEÇÃO, julgado em 23⁄8⁄2017, DJe 19⁄10⁄2017.)

AGRAVO INTERNO NA AÇÃO RESCISÓRIA. RECURSO ESPECIAL. DESERÇÃO. ANTERIOR CONCESSÃO DE JUSTIÇA GRATUITA. NÃO COMPROVAÇÃO NO MOMENTO DE INTERPOSIÇÃO DO RECURSO. ALEGAÇÃO DE ERRO DE FATO. DECISÃO RESCINDENDA QUE OSTENTA EXPRESSO PRONUNCIAMENTO ACERCA DO FATO. AUSÊNCIA DE IMPUGNAÇÃO DO FUNDAMENTO DE INADMISSIBILIDADE DA AÇÃO RESCISÓRIA. AGRAVO DESPROVIDO.
1. A ação rescisória fundada em erro de fato pressupõe que a sentença rescindenda tenha admitido um fato inexistente, ou considerado inexistente um fato efetivamente ocorrido, sendo indispensável, em ambos os casos, que não tenha havido controvérsia nem pronunciamento judicial a esse respeito.
2. No caso dos autos, a alegada concessão do benefício da justiça gratuita foi justamente o objeto do Agravo em Recurso Especial e do Agravo Regimental cujo acórdão se pretende rescindir.
3. Agravo interno desprovido.
(AgInt na AR 5.463⁄RS, Rel. Ministro RAUL ARAÚJO, SEGUNDA SEÇÃO, julgado em 9⁄8⁄2017, DJe 18⁄8⁄2017.)

AgInt nos EDcl no REsp n. 1.703.685

Um dos institutos mais atingidos pelas mudanças instituídas pelo CPC-15 foi o da ação rescisória, pois além de ter sido excluída uma das hipóteses de rescindibilidade (a que era prevista no art. 485, VIII, do CPC-73 - houver fundamento para invalidar confissão, desistência ou transação, em que se baseou a sentença), as hipóteses remanescentes foram adequadas aos reclamos da doutrina e da jurisprudência, facilitando, sobremodo, o manejo da ação rescisória no dia a dia forense.

Apesar dessas adequações necessárias, a hipótese de cabimento que sempre gerou mais dúvida na praxe jurídica foi mantida, não sem uma modificação redacional do disposto normativo que a prevê, qual seja, o cabimento da ação rescisória por erro de fato, previsto no art. 966, VIII, do CPC-15 (equivalente ao art. 485, IX, do CPC-73).

Saliente-se, que muito embora a manutenção da referida hipótese de cabimento, a explicação legal sobre o que consistiria o erro de fato sofreu mudanças, o que pode acarretar uma interpretação de todo confusa do dispositivo, afastando-se daquilo que realmente poderá ensejar a propositura de uma ação rescisória fundamentada na existência de erro de fato.

Para uma melhor visualização do que aqui se está explanando, transcrevem-se os dispositivos do diploma processual atual e do revogado:

CPC-15 - Art. 966.  A decisão de mérito, transitada em julgado, pode ser rescindida quando:

[...]

VIII - for fundada em erro de fato verificável do exame dos autos.

§ 1o Há erro de fato quando a decisão rescindenda admitir fato inexistente ou quando considerar inexistente fato efetivamente ocorrido, sendo indispensável, em ambos os casos, que o fato não represente ponto controvertido sobre o qual o juiz deveria ter se pronunciado.

CPC-73 - Art. 485. A sentença de mérito, transitada em julgado, pode ser rescindida quando:

[...]

IX - fundada em erro de fato, resultante de atos ou de documentos da causa;

§ 1o Há erro, quando a sentença admitir um fato inexistente, ou quando considerar inexistente um fato efetivamente ocorrido.

§ 2o É indispensável, num como noutro caso, que não tenha havido controvérsia, nem pronunciamento judicial sobre o fato.

Ambos os dispositivos preceituam que haverá erro de fato quando: “a decisão rescindenda admitir fato inexistente ou quando considerar inexistente fato efetivamente ocorrido”. Até aí, nada de diferente.

Entretanto, analisando-se com mais cuidado a previsão normativa atual, poder-se-ia chegar à conclusão que, apesar de restar mantida a necessidade de que não tenha havido controvérsia sobre o fato (na decisão rescindenda), o novo diploma não afirma expressamente que não poderia ter havido pronunciamento judicial sobre o fato.

