A nobreza feudal concordou facilmente com a centralização política por que

Por onde come�ar uma hist�ria dos Direitos Humanos? Isto depende do ponto de vista que se adote. Se for uma hist�ria filos�fica, teremos que recuar a algumas de suas remotas fontes na antig�idade cl�ssica, no m�nimo at� ao estoicismo grego, l� pelos s�culos II ou III antes de Cristo, e a C�cero e Di�genes, na antiga Roma. Se for uma hist�ria religiosa, � poss�vel encetar a caminhada, pelo menos no ocidente, a partir de certas passagens do Serm�o da Montanha. Se for uma hist�ria pol�tica, j� podemos iniciar com algumas das no��es embutidas na Magna Charta Libertatum, que o rei ingl�s Jo�o Sem Terra foi obrigado a acatar em 1.215. Ou podemos optar por uma hist�ria social - melhor dizendo, por um m�todo de estudo que procure compreender como, e por quais motivos reais ou velados, as diversas for�as sociais interferiram, em cada momento, no sentido de impulsionar, retardar ou, de algum modo, modificar o desenvolvimento e a efetividade pr�tica dos Direitos Humanos na sociedade. Este �ltimo modo de abordagem pode tornar-se muito rico e interessante, pois, ao conduzir �s conex�es entre as leis e as condi��es hist�rico-sociais concretas que induziram ao seu surgimento, termina tamb�m por integrar, ao menos, aquelas refer�ncias mais indispens�veis - econ�micas, pol�ticas, filos�ficas, religiosas etc. - que estiveram na g�nese dessas condi��es. Ademais, proporciona a vantagem adicional de j� situar o ponto de partida de nossa investiga��o no s�culo XVIII ou, no m�ximo, em certos antecedentes hist�ricos da baixa Idade M�dia - o que conv�m � concis�o e permite transitar de modo menos �rduo da no��o moderna para a no��o contempor�nea dos Direitos Humanos. Essa escolha metodol�gica nos remete, desde logo, a uma quest�o � primeira vista intrigante. Trata-se do seguinte: se boa parte do esp�rito geral e das aspira��es que comp�em o conjunto de no��es do que hoje chamamos de Direitos Humanos � muito antiga, por qu� durante alguns mil�nios produziu efeitos sociais t�o escassos, s� exercendo influ�ncia fragment�ria ou transit�ria na vida real e quotidiana da maioria dos humanos? Por qu� essas no��es s� come�aram a vingar precisamente no final do s�culo dezoito, precisamente em alguns pa�ses do hemisf�rio ocidental, na forma e conte�do espec�ficos que assumiram? O senso comum tem uma explica��o � m�o: antes daquela �poca, a Humanidade "n�o estava preparada" para aquelas belas id�ias. Como assim? Parece claro que os oprimidos, os explorados e humilhados de todos os tempos sempre estiveram "preparados" para obter liberdade, igualdade, respeito - quase nunca deixaram de aspirar ou de lutar por isso. Uma outra parte da Humanidade - os que foram, s�o, ou pensam que poder�o vir a ser benefici�rios da explora��o, opress�o ou intoler�ncia que exercem - � que parece estar sempre "despreparada" para aceitar que aquela maioria alcance tudo isso. Outra resposta, do mesmo senso comum, poderia ser: faltavam aqueles "grandes homens", com "grandes id�ias", que s� no s�culo dezoito surgiram para "inspirar" ou "conduzir" as pessoas. Este argumento tamb�m n�o resiste � verifica��o. Em quase todas as �pocas, em quase todos os pa�ses, quando reuniram-se as condi��es hist�ricas adequadas, surgiram os fil�sofos, os l�deres, os antecipadores, os profetas e os dirigentes necess�rios a seu tempo, al�m de umas outras tantas "grandes mentes" que sonharam, planejaram ou tentaram colocar em pr�tica utopias imposs�veis ou historicamente prematuras. N�o resta d�vida de que as id�ias inovadoras, usualmente sintetizadas de modo mais apurado pelos intelectuais a partir do patrim�nio cultural da Humanidade e da viv�ncia social concreta desses pensadores, s�o muito importantes, ainda mais se oferecerem sa�das mais ou menos adequadas a inquieta��es sociais que a sua �poca j� suscitou ou est� em vias de suscitar. Mas n�o basta a simples exist�ncia de id�ias transformadoras para que o mundo se transforme. � necess�rio, como se sabe, que as id�ias conquistem um grande n�mero de seguidores dispostos a coloc�-las em pr�tica, mesmo correndo riscos, o que s� acontecer� se eles se convencerem, mesmo de modo algo intuitivo, de que essas id�ias v�o na mesma dire��o, tornam mais clara ou organizam a luta que j� travam por seus interesses, necessidades ou aspira��es coletivas. Depois, ser� preciso ainda que estejamos diante de condi��es sociais e hist�ricas que favore�am ou n�o impossibilitem a mudan�a pretendida e que, al�m disso, os interessados consigam desenvolver os meios apropriados para vencer a resist�ncia, n�o raro feroz, dos que se op�em � transforma��o. � muito dif�cil combinarem-se todas essas condi��es. E, no entanto, elas estavam reunidas, de modo mais ou menos acentuado, em alguns pa�ses europeus no final do s�culo XVIII, particularmente na Fran�a de Lu�s XVI. O qu� pretendiam e por quais causas lutavam aqueles franceses que, em nome dos Direitos Humanos, fizeram uma revolu��o t�o sangrenta? Contra o qu� lutavam ? A resposta pode come�ar pela �ltima das perguntas: lutavam contra o feudalismo, ou o que restava dele. N�o � prop�sito investigar aqui o feudalismo mas, para a compreens�o dos prim�rdios da hist�ria social dos Direitos Humanos, ser� �til trazer � mem�ria seus tra�os mais gerais.

Bar�es, bispos, servos da gleba Como se sabe, o feudalismo foi um certo modo de organiza��o da sociedade e da produ��o social que dominou, durante um per�odo imenso da hist�ria, toda a Europa(1). Sua primeira caracter�stica a que conv�m chamar a aten��o � que baseava-se numa r�gida estratifica��o social fundada no princ�pio do privil�gio de nascimento. Da� derivavam amarras sobre todas as atividades e sobre toda a vida das pessoas. Na da fase �urea(2) do feudalismo essas amarras eram muito fortes, e decorriam do pr�prio modo como a economia da sociedade estava organizada. Como a terra era praticamente a �nica fonte de sobreviv�ncia e riqueza - e conservada como bem "fora do com�rcio" - seu controle por nobres e membros da alta hierarquia da Igreja garantia-lhes um imenso dom�nio pol�tico, jur�dico e ideol�gico sobre a popula��o. O "feudo", dom�nio territorial de um "senhor" (geralmente bar�o ou bispo), consistia quase sempre de uma pequena aldeia de camponeses e suas �reas circundantes, �s vezes muito vastas(3). Seus pastos e florestas eram de uso comum, mas as terras ar�veis estavam divididas entre aquelas cujos produtos e rendimentos pertenciam ao senhor (geralmente um ter�o do total) e as restantes, que os senhores permitiam aos camponeses usarem para sua sobreviv�ncia. Em "contrapartida", os camponeses e seus familiares eram for�ados � "corv�ia"(4) durante dois ou tr�s dias da semana nas terras do senhor, deviam pagar impostos ao rei, d�zimos � Igreja, uma infinidade de taxas em moeda ou em produtos de suas colheitas particulares, prestar servi�os dom�sticos na casa ou castelo do senhor e nas igrejas, lutar nas guerras quando convocados pelo senhor, al�m de curvar-se a uma s�rie de obriga��es, proibi��es e atitudes de vassalagem - em algumas regi�es at� infames, como submeter-se ao direito de "pernada"(5). Se a terra mudasse de senhor, o campon�s era transferido junto (era "servo da gleba"), como as �reas de cultivo, bois, carro��es e outros bens m�veis, im�veis ou semoventes. Sua condi��o social diferia dos antigos escravos em dois aspectos principais: n�o podia ser vendido separado da terra (exceto na R�ssia e em partes da Pol�nia) e tinha direito a uma esp�cie de usufruto oneroso � fra��o de solo ar�vel que o senhor lhe concedia (direito nem sempre respeitado, quando convinha ao titular do feudo...). Uma economia assim organizada conseguia produzir muito poucos excedentes para a troca externa ao feudo, limitando-se praticamente � subsist�ncia. Dos mercadores das cidades compravam sal, artefatos de ferro e pouca coisa mais. A mobilidade social estava perto de ser nula. Nas m�s colheitas, fomes horrorosas se alastravam - menos, � claro, entre a nobreza e o alto clero, que estocavam gr�os e, em tese, deveriam prestar assist�ncia crist� aos famintos, inv�lidos, vi�vas e �rf�os. As cidades, � �poca muito poucas e quase sempre pequenas, viviam � sombra dos senhores feudais. Os mestres artes�os urbanos, em suas oficinas dom�sticas, com um ou dois aprendizes, ou dois ou tr�s empregados (geralmente ex-aprendizes que n�o conseguiram se estabelecer), estavam rigidamente organizados em "corpora��es de of�cios" que regulamentavam tudo, em min�cias, desde o modo de produzir cada artigo, seu pre�o, at� interditar o exerc�cio da profiss�o aos n�o autorizados. A onipresente ideologia religiosa, condenava a usura como pecaminosa, o lucro como imoral, a ambi��o de enriquecer como certeza de dana��o infernal(6). Vejam o exemplo de um julgamento ocorrido em Boston, em 1.639: "Est� havendo um julgamento; um tal de Robert Keayne (...) � acusado de crime hediondo: teve mais de seis pence de lucro sobre um xelim, ganho esse considerado ultrajante. A corte debate se deve excomung�-lo pelo pecado cometido, mas, em vista de seu passado sem manchas, finalmente se abranda e lhe d� a liberdade com uma multa de duzentas libras"(7). Mas esse � um retrato est�tico e esquem�tico da economia feudal cl�ssica, �til para efeito de contraste. Pois no ventre do feudalismo, e apesar dele, as for�as econ�micas e sociais de sua futura destrui��o germinavam e se debatiam. Para come�ar, a classe dos camponeses servos, larga maioria da popula��o, malgrado gera��es de resignada imobilidade (todos os domingos era-lhe recordado nos serm�es que o poder tinha origem divina), volta e meia se revoltava, �s vezes aos milhares e de modo muito violento. Em algumas ocasi�es, os servos arrancavam concess�es importantes aos senhores, outras vezes eram massacrados. Mas na primeira onda de fome, esqueciam o medo e recome�avam tudo. At� acontecimentos inesperados podiam contribuir para reacender essas irrup��es.