Na verdade, o grande problema enfrentado na legislação revogada era saber de que erro de fato cuidava o dispositivo, porque a lei não permitia que sobre o fato havido em erro tivesse o juiz se manifestado expressamente na decisão rescindenda.

Exigia-se, portanto, naquele diploma, que não tivesse havido pronunciamento judicial sobre o fato (admitido como ocorrido, mas inexistente ou tomado como inexistente, apesar de efetivamente ocorrido). Mas era justamente neste ponto que estava a maior dificuldade no manejo da ação rescisória. Se para o cabimento da ação rescisória não podia o juiz ter se manifestado expressamente sobre o fato, qual erro de fato daria ensejo à propositura de uma ação rescisória?

A dúvida se mostra flagrante, porque se o fato foi objeto de cognição mediante prova (ou seja, de valoração) no curso do raciocínio que o juiz empregou para formar a sua convicção, não cabe ação rescisória (daí a necessidade de o fato ser incontroverso). Em outras palavras: para a desconstituição do pronunciamento judicial que seja fruto de uma percepção equivocada do que consta dos autos, é necessário que o órgão julgador “não tenha percebido aquele elemento constante dos autos e, silenciando a seu respeito, tenha proferido decisão que com ele é incompatível”.[1]

Vale dizer: para ser cabível a ação rescisória o fato (tomado em erro) deve ter sido suposto no raciocínio judicial como mera etapa para o juiz chegar a uma conclusão, não podendo o juiz ter se manifestado expressamente sobre ele na decisão rescindenda, porque se o órgão julgador fez alusão ao elemento constante dos autos, mas, ao valorá-lo, chegou à conclusão errada (tomando como inexistente fato ocorrido, ou considerando existente um fato que não ocorreu) a decisão se mostrará injusta, mas não rescindível.[2]

Sobre o tema, a luz do diploma anterior, vaticinou Barbosa Moreira:

O que precisa haver é a incompatibilidade lógica entre a conclusão enunciada no dispositivo da sentença e a existência ou inexistência do fato, uma ou outra provada nos autos mas porventura não colhida pela percepção do juiz, que, ao decidir, pura e simplesmente saltou por sobre o ponto sem feri-lo. Se, ao contrário, o órgão judicial, errando na apreciação da prova, disse que decidia como decidiu porque o fato ocorrera (apesar de provada nos autos a não ocorrência), ou porque o fato não ocorrera (apesar de provada a ocorrência), não se configura o caso do inciso IX. A sentença, conquanto injusta, não será rescindível.[3]

A admissão da ação rescisória por fundamento em erro de fato devia preencher, portanto, os seguintes requisitos: a) que a sentença estivesse baseada em erro de fato; b) que esse erro pudesse ser apurado independentemente de produção de novas provas na ação rescisória; c) que sobre o fato não tivesse havido controvérsia entre as partes[4]; e d) que não tivesse havido pronunciamento judicial sobre o fato.

O atual diploma processual, por sua vez, não reproduz expressamente o § 2º do art. 485, do CPC-73, o que pode dar margem a interpretações de que agora, desde que caracterizado o erro de fato e de que não tenha havido controvérsia sobre o fato, a decisão rescindenda poderá ter manifestação expressa sobre o fato[5]. Essa interpretação, contudo, não parece a melhor. A ação rescisória não tem por objeto levar a um reexame de provas, não se justificando a sua utilização pelo órgão julgador ter apreciado mal a prova em que fundamentou a sua decisão.

Apesar de não ter sido reproduzido expressamente a ressalva de que não poderia ter havido pronunciamento judicial sobre o fato incontroverso na decisão rescindenda (§ 2º do art. 485, do CPC-73), não parece correta a interpretação que no CPC-15 passou a admitir o manejo da ação rescisória para simples reexame de provas ou da justiça da decisão em razão de uma análise equivocada dos fatos expressamente decididos. A ação rescisória nunca prestou para essa finalidade e o novo diploma não criou essa nova hipótese de rescindibilidade (o que poderia ter feito, mas não o fez).

O art. 966, § 1º, do CPC-15, ao conceituar o que é o erro de fato e elencar os pressupostos legais para a sua caracterização, não deixou brecha para se imaginar uma nova hipótese de rescindibilidade (reexame de prova). Para a correta propositura de ação rescisória fundamentada em erro de fato, não pode ter havido pronunciamento judicial sobre o fato da sentença rescindenda, o que se extrai, sem muito esforço, da parte final do referido dispositivo (o fato não represente ponto controvertido sobre o qual o juiz deveria ter se pronunciado).