A "Peste Negra" Em 1347, navios mercantes italianos vindos do Mar Negro, onde costumavam comprar tecidos e peles transportadas da Mong�lia e da China pela Rota da Seda, trouxeram ao porto de G�nova passageiros indesej�veis nos seus por�es: ratos, com pulgas contaminadas por uma mol�stia terr�vel, que logo contaminaram todos os ratos da cidade, e os ratos das cidades vizinhas e dos pa�ses vizinhos. � medida em que a popula��o de roedores ia morrendo, as pulgas passaram a se alimentar do sangue das pessoas, que come�aram a morrer aos milhares e, em seguida, aos milh�es. Durante os quatro anos mais agudos desse primeiro surto, a Peste Negra (em suas variantes bub�nica, pneum�nica e septic�mica) ceifou a vida de mais de vinte milh�es de pessoas em toda a Europa - cerca de um ter�o da popula��o do continente - n�o poupando nenhum pa�s e quase nenhuma comunidade, do Mediterr�neo � Escandin�via, de Londres a Moscou. Matou, em n�meros absolutos, mais seres humanos do que toda a primeira guerra mundial. A epidemia s� se deteve nas f�mbrias do oceano �rtico, onde os ratos n�o sobrevivem ao frio extremo, mas outros surtos tornaram a peste um flagelo peri�dico da Europa at� o s�culo XVIII. As "explica��es" para seu desenvolvimento iam desde os movimentos dos astros, at� a puni��o divina pelos pecados da humanidade. Contudo, contraditoriamente, como s�o �s vezes os grandes acontecimentos que se abatem sobre as sociedades, a Peste Negra terminou tamb�m por entrar para a Hist�ria como um importante fator de impulsionamento da ...liberdade. O acentuado despovoamento(8) da Europa ocidental provocado pelas gadanhadas da peste tornou subitamente escassa a oferta de trabalhadores - e os camponeses sobreviventes descobriram que, de repente, sua for�a havia crescido na luta secular que travavam contra os senhores. "O senhor tamb�m sabia. Os que se haviam recusado a comutar a presta��o de trabalho a que os servos estavam obrigados mostraram-se mais dispostos ainda a conservar o mesmo estado de coisas. Os que haviam trocado o trabalho do servo por um pagamento em dinheiro verificaram que os sal�rios dos trabalhadores no campo se elevavam e que os embolsos que recebiam compravam um volume de trabalho cada vez menor. O pre�o do trabalho alugado aumentou em 50%, em rela��o ao que fora antes da Peste Negra. Foi em v�o que se emitiram proclama��es amea�ando com penalidades os senhores que pagassem mais ou os trabalhadores, pastores e lavradores que exigissem mais do que os sal�rios predominantes antes da peste. A marcha das for�as econ�micas n�o podia ser sustada pelas leis governamentais do per�odo. Era for�oso o choque entre os senhores da terra e os trabalhadores da terra. Estes haviam experimentado as vantagens da liberdade e isso lhes despertara o apetite para mais. No passado, o �dio provocado pela opress�o esmagadora dera violentas revoltas de servos. Mas eram apenas explos�es locais, facilmente dominadas, apesar de sua f�ria. As revoltas dos camponeses do s�culo XIV foram diferentes. A escassez de m�o de obra dera aos trabalhadores agr�colas uma posi��o forte, despertando neles um sentimento de poder. Numa s�rie de levantes em toda a Europa ocidental, os camponeses utilizaram esse poder numa tentativa de conquistar pela for�a as concess�es que n�o podiam obter - ou conservar - de outro modo"(9). Al�m disso, a peste, ao atingir indistintamente nobres, padres e plebeus, enfraqueceu no povo comum a cren�a, ou temor, de infalibilidade dos sacerdotes, ou de que eles e os nobres estivessem sob prote��o divina. A Revolta dos Camponeses na Inglaterra, em 1381, pelo que teve de furor e car�ter massivo, exemplifica como se processavam as insurrei��es daquele per�odo. Rebelados contra um novo imposto opressivo, e exigindo o fim do instituto jur�dico de servid�o � terra, 10.000 camponeses armados de foices, machados e espadas, marcharam at� os muros de Londres. Levavam � frente, como espantalhos macabros, estacas onde haviam espetado algumas cabe�as decepadas de propriet�rios odiados por sua opress�o(10). Terminaram violentamente reprimidos. Mas essa seq��ncia de convuls�es iniciadas na segunda metade do s�culo XIV, renovada periodicamente em conseq��ncia de guerras intermin�veis entre as cabe�as coroadas da Europa, que desgra�avam a vida da classe camponesa, e ondas de fome que tornavam manifesta e intoler�vel a situa��o de privil�gios da nobreza e do alto clero, abriu a �poca dos grandes abalos sociais que, ao longo dos pr�ximos quatrocentos anos, terminariam por deitar por terra o edif�cio do feudalismo europeu. A sociedade europ�ia n�o conseguia ser mais a mesma de antes, os reis, nobres e padres n�o conseguiam mais dominar como antes. Entenda-se bem: a grande Peste Negra, � claro, n�o determinou o decl�nio do feudalismo, sequer o iniciou. Mas suas dr�sticas consequ�ncias demogr�ficas imediatas acabaram, surpreendentemente, propiciando condi��es sociais que favoreceram o recrudescimento das lutas dos servos contra os senhores feudais - estas sim, a longo prazo, decisivas.

Novos atores entram em cena Al�m dos camponeses periodicamente rebelados, uma outra for�a social h� tempos vinha, lentamente, ganhando f�lego. Essa for�a, como a hist�ria iria demonstrar, n�o estava para brincadeiras: a burguesia. "Burgueses", inicialmente, era a denomina��o gen�rica dos habitantes dos "burgos", pequenas cidades que surgiam nos cruzamentos de rotas comerciais, ou ao longo dessas rotas, �s vezes fortificadas para proteger as caravanas contra os in�meros bandos de salteadores que proliferavam nas estradas naquele tempo. De modo esper�vel, � medida em que iam crescendo passaram a aglomerar toda sorte de pessoas "livres", isto �, que n�o estavam mais submetidas �s glebas dos bar�es e bispos, porque haviam comprado essa liberdade, ou porque haviam fugido de seus senhores rurais, ou ainda porque vinham de fam�lias que sempre haviam se dedicado exclusivamente a atividades artesanais ou mercantis; ou eram funcion�rios administrativos, advogados ou outros profissionais que n�o residiam h� muito tempo nos feudos; ou ainda uma massa disforme de adultos sem ocupa��o definida ou constante e crian�as � busca de sobreviv�ncia como aprendizes nas corpora��es de of�cios, servi�ais diversos ou, simplesmente, mendigos. Com o tempo, aos poucos, uma parte desses citadinos conseguiu acumular algum capital nas pr�ticas do com�rcio, da usura (apesar da condena��o da Igreja aos empr�stimos com juros) e da explora��o de for�a de trabalho alheia (ainda em pequena escala), empreitando a produ��o de artefatos de uso corrente, artigos de luxo para consumo da nobreza ou equipamentos para as guerras intermitentes, vindo a constituir uma pequena elite economicamente independente que, por n�o se ocupar de trabalhos bra�ais e ostentar um padr�o de vida superior, discernia-se da massa dos habitantes dos burgos e das cidades maiores(11). Nos s�culos XV e XVI, esta classe burguesa stricto sensu j� era muito ativa e influente na maioria das cidades da Europa ocidental. Emprestava dinheiro a reis, a mercadores, a senhores feudais em dificuldades, fornecia assessores competentes para a administra��o do Estado mon�rquico, e estava envolvida em todos os neg�cios florescentes da �poca, como bancos, constru��o naval, abertura de manufaturas e explora��o dos "novos mundos" incorporados pelas grandes descobertas mar�timas. Nos s�culos XVII a XVIII, a burguesia j� estava bastante diversificada em v�rios extratos, desde os mestres artes�os que expandiram suas oficinas contratando muitos empregados e montando manufaturas, at� grandes (para a �poca) industriais e banqueiros, e constitu�a o que podia ser chamado de uma "classe m�dia" - no sentido de setores intermedi�rios entre a aristocracia e a grande massa do povo. Decididamente, a sociedade feudal n�o combinava com as possibilidades que os burgueses viam diante de si. Os la�os senhoriais e a ideologia que os legitimavam eram camisas de for�a para a expans�o do mercado, crescimento do trabalho assalariado, florescimento da produ��o de mercadorias - enfim, para o maior enriquecimento desses empreendedores plebeus das cidades. Essa nova classe social tinha, pois, boas raz�es para ver com olhos de interesse as reivindica��es dos camponeses, porque tamb�m sentia, a seu modo, as amarras do feudalismo - embora, por conveni�ncia de seus neg�cios, adotasse sempre a cautelosa posi��o de manter-se � dist�ncia dessas agita��es sociais (mais tarde, a mesma conveni�ncia dos neg�cios a induziria a mudar de atitude). Esse conjunto de contradi��es internas ao modo de produ��o feudal foi seu elemento din�mico de transforma��o. Os camponeses continuaram se rebelando, o com�rcio seguiu se desenvolvendo, as cidades crescendo, conquistando autonomia e se diversificando socialmente, a burguesia se fortalecendo, a nobreza e o clero perdendo terreno (ao menos no plano econ�mico). "A velha organiza��o feudal rompeu-se sob a press�o de for�as econ�micas que n�o podiam ser controladas. Em meados do s�culo XV, na maior parte da Europa ocidental, os arrendamentos pagos em dinheiro haviam substitu�do o trabalho servil e, al�m disso, muitos camponeses haviam conquistado a emancipa��o completa.(...) O trabalhador agr�cola passou a ser algo mais do que um burro de carga. Podia levantar a cabe�a com um ar de dignidade. (...) Transa��es que haviam sido raras na sociedade feudal tornaram-se habituais. Em lugares onde a terra, at� ent�o, s� era cedida ou adquirida � base de servi�os m�tuos, surgiu uma nova concep��o de propriedade agr�ria. Grande n�mero de camponeses teve liberdade de se movimentar e vender ou legar a terra, embora tivessem que pagar certa import�ncia para isso. (...) O fato de que a terra fosse assim comprada, vendida e trocada livremente, como qualquer outra mercadoria, determinou o fim do antigo mundo feudal. For�as atuando no sentido de modificar a situa��o varriam toda a Europa ocidental, dando-lhes uma face nova"(12). As navega��es intercontinentais, a descoberta do Novo Mundo, os avan�os da mec�nica, do conhecimento cient�fico e da tecnologia, o crescimento da popula��o e da demanda, a Reforma, o Renascimento, o triunfo do absolutismo etc. (tudo isto � uma hist�ria muito conhecida dos leitores) - todo o "clima" medieval seguiu se transformando incessantemente, em compasso com as transforma��es econ�micas que se processavam e que minavam as bases de exist�ncia do modo de produ��o feudal e do correspondente modo de se organizar a sociedade. "Dos 22 milh�es de camponeses existentes na Fran�a em 1.700, havia apenas um milh�o de servos, no sentido antigo"(13). Um novo e revolucion�rio modo de produ��o, de organiza��o social e de dom�nio do mundo, das coisas e das pessoas forcejava seu pr�prio parto. Ficou conhecido com o nome de: capitalismo.

Tempestade no horizonte vis�vel Entre tornar-se dominante na esfera das rela��es econ�micas e assumir efetivamente o dom�nio pol�tico da sociedade pode haver, �s vezes, uma dist�ncia muito grande. Contudo, a autonomia da pol�tica em rela��o � economia real de um pa�s pode existir - mas at� certo ponto, e certamente n�o ao ponto de constituir-se por muito tempo em obst�culo ao livre desenvolvimento daquelas rela��es econ�micas j� triunfantes. Isto parece hoje muito evidente a todos. Mas era essa a situa��o em que ainda se encontrava a maioria dos pa�ses da Europa no final do s�culo XVIII, com exce��o da Inglaterra e, talvez, da Holanda. As rela��es capitalistas fervilhavam por quase toda parte do continente, a burguesia tresandava otimismo quanto a seu futuro, a ideologia do progresso cont�nuo era sua m�sica. Contudo, por mais obsoletos que parecessem face � economia existente, muitos (n�o mais todos) dos la�os pol�ticos, jur�dicos, culturais e ideol�gicos do velho feudalismo persistiam como fator de atraso. Reis, nobres e padres teimavam em ver-se ainda como h� quinhentos anos, como h� mil anos. Resistiam tenazmente ao desaparecimento da velha estrutura pol�tica feudal - marcada, repitamos, pela estratifica��o social baseada no privil�gio de nascimento. Embora pudessem ser encontradas na Europa continental setecentista diferen�as decorrentes de desenvolvimentos e tradi��es pr�prias de cada pa�s, podemos tomar o exemplo, razoavelmente representativo, da Fran�a �s v�speras da Revolu��o de 1789. Persistia ainda um divisor de �guas hist�rico em sua popula��o, separando os servos (como vimos, em redu��o cont�nua) das pessoas livres. Estas �ltimas, por sua vez, continuavam divididas, de modo geral, em tr�s estamentos sociais (chamados, � �poca, de "estados"): primeiro estado (clero), segundo estado (nobreza) e terceiro estado (plebeus livres em geral). "Pode-se simbolizar esta estrutura pol�tica por uma pir�mide. Cada uma das ordens (clero, nobreza, terceiro estado) � a express�o de uma fun��o no seio da sociedade. O clero � encarregado do culto e das atividades que lhe est�o ligadas no esp�rito da �poca (ensino, sa�de, assist�ncia etc.); � nobreza incumbe a obriga��o de administra��o e de defesa do grupo social; o terceiro estado ocupar-se-� da vida econ�mica da sociedade. O que � preciso notar � que cada uma destas categorias pol�ticas � regida por regras de direito espec�ficas. O clero tem suas pr�prias jurisdi��es, tal como a nobreza; o imposto n�o � devido nem pelo clero, nem pela nobreza, enquanto � pesadamente cobrado sobre os rendimentos do terceiro estado"(14). Aten��o para o "detalhe": "...o terceiro estado ocupar-se-� da vida econ�mica da sociedade..." Mas quem era exatamente o terceiro estado? Resposta: era quase toda a popula��o livre, excetuados nobres e padres: os camponeses, o pequeno e incipiente proletariado urbano(15), os artes�os, os lojistas, os professores, os advogados, os funcion�rios p�blicos, todos os profissionais e produtores de todos os ramos, os mercadores, enfim, todos que trabalhavam, produziam ou dirigiam a economia, a� inclu�da a burguesia propriamente dita. O primeiro e o segundo estados eram parasit�rios, mas detinham todo o poder pol�tico e aferravam-se aos resqu�cios de seus privil�gios econ�micos. "Certamente a servid�o havia desaparecido dos dom�nios reais desde o edito de 1779, e s� aparecendo como uma sobreviv�ncia anacr�nica. Preocupados, por�m, diante da eros�o monet�ria gerada pela infla��o, em obter um rendimento melhor de seus recursos fundi�rios, para continuar a manter seu 'status', numerosos propriet�rios nobres mandaram efetuar, entre 1780 e 1789, a revis�o de seus registros no tombo, pois este cont�m a enumera��o das declara��es dos particulares referentes a cada senhoria e indica as terras que haviam sido concedidas pelo senhor e os direitos a ela vinculados. As cartas patentes de 20 de agosto de 1.786 p�em a revis�o na conta...dos devedores. Os especialistas em direito feudal, contratados para essas revis�es, se empenhavam ainda mais porque o propriet�rio lhes concedia, �s vezes, at� a metade do ganho adicional propiciado por seu trabalho. (...) Toda contesta��o ia aos tribunais, cuja jurisprud�ncia era favor�vel aos senhores. Os direitos feudais (seria melhor dizer 'senhoriais') eram diversos - o censo, taxa em dinheiro, leve por ter sido fixado h� muito tempo; a jugada, paga em esp�cie, representava muitas vezes um ter�o da safra de cereais; os servi�os pessoais ou reais; os lods em produtos..."(16) Pode-se at� compreender porque os senhores dispunham-se a pagar honor�rios t�o pesados a esses advogados especialistas em direito feudal, com a esperan�a de reviver privil�gios: "As 400 mil pessoas aproximadamente que, entre os 23 milh�es de franceses, formavam a nobreza (...) estavam bastante seguras. Elas gozavam de consider�veis privil�gios, inclusive de isen��o de v�rios impostos (n�o de tantos quanto o clero, mais bem organizado) e do direito de receber tributos feudais.(...) Economicamente, as preocupa��es dos nobres n�o eram absolutamente desprez�veis. Guerreiros, e n�o profissionais ou empres�rios por nascimento e tradi��o - os nobres eram at� mesmo formalmente impedidos de exercer um of�cio ou profiss�o - eles dependiam da rendas de suas propriedades ou, se pertencessem � minoria privilegiada de grandes nobres ou cortes�os, de casamentos milion�rios, pens�es, presentes e sinecuras da corte. Mas os gastos que exigia o status de nobre eram grandes e cada vez maiores, e suas rendas ca�am - j� que eram raramente administradores inteligentes de suas fortunas, se � que de alguma forma as conseguiam administrar. A infla��o tendia a reduzir o valor de rendas fixas, como alugu�is"(17). No que se refere aos impostos e taxas, a camada superior do terceiro estado, rica e com rela��es �teis no governo, descobria os caminhos para escapar ao seu pagamento, o que n�o acontecia com o restante da popula��o, particularmente nas �reas rurais. Alexis de Tocqueville, o pensador liberal franc�s do s�culo XIX, faz a seguinte descri��o das consequ�ncias das antigas taxas e servi�os feudais, muitas das quais persistiam mesmo em rela��o aos camponeses j� libertos da servid�o � gleba: "Imagine o leitor um campon�s franc�s do s�culo XVIII...apaixonadamente enamorado pela terra, a ponto de gastar todas as suas economias para adquiri-la. ...Para completar essa compra, ele tem primeiro de pagar um imposto. ...Finalmente a terra � dele; seu cora��o est� nela enterrado, com as sementes que semeia. Mas novamente seus vizinhos o chamam do arado, obrigam-no a trabalhar para eles sem pagamento. Tenta defender sua nascente planta��o contra as manobras dos senhores da terra; estes novamente o impedem. Quando ele cruza o rio, esperam-no para cobrar uma taxa. Encontra-os no mercado, onde lhe vendem o direito de vender seus produtos; e quando, de volta para casa, ele deseja usar o restante do trigo para sua pr�pria alimenta��o...n�o pode toc�-lo enquanto n�o o tiver mo�do no moinho e cozido no forno dos mesmos senhores de terras. Uma parte da renda de sua pequena propriedade � gasta em pagar taxas a esses senhores...Tudo o que fizer, encontra sempre esses vizinhos em seu caminho...e quando estes desaparecem, surgem outros com as negras vestes da Igreja, para levar o lucro l�quido das colheitas...A destrui��o de parte das institui��es da Idade M�dia tornou cem vezes mais odiosa a parte que ainda sobrevivia"(18). Contudo, deve ser anotado que a estrutura pol�tico-social tradicional e anacr�nica j� havia se tornado, no final do s�culo XVIII, bastante complexa. A dial�tica dos interesses sociais contradit�rios n�o era mais t�o simples como fora h� s�culos. No primeiro Estado, havia diferen�as sociais evidentes entre o alto clero enobrecido (bispos, abades, c�negos), senhor de imensas por��es de terras(19), e o baixo clero, que muitas vezes vivia pobremente e em contato �ntimo com os camponeses das aldeias. No segundo Estado j� se podia divisar ao menos tr�s camadas: a restrita nobreza cortes�, benefici�ria de pens�es e outras benesses reais, muito favorecida pela intimidade com os neg�cios da monarquia; os senhores feudais tradicionais, que dependiam de rendimentos fundi�rios e ainda detinham, provavelmente, uma quinta parte do reino(20); e at� burgueses enobrecidos, a chamada "nobreza de toga"(21). No terceiro Estado, a situa��o era ainda mais diversificada: j� se configurava uma alta burguesia, formada por banqueiros, industriais, grandes