Sendo o ponto incontroverso, diante do que consta dos autos, no comum dos casos o correto seria que o juiz percebesse que o fato realmente ocorreu (ou que não ocorreu), mas se por um equívoco de percepção, o juiz não se deu conta do ponto incontroverso (daí não ter se manifestado sobre ele), o supondo equivocadamente no seu raciocínio, caracterizada está a hipótese de rescindibilidade por erro de fato (desde que, por óbvio, haja uma incompatibilidade lógica entre a conclusão enunciada no dispositivo da decisão rescindenda e a existência ou inexistência do fato, apta a ensejar a modificação do julgado).

Percebe-se, que apesar das necessárias modificações redacionais e das adequações procedimentais instituídas pelo CPC-15 no atual sistema processual, a ação rescisória que tenha por fundamento um erro de fato não sofreu mudanças significativas. Os pressupostos necessários para a sua propositura permanecem os mesmos antes defendidos em doutrina e na jurisprudência, com a manutenção da impossibilidade de o fato havido em erro ter sido decidido expressamente na decisão rescindenda. Interpretar de modo diverso enseja a crença de que o CPC-15 institui uma nova hipótese de rescindibilidade: o reexame de provas (justiça da decisão), o que não ocorreu.

Embora o novo reclame um olhar renovado, nem sempre esse olhar deve procurar mudanças de forma desenfreada. O CPC-15 deve ser seguido em sua inteireza, devendo a doutrina constranger epistemologicamente para que o novo diploma não se torne letra morta, como infelizmente vem se mostrando durante esse um ano e cinco meses de vigência, mas no caso da ação rescisória fundada em erro de fato, não há nada de novo a ser encontrado e se admitir uma ação rescisória para reexame de provas causaria, em verdade, uma instabilidade jurídica muito maior, que não se coaduna com o modelo comparticipativo de processo, com a garantia da razoável duração do processo, tampouco com a necessária segurança jurídica buscada pelo atual diploma processual.


Notas e Referências:

[1] CÂMARA, Alexandre Freitas. O novo processo civil brasileiro. 2ª ed. São Paulo: Atlas, 2016, p. 490.

[2] Idem. ibidem. p. 491.

[3] MOREIRA, José Carlos Barbosa. Comentários ao código de processo civil. 11ª ed. v. V. Rio de Janeiro: Forense, 2004, p. 151-152.

[4] A inexistência de controvérsia sobre o fato pode se dar de três formas distintas: a) se o fato não foi alegado por nenhuma das partes; b) se uma admitiu (confessou) a alegação da outra; e c) se uma simplesmente se absteve de contestar a alegação da outra. MOREIRA, José Carlos Barbosa. Comentários ao código de processo civil. 11ª ed. v. V. Rio de Janeiro: Forense, 2004, p. 149.

[5] Na 13ª edição de seu Curso de direito processual civil: meios de impugnação às decisões judiciais e processos nos tribunais. 13ª ed. Salvador: Juspodivm, 2016, Fredie Didier e Leonardo Carneiro da Cunha suprimiram dos pressupostos necessários à configuração da hipótese de rescindibilidade por erro de fato “que sobre o erro de fato não tenha havido ‘pronunciamento judicial’”, constante das edições anteriores com base no CPC-73.


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Quando for fundada em erro de fato verificável no exame dos autos?

DECISÃO FUNDADA EM ERRO DE FATO VERIFICÁVEL DO EXAME DOS AUTOS. INDEFERIMENTO DA INICIAL. - Erro de fato: ocorre quando a decisão rescindenda admitir fato inexistente ou quando considerar inexistente fato efetivamente ocorrido. O erro de fato constitui erro de percepção e não de critério interpretativo do juiz.

O que é erro de fato na sentença?

O erro de fato que autoriza a ação rescisória é o que se verifica quando a decisão leva em consideração fato inexistente nos autos ou desconsidera fato neles inconteste.

O que é fundada em erro de fato?

IX – fundada em erro de fato, resultante de atos ou de documentos da causa; § 1.º Há erro, quando a sentença admitir um fato inexistente, ou quando considerar inexistente um fato efetivamente ocorrido.

O que é o erro de fato e quais seus pressupostos?

"Há erro de fato quando a decisão rescindenda admitir fato inexistente ou quando considerar inexistente fato efetivamente ocorrido, sendo indispensável, em ambos os casos, que o fato não represente ponto controvertido sobre o qual o juiz deveria ter se pronunciado" (grifos do autor).