comerciantes, fornecedores do ex�rcito etc., partid�ria de mudan�as moderadas e que dava mostras de contentar-se com uma monarquia constitucional; uma pequena burguesia urbana j� muito numerosa (viria a se tornar a principal base do radicalismo revolucion�rio), que abrangia artes�os independentes, advogados, m�dicos, alfaiates, barbeiros, pequenos lojistas etc.; uma pequena burguesia rural, constitu�da pela fra��o crescente de camponeses com terras, livres da servid�o � gleba, mas ainda oprimidos pela sobreviv�ncia de taxas senhoriais e outras obriga��es remanescentes do feudalismo; uma massa heterog�nea (ainda minorit�ria, mas em expans�o) de trabalhadores assalariados na cidade e no campo(22); al�m de uma multid�o de desempregados, mendigos, andarilhos, monges itinerantes, pessoas sem ocupa��o definida ou que exerciam atividades cambiantes ou sazonais. De modo geral, podia-se observar, com o desenvolvimento do capitalismo, um deslocamento progressivo - nem sempre muito claro, mas no s�culo XVIII j� preponderante - da antiga estratifica��o social por ordens e estamentos, baseada no privil�gio (ou azar...) de nascimento, para uma diferencia��o em que contava mais a inser��o de classe, isto �, a posi��o efetivamente ocupada pelas pessoas na economia: burgueses (enobrecidos ou plebeus), propriet�rios de terras (bispos, bar�es e at� alguns burgueses), o proletariado incipiente (rural e urbano), a multifacetada pequena burguesia, e assim por diante. � claro que, desde h� muito, existiam as classes sociais, e elas lutavam entre si por interesses contradit�rios, luta decisiva para o decl�nio econ�mico-social do feudalismo; mas seus contornos e, acima de tudo, sua consci�ncia social, eram "nublados" pela divis�o tradicional e antes muito est�tica baseada no nascimento. Portanto, a eleva��o das rela��es sociais de produ��o capitalistas � posi��o de categoria dominante nas rela��es humanas, estava, por assim dizer, clarificando a din�mica social num sentido novo, sobrepondo-se progressivamente ao status nobili�rquico, clerical, plebeu livre ou plebeu servil. Essa tensa conforma��o estrutural da sociedade francesa portava ainda um fator adicional de agravamento: a persist�ncia anacr�nica do absolutismo mon�rquico. Entre os s�culos XV e XVII, quando os reis europeus travaram lutas bem sucedidas contra a antiga dispers�o do poder entre os senhores feudais, a burguesia deu-lhes apoio, pois isso representava certo al�vio dos la�os senhoriais sobre suas atividades econ�micas nas cidades e no com�rcio entre as regi�es de cada pa�s. V�rios desses reis absolutistas notabilizaram-se como "d�spotas esclarecidos"(23), sens�veis �s renova��es que estavam em curso, estimulando a economia e as artes. Mas, na segunda metade do s�culo XVIII, essa utilidade inicial do absolutismo se esva�ra para a burguesia pois, sendo j� uma classe muito forte, ele passou a significar apenas sua eterna marginaliza��o do poder pol�tico. Na Fran�a, a absor��o de poderes absolutos pela figura do rei havia atingido seu �pice no in�cio do s�culo XVIII, durante o reinado do "rei sol", Lu�s XIV (a ele se atribu�a a frase reveladora: "L'Etat c'est moi"). Desde ent�o, o grosso da aristocracia, (excetuado apenas o pequeno c�rculo da nobreza cortes�), foi esvaziado de fun��es pol�ticas e era mantido afastado das decis�es importantes do Estado. Mas nunca renunciou � luta para recuperar sua antiga influ�ncia nos neg�cios p�blicos: "A feudalidade foi justificada pela conquista, pois os nobres eram sa�dos dos conquistadores germ�nicos, constitu�dos, pelo direito das armas, senhores dos galo-romanos reduzidos � servid�o. A aristocracia � anterior � monarquia, uma vez que os reis, originalmente, eram eleitos. Abeberando-se nesse arsenal ideol�gico (...), a aristocracia, tanto a da espada quanto a togada, conduziu, durante todo o curso do s�culo XVIII, o assalto contra a autoridade real"(24). Embora a monarquia representasse a garantia dos privil�gios sociais da nobreza, estava h� muito tempo estabelecido entre ambas um contencioso cheio de riscos: at� id�ias liberais come�avam a ter aceita��o entre alguns nobres. Assim, a Fran�a sob Lu�s XVI era "...sob v�rios aspectos, a mais t�pica das velhas e aristocr�ticas monarquias absolutas da Europa. Em outras palavras, o conflito entre a estrutura oficial e os interesses estabelecidos do velho regime e as novas for�as sociais ascendentes era mais agudo na Fran�a do que em outras partes"(25). Esse quadro todo logo seria piorado dramaticamente por uma s�ria crise econ�mica e pol�tica, que lan�aria as massas populares numa atividade contestat�ria sem precedentes e possibilitaria o florescimento dos porta-vozes revolucion�rios da burguesia - que, ent�o, passaria a falar em nome de todo o terceiro estado. O abade liberal Emmanuel de Siey�s, membro de uma loja ma��nica e impulsionador do movimento constitucionalista, desferiu, meses antes do in�cio da grande tempestade, seu c�lebre panfleto revolucion�rio "Qu� � o Terceiro Estado?", em que pregava abertamente a ruptura : "O qu� � o terceiro estado ? Tudo. O qu� tem sido ele, at� agora, na ordem pol�tica? Nada. (...) O qu� � preciso para que uma na��o subsista e prospere? Trabalhos particulares e fun��es p�blicas. (...) Os trabalhos (particulares) que sustentam a sociedade...sobre quem recaem? Sobre o Terceiro Estado. As fun��es p�blicas (...) seria sup�rfluo percorr�-las detalhadamente para mostrar que o Terceiro Estado integra os dezenove vig�simos dela, com a diferen�a de que se ocupa de tudo o que � verdadeiramente penoso, de todos os cuidados que ordem privilegiada recusa. Somente os postos lucrativos e honor�ficos s�o ocupados pelos membros da ordem privilegiada. (...) A pretensa utilidade de ordens privilegiadas para o servi�o p�blico n�o passa de uma quimera; pois tudo o que h� de dif�cil nesse servi�o � desempenhado pelo Terceiro Estado. Sem os privilegiados, os cargos superiores seriam infinitamente melhor preenchidos. (...) Se se suprimissem as ordens privilegiadas, isso n�o diminuiria em nada a na��o; pelo contr�rio, lhe acrescentaria. Assim, o qu� � o Terceiro Estado? Tudo, mas um tudo entravado e oprimido. O que seria ele sem as ordens de privil�gios? Tudo, mas um tudo livre e florescente. Nada pode funcionar sem ele, as coisas iriam infinitamente melhor sem os outros.(...) O Terceiro Estado abrange, pois, tudo o que pertence � na��o. E tudo o que n�o � Terceiro Estado n�o pode ser olhado como da na��o. (...) N�o h�, no total, duzentos mil privilegiados das duas primeiras ordens. Comparem este n�mero com o de 25 a 26 milh�es de almas (...). Mas � dif�cil convencer as pessoas que s� enxergam seus pr�prios interesses. (...) A nobreza deixou de ser esta monstruosa realidade feudal que podia oprimir impunemente; hoje ela n�o passa de uma sombra que, em v�o, tenta assustar toda a na��o. (...) � tempo de tomar um partido e dizer, com toda for�a, o que � verdadeiro e justo. (...) Ent�o � por esp�rito de igualdade que se pronunciou contra o Terceiro Estado a exclus�o mais desonrosa de todos os postos, de todos os lugares melhores? (...) As leis que, pelo menos, deveriam estar livres de parcialidade, tamb�m se mostram c�mplices dos privilegiados. Para quem parecem ter sido feitas? Para os privilegiados. Contra quem? Contra o povo. (...) S� h� uma forma de acabar com as diferen�as que se produzem com respeito � Constitui��o. N�o � aos not�veis que se deve recorrer, � � pr�pria na��o. Se precisamos de Constitui��o, devemos faz�-la. S� a na��o tem direito de faz�-la. (...) Ent�o, � o Terceiro Estado que deve fazer os maiores esfor�os e dar os primeiros passos para a restaura��o nacional. (...) As circunst�ncias n�o permitem que se seja covarde. Trata-se de avan�ar ou de recuar. (...) V�o dizer que o Terceiro Estado sozinho n�o pode formar os Estados gerais. Ainda bem ! Ele compor� uma Assembl�ia Nacional. (...) Os representantes do Terceiro Estado ter�o, incontestavelmente, a procura��o dos 25 ou 26 milh�es de indiv�duos que comp�em a na��o, excetuando-se cerca de 200 mil nobres ou padres. Isso j� basta para que tenham o t�tulo de Assembl�ia Nacional. V�o deliberar, pois, sem nenhuma dificuldade, pela na��o inteira (...)"(26). O grau de ousadia, pr�prio de uma vanguarda tomando posi��o para a ofensiva, era indicativo de que aqueles que estavam prestes a dirigir a demoli��o revolucion�ria do ancien r�gime estavam seguros de j� contarem com um "grande n�mero de seguidores dispostos a levar suas id�ias � pr�tica"... Qu� id�ias eram essas ?

Os pensadores da revolu��o Eram id�ias �s vezes contradit�rias entre si, como costumam ser os grandes movimentos de id�ias, mas quase sempre muito subversivas para a �poca, isto �, muito apropriadas aos que ansiavam por transforma��es jur�dico-pol�ticas correspondentes �s transforma��es econ�micas e sociais que j� iam em fase avan�ada. Antes de mais nada, o europeu culto do s�culo XVIII - nobre ou burgu�s - estava imerso num clima intelectual de franco triunfo do racionalismo. Isso n�o � de se estranhar, se considerarmos o bem sucedido ataque que, no m�nimo h� uns duzentos anos, vinha sendo feito de forma cada vez mais atrevida � vis�o de mundo com que a religi�o (o pensamento m�gico em geral) legitimava o feudalismo. Cop�rnico causou sacrossanto estupor ao concluir que a Terra n�o era o centro do Universo, mas apenas um pequeno planeta, dentre outros, que orbitava em torno do sol. Para os dias de hoje, isso parece de obviedade trivial, mas no come�o do s�culo XVI representou uma colis�o com mais de mil anos de cren�a geoc�ntrica, segundo a qual o homem, por ter sido criado � imagem e semelhan�a de Deus, ocupava o centro do mundo. Galileu Galilei, al�m de comprovar o heliocentrismo com seu telesc�pio, lan�ou as bases do m�todo cient�fico, fundado em observa��o e demonstra��o experimental, e n�o em dogmas. A circunavega��o do globo por Fern�o de Magalh�es liquidou de vez com o mito da Terra plana. Newton revolucionou a f�sica e a matem�tica. Descartes desenvolveu o m�todo l�gico, como na matem�tica, para a busca da verdade. At� a Igreja foi abalada estruturalmente pelas fraturas protestantes, que defendiam a comunica��o direta do fiel com Deus, desmascaravam a degenera��o do alto clero e legitimavam o lucro como bom e moral. Com tantos antecedentes, o s�culo XVIII tinha todas as raz�es para ver na raz�o a pot�ncia finalmente capaz de entender a natureza e a sociedade, explicar a pr�pria religi�o, libertar o homem dos seus terrores seculares, desvendar todos os mist�rios, reformar tudo. Os fil�sofos do Iluminismo fizeram uma audaciosa constru��o intelectual nesse norte: Hobbes, Locke, Voltaire, Montesquieu, Diderot, Condorcet, Rousseau - s� para mencionar algumas das grandes mentes que, malgrado tantas diferen�as e diverg�ncias entre si(27), descontru�ram metodicamente as estruturas da vis�o social de mundo do feudalismo. A Raz�o humana, sua ilimitada capacidade de desvendar, de iluminar os fen�menos (da� Iluminismo), poderia moldar o mundo em bases novas, tudo poderia ser revisto e reformado por seu filtro. A realidade circundante dava-lhes essas certezas: tudo, de fato, se revolucionava, por obra da intelig�ncia e da engenhosidade. A inven��o do tear mec�nico e da m�quina a vapor, as numerosas aplica��es pr�ticas das descobertas cient�ficas, o alargamento das fronteiras do conhecimento (e da geografia) a expans�o da produtividade, do controle t�cnico sobre a natureza, a emerg�ncia do esp�rito de aventura, a r�pida expans�o das trocas transcontinentais - nada mais permanecia im�vel, ao contr�rio das desoladoras certezas "eternas" e est�ticas da Idade M�dia. "Pois, de fato, o 'Iluminismo', a convic��o no progresso do conhecimento humano, na racionalidade, na riqueza e no controle sobre a natureza - de que estava profundamente imbu�do o s�culo XVIII - derivou sua for�a primordialmente do evidente progresso da produ��o, do com�rcio e da racionalidade econ�mica e cient�fica que se acreditava estar associada a ambos"(28). Houve um n�cleo din�mico de id�ias, no terreno da filosofia, de que a burguesia se serviu - seletivamente, como se ver� - com not�vel efici�ncia para seus prop�sitos revolucion�rios na Fran�a, devido �s consequ�ncias pol�ticas imediatas que dele poderia extrair: o jusnaturalismo, particularmente o jusnaturalismo de base racional. A concep��o da exist�ncia de um Direito aproximadamente equiparado � no��o de Justi�a(29), em forte conex�o com a moral e, portanto, mais perfeito do que o direito objetivamente encontr�vel nas sociedades humanas, era muito antiga entre os pensadores, deitando ra�zes em fil�sofos da Gr�cia antiga. Sua g�nese hel�nica foi primordialmente laica, na medida em que esse Direito superior decorreria da pr�pria natureza, ou da observa��o do equil�brio a ela inerente, e n�o dos deuses. Na Idade M�dia, ao retomar Arist�teles, S�o Tom�s de Aquino buscou atualizar para o pensamento crist�o a id�ia desse direito natural (jus naturae), esfor�ando-se para demonstrar sua compatibilidade com a f�, uma vez que a natureza seria obra de cria��o divina. Mas logo o direito natural seria dessacralizado pelo Iluminismo, substituindo-se progressivamente a natureza em geral (isto �, o mundo f�sico ou social externo) pela id�ia de natureza humana e, especificamente, pela raz�o humana, fonte interior do conhecimento. O direito, portanto, poderia ser descoberto/produzido pelo esp�rito humano, desde que se procedesse � sua investiga��o com os rigores do racioc�nio, configurando-se ent�o como express�o moral de possibilidades inalien�veis, universais e eternas do ser humano (os direitos naturais humanos). Essa raz�o triunfante busca a liberdade, estado primordial do homem; a natureza mostra que os homens nascem iguais, por isso todo privil�gio � antinatural; as pessoas podem estabelecer as cl�usulas do contrato que institui a sociedade; o indiv�duo, portador de direitos imanentes (porque naturais), deve ser protegido do poder absoluto pela reparti��o do poder; a intoler�ncia religiosa deve ser abolida, o Estado deve ser governado de acordo com a vontade geral, por isso as leis devem ser as mesmas para todos - por a� vai. "Com Rousseau, cuja influ�ncia foi enorme, a filosofia se radicalizou. Montesquieu continuava ligado �s prerrogativas dos parlamentares, tendo sido um deles; Voltaire era um burgu�s abastado, indiferente � mis�ria popular. Rousseau vai mais longe, atacando a pr�pria sociedade. Tudo o que o homem tem de bom vem da natureza; todo o mal, da sociedade que o alienou e corrompeu. Mesmo n�o se podendo voltar ao estado de natureza, ao menos � poss�vel dela se aproximar. Uma boa constitui��o ser�, portanto, a que garantir, na medida do poss�vel, a liberdade e a igualdade primitivas"(30). � preciso ler essa brev�ssima not�cia hist�rica com cautelas adequadas: as elabora��es concernentes ao direito natural foram certamente complexas, m�ltiplas, contradit�rias, muitas vezes contempor�neas entre si - a ponto de constituir empreitada de resultado incerto a tentativa de reuni-las numa s� "escola filos�fica"(31). Mas aprofundar a investiga��o sobre o jusnaturalismo seria tarefa para outro estudo. Cabe mais, aqui, anotar o papel social que efetivamente desempenhou, os reflexos que concretamente suscitou na pr�xis social. Neste sentido, � f�cil perceber porque essa constru��o intelectual de um direito natural de base racional, prevalecente entre os grandes pensadores do s�culo das luzes, foi socialmente apropriada com muita facilidade pela burguesia revolucion�ria como arma ideol�gica de combate. Bastava extrair da� consequ�ncias pol�ticas muito l�gicas, de uso imediato: a raz�o recusa-se a continuar acatando que mais de vinte milh�es de franceses prossigam governados por uma minoria que nada produz, e que mant�m uma vida de privil�gios unicamente pelo privil�gio de nascimento. Se a id�ia de privil�gio n�o pode ser acolhida pela raz�o, h� que se construir uma sociedade constitu�da por indiv�duos livres e iguais, cidad�os (n�o s�ditos), todos sujeitos de direitos, submetidos a leis comuns para todos, clamando a Na��o a soberania para si, n�o mais para um monarca detentor de poder absoluto. Por isso, "...se o terceiro estado � tudo na sociedade...", a raz�o recha�a, naturalmente, que ele continue sendo "nada" na pol�tica e no poder. "A teoria do direito natural inverte pois, completamente, a 'pir�mide feudal'. Em lugar de rela��es verticais (hierarquizadas) instaurar-se-�o rela��es horizontais (comunidade nascida do contrato social). Deixar� de haver ordens correspondendo a fun��es separadas e desiguais em direitos, n�o haver� sen�o homens livres e iguais, quer dizer, cidad�os. Deixar� de haver rei no cume da pir�mide para governar os homens, mas a express�o da sua vontade geral, isto �, a lei"(32). A burguesia e, particularmente a burguesia francesa, finalmente encontrava um poderoso arsenal ideol�gico para refutar a vis�o social de mundo do passado. Se na filosofia estava acontecendo esse turbilh�o, uma nova e correlata esfera do conhecimento tamb�m reivindicava � �poca o status de ci�ncia: a economia pol�tica, que dava nascimento te�rico ao liberalismo econ�mico. Na Fran�a, os chamados economistas fisiocratas (Fran�ois Quesnay, o Marqu�s de Mirabeau, o ministro Turgot, etc.) defendiam, dentre outras coisas, que s� a terra cria realmente valor e que h� uma circula��o natural de renda na sociedade, correspondendo tudo isso a uma ordem natural, regida por leis imut�veis, como as da f�sica (da�, fisiocratas). Assim, n�o teriam cabimento interven��es na economia: "Por isso, defenderam a mais ampla liberdade econ�mica (contra as barreiras feudais, ainda imperantes na �poca...) e lan�aram a c�lebre m�xima do liberalismo: Laissez faire, laissez passer. E propuseram a supress�o de todas as taxas, com sua substitui��o por um imposto �nico incidindo sobre a propriedade, j� que esta seria a �nica fonte de riqueza e os propriet�rios apenas se apropriariam da renda da terra sem contribuir para o aumento do produto l�quido, enquanto os agricultores, os comerciantes e os artes�os deveriam ficar aliviados da carga tribut�ria para que se facilitasse a circula��o da renda. Para manter essa ordem natural, o Estado deveria assumir o papel exclusivo de guardi�o da propriedade e garantidor da liberdade econ�mica"(33). Logo em seguida, na Inglaterra, Adam Smith (1723-1790) superava intelectualmente os fisiocratas na fundamenta��o do liberalismo e publicava, em mar�o de 1776, "A Riqueza das Na��es: Investiga��o Sobre sua Natureza e suas Causas", que em pouco tempo se tornaria a "b�blia" econ�mica da burguesia - s� na Fran�a, antes da Revolu��o de 1789, houve pelo menos tr�s edi��es desse livro, e outras quatro foram publicadas durante o per�odo revolucion�rio(34), o que n�o deixa de ser extraordin�rio para uma �poca de poucos leitores. Segundo essa obra paradigm�tica, os indiv�duos s� buscam mesmo seus pr�prios interesses, competem incessantemente para isso, o que pode parecer mau; mas se essa competi��o n�o for artificialmente cerceada pelo Estado ou pela intromiss�o ignorante dos homens, terminar�, mediante a divis�o social do trabalho, gerando uma ordem social natural que aumentar� rapidamente a riqueza das na��es e o bem estar dos indiv�duos competidores. A produ��o sob o regime de livre empresa privada, com a conseq�ente acumula��o de capital, � o caminho para atingir esse fim. A classe dos capitalistas, propriet�ria dos meios sociais de produ��o, � necess�ria e ben�fica a todos, mesmo aos trabalhadores, que se alugam aos capitalistas para fazer funcionarem aqueles meios. � certo que disso tudo resultar� uma sociedade de grande desigualdade econ�mica, mas isto n�o � motivo para esc�ndalo porque, ainda assim, propiciar� melhorias nas condi��es de exist�ncia dos mais pobres, n�o sendo incompat�vel com a igualdade natural dos homens. Ademais, isso n�o ser� tamb�m injusto pois, embora o trabalho humano seja a verdadeira origem de toda riqueza, as rela��es ser�o baseadas na livre troca de equivalentes no mercado: o sal�rio que o capitalista paga eq�ivale ao trabalho que o oper�rio lhe presta. Portanto, deixar livre a m�o invis�vel do mercado � o meio mais s�bio para que economia naturalmente se regule a si mesma, e todos possam chegar � felicidade individual(35). Essas demandas do liberalismo econ�mico colidiam de frente com o pensamento mercantilista dos governos europeus da �poca - caracterizado pelo intervencionismo estatal, protecionismo frente ao com�rcio exterior e �nfase no aumento de reservas de metais preciosos - que impedia a livre circula��o de mercadorias e a livre competi��o no mercado internacional. Este pensamento havia sido �til a uma fase muito inicial do desenvolvimento do capitalismo, mas agora a burguesia (ao menos sua camada mais alta) passava a perceb�-lo como obst�culo � expans�o que buscava. Esse vasto conjunto de id�ias (certamente mais vasto do que o aqui exemplificado) acabou, portanto, propiciando fundamentos te�ricos e elevando a um patamar de sofistica��o intelectual a ideologia intuitiva e pr�tica da burguesia, abrindo caminho para essa classe reivindicar-se perante a sociedade como portadora leg�tima de interesses universais. "Sem d�vida, abaixo da filosofia do s�culo XVIII, o interesse da burguesia revela-se facilmente, pois ela deveria tirar as maiores vantagens do novo regime. Mas ela acreditava sinceramente trabalhar pelo bem da humanidade. E mais: estava persuadida de preparar a chegada de uma nova era da justi�a e do direito"(36). Essa classe necessitava de transforma��es sociais e se atribu�a o papel transformador. "O progresso das Luzes solapava os fundamentos ideol�gicos da ordem estabelecida, ao mesmo tempo que se afirmava a consci�ncia de classe da burguesia. Sua boa consci�ncia: classe em ascens�o, acreditando no progresso, tinha a convic��o de representar o interesse geral e de assumir o encargo da na��o; classe progressiva, exercia uma triunfante atra��o sobre as massas populares, como sobre os setores dissidentes da aristocracia. Contudo a ambi��o burguesa, apoiada pela realidade social e econ�mica, se chocava com o esp�rito aristocr�tico das leis e das institui��es"(37). Com bandeiras assim flamejantes, uma palavra - que freq�entaria o vocabul�rio humano nos s�culos seguintes - come�ou a passar, com insist�ncia crescente, pela cabe�a dos burgueses. Era esta a palavra: Revolu��o!

"Libert�, Egalit�, Fraternit�" A Fran�a dos anos oitenta do s�culo XVIII entrava em plano inclinado de desagrega��o. Uma diversidade de fatores complicava a situa��o nacional: crise fiscal, crise pol�tica, crise econ�mica, crise social - tudo ao mesmo tempo. O pa�s mal terminou de lamber suas feridas pela derrota humilhante na Guerra dos Sete Anos (1756/1763), quando perdeu para a Inglaterra todas as suas possess�es na Am�rica do Norte, e j� se envolveu, por raz�es de pol�tica internacional do Estado, na guerra de independ�ncia americana, contra a mesma e velha rival. Teve de deslocar, durante anos a fio e a pre�os de guerra, tropas e suprimentos para o outro lado do oceano - financiados por pesados empr�stimos contra�dos pelo Tesouro nacional. O descontrole dos gastos, as guerras de conquista, a infla��o, as edifica��es suntuosas e o esbanjamento ostentat�rio da Corte (motivo de grande impopularidade da monarquia), eram antigos e mantinham o pa�s, desde o reinado de Lu�s XIV, numa situa��o de crescente endividamento; mas o brutal aumento da d�vida p�blica, ap�s e em conseq��ncia da guerra americana, precipitou uma crise fiscal sem precedentes. Em 1788, 50 % das despesas do tesouro destinavam-se ao pagamento de juros da d�vida p�blica.

N�o havia mais de onde tirar dinheiro, a menos que...os que n�o pagavam impostos passassem a pag�-los. A igualdade fiscal e outras reformas j� haviam sido tentadas antes pelo rei mas, evidentemente, repudiadas com firmeza pela nobreza e pelo clero(38). Todavia, estando o reino � beira da bancarrota, Lu�s XVI imaginou poder desta vez fazer passar a igualdade fiscal, negociando com a aristocracia: convocou, no in�cio de 1787, um "Conselho de Not�veis", composto de 144 membros escolhidos a dedo. Nada obteve. Procurou conter despesas, introduzir algumas reformas, contratar novos empr�stimos, sem qualquer sucesso. A resist�ncia aristocr�tica ao absolutismo percebeu o momento de fraqueza da monarquia e tomou a ofensiva, impondo condi��es, exigindo partilhar o poder. O rei adotou medidas repressivas contra nobres insubordinados, a rea��o foi grande, teve de recuar. Tentou restabelecer sua autoridade expedindo "cartas r�gias"(39), sofreu nova desmoraliza��o, viu-se for�ado a revog�-las: agora, a pr�pria aristocracia come�ava a bradar por seus "direitos individuais e naturais" (v�-se que essa linguagem havia se imposto...) contra o autoritarismo absolutista. A crise institucional tornou-se objeto de acalorados debates p�blicos: embora a causa imediata da revolta dos nobres fosse sua recusa em abrir m�o de privil�gios fiscais e econ�micos, a luta pol�tica contra o absolutismo colocou, por um breve momento, o terceiro estado em frente comum com a aristocracia. Come�aram a surgir tumultos populares. Isolado no Pal�cio de Versalhes, com os cofres do Tesouro vazios, Lu�s XVI terminou, em agosto de 1788, por submeter-se � exig�ncia da "rebeli�o dos nobres": convocar para o ano seguinte a assembl�ia dos "Estados Gerais" para encontrar sa�das para as dificuldades do pa�s. Uma decis�o que lamentaria para sempre - os nobres tamb�m... Os Estados Gerais eram a antiga assembl�ia que reunia representantes das tr�s "ordens" em que se dividia a popula��o livre do pa�s, e haviam tido num passado remoto poderes legais sobre diversas quest�es do Estado - por exemplo, impostos. Mas, � medida em que o absolutismo mon�rquico foi ganhando terreno, nunca mais foram convocados: sua �ltima reuni�o havia acontecido h� 174 anos, em 1614. Seu chamamento em 1788 foi, portanto, sinal evidente do enfraquecimento do absolutismo. Ao lado da crise fiscal, estopim da crise de governabilidade, uma grave crise econ�mico-social se abatia sobre o pa�s. Invernos rigorosos e ver�es especialmente chuvosos ocasionaram p�ssimas safras em 1788 e 1789, fazendo os pre�os dos g�neros agr�colas dispararem, especialmente o do p�o, fundamental na alimenta��o do povo. A�ambarcadores e especuladores tiraram partido do salto da infla��o. Al�m disso, a superioridade inglesa na concorr�ncia pela oferta de produtos t�xteis tamb�m estancou a atividade desse ramo das manufaturas francesas, gerando preju�zos e desemprego. Multid�es de miser�veis perambulavam pelas cidades e pela zona rural, buscando sobreviv�ncia na mendic�ncia ou extravasando seu �dio aos privilegiados mediante saques e atentados contra senhores rurais, ou dedicando-se simplesmente � delinq��ncia. At� a m�dia burguesia ressentia-se amargamente da deteriora��o de seus meios de vida, especialmente porque, j� havia algum tempo, nobres que vinham perdendo rendas, ou que se encontravam mesmo em vias de empobrecimento, valeram-se de seus privil�gios "de sangue" e conseguiram impor ao rei o retorno da exclusividade aristocr�tica sobre os cargos p�blicos mais vantajosos. A quase totalidade dos plebeus foi expulsa dos graus mais cobi�ados da hierarquia da Administra��o. No ex�rcito isso era causa de grande descontentamento pois, desde um edito real de 1781, o acesso �s patentes de oficial ficou restrito exclusivamente aos nobres "de espada" e, assim mesmo, se possu�ssem "tr�s graus de nobreza". Assim, come�aram a brotar, principalmente dos estratos intermedi�rios do terceiro estado, ardorosos agitadores pol�ticos imbu�dos de id�ias iluministas. "Como as portas se fecham, nasce a id�ia de derrub�-las. A partir do momento em que a nobreza pretende torna-se uma casta e reservar os cargos p�blicos ao privil�gio de nascimento, o �nico recurso � suprimir o privil�gio do sangue para dar 'lugar ao m�rito'. � claro que o amor-pr�prio n�o estava ausente da jogada, e qualquer fidalguinho pouco importante, que simplesmente marcasse as dist�ncias, fazia renascer as feridas. Entre burgueses de diversos tipos forjou-se um v�nculo que nada p�de romper: um �dio comum � aristocracia"(40). Reuni�es febris nos caf�s parisienses, nos ativos "clubes" pol�ticos (n�o existiam partidos) e na grande e semi-secreta Ma�onaria (racionalista e anticlerical) passaram a irradiar efervescente propaganda das consignas de igualdade e liberdade junto ao povo. O an�ncio da convoca��o da assembl�ia dos Estados Gerais deu-lhes um norte pol�tico, pois perceberam - com mais raz�o do que podiam imaginar - que estaria a� uma oportunidade para fazerem valer muitos de seus pontos de vista. Mas esse an�ncio tamb�m desfez rapidamente aquela fugaz alian�a pol�tica entre a aristocracia e o terceiro estado contra o absolutismo. Os aristocratas pretendiam que essa assembl�ia, a partir de maio de 1789, conservasse a mesma forma de quase duzentos anos passados: quantidade igual de representantes para as tr�s "ordens" (em vez de proporcional ao peso de cada ordem na popula��o) e vota��o por ordem durante as sess�es (e n�o por cabe�a). O terceiro estado, que compunha seguramente mais de 90% da popula��o(41), percebeu que isso o deixaria em completa minoria e passou a reivindicar o contr�rio: representa��o proporcional e voto por cabe�a. Entre dois fogos, Lu�s XVI arbitrou pelo que imaginou ser um "meio termo": aceitou apenas duplicar a representa��o do terceiro estado e nada decidiu sobre o voto por ordem ou por cabe�a. A animosidade do terceiro estado contra a nobreza e o clero reabriu-se. As elei��es dos representantes das ordens realizaram-se entre fevereiro e mar�o de 1789, em clima de grande tens�o, panfletos exaltados circulando (o de Siey�s foi lan�ado em janeiro), chegando a ocorrer conflitos armados entre burgueses e nobres. Os regulamentos eleitorais eram complicados, com procedimentos vari�veis entre cidade e campo, e mesmo de regi�o para regi�o, o que distorcia ainda mais a representa��o. No terceiro estado, de modo geral, s� podiam votar homens com mais de 25 anos e, em Paris, que tamb�m fossem contribuintes de import�ncia razo�vel (voto censit�rio) - o que exclu�a todos os mais pobres. Foram eleitos entre 1118 e 1196 deputados (a inexatid�o dos registros n�o permite certeza absoluta dos n�meros): quase 300 do clero, aproximadamente o mesmo n�mero da nobreza, e pouco menos de 600 do terceiro estado. Entre os eleitos da nobreza, uma minoria tinha id�ias liberais; entre os do clero predominavam p�rocos (baixo clero); e no terceiro estado praticamente todos eram burgueses - nenhum campon�s ou oper�rio(42) - com predom�nio de juristas(43). Quando os Estados Gerais come�aram a se reunir, em 4 de maio de 1789, a crise social j� havia se intensificado dramaticamente, devido ao crescimento do desemprego, alta dos pre�os e aumento da fome nas massas populares. Pequenos aglomerados espont�neos de pessoas surgiam nas pra�as de Paris quase todos os dias, cresciam em poucas horas, os protestos tornavam-se inflamados, logo a pol�cia comparecia, come�ava o tumulto. Alastraram-se por todo o pa�s agita��es camponesas, pilhagens de celeiros, ataques a castelos e a igrejas, saques de lojas nas cidades, greves por reivindica��es salariais em Paris. Um autor(44) "...registrou mais de 400 revoltas entre abril e julho de 1789". O povo comum parecia ter perdido todo medo das autoridades. Os deputados eleitos aos Estados Gerais ocuparam-se, entre 4 de maio e meados de junho, com verifica��es procedimentais, reunindo-se em Versalhes separadamente por ordens, como havia sido em 1614. Mas a maioria dos deputados burgueses, empolgados pelo clima radicalizado do pa�s, e cada vez mais incitados pela popula��o que assistia �s suas sess�es, passou a reivindicar que os deputados das tr�s ordens se fundissem numa s� plen�ria, votando por cabe�a, constituindo uma �nica Assembl�ia Nacional soberana sem distin��es por ordens. Era uma proposta de claro rompimento com a legalidade, garantiria maioria ao terceiro estado e afrontava ao rei. A tens�o aumentou, surgiram boatos de interven��o militar a mando de Lu�s XVI. Nesse clima de exalta��o, os deputados do terceiro estado fizeram, em 20 de junho, o c�lebre "Juramento de Jeu de Paume"(45). Muitos deputados do baixo clero, e at� alguns dos nobres liberais, aderiram abertamente �s propostas dos burgueses. Em 23 de junho, o rei reuniu-se com os tr�s estados, acenou com concess�es (liberdade de imprensa, liberdade individual etc.), mas ordenou que as sess�es fossem por ordens, sob amea�a de dissolu��o do terceiro estado. Saiu do sal�o acompanhado dos deputados da nobreza e de parte do clero. Os deputados remanescentes, grande maioria, continuaram reunidos (Mirabeau: "S� sairemos pela for�a das baionetas!") e essa assembl�ia decretou a imunidade de seus membros. O rei ordenou o uso da for�a para expuls�-los. Mas, a essa altura, uma grande massa popular j� havia ocupado sem resist�ncia o p�tio do pal�cio; a pr�pria guarni��o de Versalhes n�o era confi�vel. Diante do impasse, os nobres liberais promoveram uma concilia��o, e o rei foi obrigado a voltar atr�s. A burguesia saiu vitoriosa em sua aberta ruptura com a legalidade mon�rquica: em 27 de junho, os tr�s estados j� se reuniam unificados. Era o fim do absolutismo. Em 7 de julho, os Estados Gerais adotaram o nome de Assembl�ia Nacional Constituinte e no dia 11 j� era apresentada uma primeira vers�o do que em breve viria a ser uma Declara��o dos Direitos do Homem e do Cidad�o. Vencidos pela burguesia, mas n�o conformados, o rei e a maioria da nobreza come�aram a articular o contra-ataque: constitu�ram um novo minist�rio "de confronta��o" e ordenaram o deslocamento de tropas (18.000 soldados(46)) para a regi�o de Paris, com o claro prop�sito de desfechar um golpe e dissolver a Assembl�ia Nacional Constituinte. Por�m, a situa��o j� havia sa�do de controle. A sedi��o popular se generalizava: uma massa crescente de desempregados e famintos, pequenos lojistas, artes�os, oper�rios e profissionais liberais realizava com�cios inflamados, provocava choques com a guarda, pilhagens e inc�ndios, deser��es na tropa, expuls�o de autoridades. Liderada por burgueses e pequeno-burgueses radicais, a massa popular entrou em processo intensivo de organiza��o em todos os bairros: lojas de armas foram esvaziadas, grupos de civis armados e guardas amotinados passaram a controlar os port�es de Paris, armaram barricadas, ocuparam pr�dios p�blicos e circulavam em patrulhas. No dia 13 de julho, um comit� popular formou-se em Paris e criou uma mil�cia civil burguesa. Para armar essa mil�cia, uma multid�o atacou na manh� do dia 14 o arsenal do H�tel des Invalides, onde apoderou-se de pelo menos 30.000 fuzis(47), distribu�dos imediatamente aos insurretos. No mesmo dia, a fortaleza-pris�o da Bastilha, odiado s�mbolo do absolutismo, foi cercada � busca de mais armas. Seu diretor aceitou dialogar com uma delega��o do povo, prometeu s� disparar se a Bastilha fosse atacada, mas quando a delega��o se retirava os canh�es da fortaleza abriram fogo. Os revolucion�rios passaram ao assalto: apoiados por soldados desertores que trouxeram canh�es, arrombaram os port�es da fortaleza, renderam a guarni��o defensora, executaram o diretor da Bastilha, libertaram os poucos presos que l� estavam. A insurrei��o tomou conta da capital. Iniciaram-se execu��es sum�rias. O comit�, agora chamado de "Comuna de Paris", transformou-se no novo poder municipal e a mil�cia civil organizou-se como Guarda Nacional. O rei viu-se for�ado a recuar mais uma vez, suspendendo o nunca conclu�do deslocamento de tropas, tendo agora de acatar o poder popular surgido sob o signo da nova bandeira tricolor, que unia o branco da monarquia ao vermelho e azul da cidade de Paris. Rapidamente, acontecimentos semelhantes se alastraram por toda a Fran�a. Primeiro nas cidades, que reproduziram em graus variados a insurrei��o da capital, expulsaram as autoridades e instalaram nas administra��es delegados do terceiro estado. E logo tamb�m nas �reas rurais, onde milh�es de camponeses (com terra ou assalariados), temendo a rea��o do "compl� aristocr�tico" e dos in�meros agrupamentos de bandidos (supunha-se estarem a servi�o da rea��o senhorial), intensificaram furiosamente a a��o revolucion�ria. Dezenas de castelos foram incendiados em poucos dias, seus senhores colocados para correr, as cercas das fazendas derrubadas, as terras ocupadas pelos camponeses, os registros de propriedade queimados. Assim, o que havia come�ado como uma "rebeli�o dos nobres" em 1788 prosseguiu como revolu��o jur�dica da burguesia nos Estados Gerais, explodiu na insurrei��o popular armada em Paris, ganhou quase toda a Fran�a com as revoltas municipais e selou a morte do Antigo Regime com o levante de milh�es de camponeses nas �reas rurais da Fran�a. Nos primeiros dias de agosto j� era claro que a Revolu��o - ou, ao menos, sua primeira fase - havia triunfado. Milhares de nobres e membros da igreja iniciaram uma torrente migrat�ria para pa�ses vizinhos(48) e o rei recolheu-se cauteloso ao Pal�cio de Versalhes(49). Em meio a esse inesperado terremoto social, a Assembl�ia Nacional Constituinte, inspirada - e pressionada - por ele, deixou de lado todas as cautelas e vacila��es. Na noite de 4 para 5 de agosto, adotou resolu��es abrangentes que deitavam por terra, ao menos no plano jur�dico (na realidade social a transforma��o seria mais demorada e complicada), quase tudo o que restava do feudalismo e dos privil�gios do clero e da nobreza. Os pr�prios deputados dessas duas ordens, subitamente "convertidos" � causa da Revolu��o - agora chamada de "sagrada" - participaram dessa memor�vel noite de generosidades, em que n�o faltaram l�grimas, ren�ncias "espont�neas" a privil�gios centen�rios, discursos comovidos e palavras grandiosas de amor � "p�tria" e ao "povo". N�o demorou para que o pr�prio rei recebesse o t�tulo de "Restaurador da liberdade francesa"... O quanto essa noite teve de "espont�nea" ou foi precipitada pela revolu��o popular � at� hoje objeto de controv�rsias acad�micas. Mas, depois dela, n�o havia mais como se voltar atr�s.

A "Declara��o" de 1789 e a Constitui��o de 1791 Nessa atmosfera exaltada, venceu entre os deputados o ponto de vista de que, antes da reda��o de uma Constitui��o, deveria ser proclamada uma "Declara��o dos Direitos do Homem e do Cidad�o". Al�m de relacionar os princ�pios que deveriam nortear o texto constitucional, ela seria o manifesto revolucion�rio da nova Fran�a. A partir de um novo projeto (v�rios anteriores foram desprezados) cujos principais redatores foram Mirabeau e Siey�s, a Declara��o come�ou a ser votada em 20 de agosto e foi aprovada no dia 26 desse m�s, com dezessete artigos. � considerada o atestado de �bito do Antigo Regime. "Os homens nascem e s�o livres e iguais em direitos" (art. 1�) e "a finalidade de toda associa��o pol�tica � a conserva��o dos direitos naturais e imprescind�veis do homem" (art. 2�). Quais s�o esses direitos ? S�o quatro: "a liberdade, a propriedade, a seguran�a e a resist�ncia � opress�o" (art. 2�). A soberania foi atribu�da, no artigo 3�, � "Na��o" (f�rmula unificadora) e n�o ao povo (express�o rejeitada, pelo que podia conter de reconhecimento das diferen�as sociais). A liberdade (art. 4�: "poder fazer tudo aquilo que n�o prejudique a outrem") s� pode ser limitada pela lei, que deve proibir as "a��es prejudiciais � sociedade" (art. 5�). A lei "deve ser a mesma para todos" (art. 6�). N�o haver� acusa��o ou pris�o "sen�o nos casos determinados pela lei e de acordo com as formas por esta prescrita", devendo ent�o o cidad�o submeter-se, "sen�o torna-se culpado de resist�ncia" (art. 7�). Os princ�pios da necess�ria anterioridade da lei face ao delito e da presun��o de inoc�ncia dos acusados foram estabelecidos nos artigos 8� e 9�. A liberdade de opini�o, inclusive religiosa, foi enunciada no artigo 10� e a de express�o no artigo 11�. A necessidade de uma "for�a p�blica" para garantia dos direitos do homem e do cidad�o foi inclu�da no artigo 12�. O artigo 13� institu�a a igualdade fiscal. Os artigos 14� e 15� estabeleciam o direito de fiscaliza��o dos cidad�os sobre a arrecada��o e os gastos p�blicos. O artigo 16� enunciava a necessidade de garantia dos direitos e de "separa��o dos poderes". Por fim, o artigo 17� reiterava que "a propriedade � um direito inviol�vel e sagrado, ningu�m dela pode ser privado, a n�o ser quando a necessidade p�blica legalmente comprovada o exigir evidentemente e sob a condi��o de justa e pr�via indeniza��o"(50). � �bvia a inspira��o jusnaturalista, conforme aponta Bobbio(51): "...o n�cleo doutrin�rio da Declara��o est� contido nos tr�s artigos iniciais: o primeiro refere-se � condi��o natural dos indiv�duos que precede a forma��o da sociedade civil; o segundo, � finalidade da sociedade pol�tica , que vem depois (se n�o cronologicamente, pelo menos axiologicamente) do estado de natureza; o terceiro, ao princ�pio de legitimidade do poder que cabe � Na��o". Mas, como se pode ver, os quatro "direitos naturais" enunciados no artigo 2� (liberdade, propriedade, seguran�a e resist�ncia � opress�o) s�o contemplados desigualmente na Declara��o. A liberdade recebeu sete artigos: o 4� e o 5� definem seus contornos gerais, do 7� ao 9� � tratada a liberdade individual, o artigo 10� refere-se � liberdade de opini�o e o 11� � liberdade de express�o. A propriedade s� � abordada no artigo 17�, mas beneficia-se de um tratamento enfaticamente protecionista e privatista - note-se que � o �nico direito qualificado como "inviol�vel e sagrado". A seguran�a s� � contemplada no artigo 12�, e de modo visivelmente menos relevante. Quanto ao direito de resist�ncia � opress�o, a Declara��o nada lhe dedicou, a n�o ser a men��o inicial. H� uma aus�ncia memor�vel: a igualdade n�o figurou entre os direitos "naturais e imprescind�veis"(52) proclamados no artigo 2�, muito menos foi elevada ao patamar de "sagrada e inviol�vel" como fizeram com a propriedade. Al�m disso, quando mencionada depois, o foi com um certo sentido: os homens s�o iguais - mas "em direitos" (art. 1�), perante a lei (art. 6�) e perante o fisco (art. 13). Assim, a igualdade de que cuida a Declara��o � a igualdade civil (fim da distin��o jur�dica baseada no status de nascimento). Nenhum prop�sito de estend�-la ao terreno social, ou de condenar a desigualdade econ�mica real que aumentava a olhos vistos no pa�s. "O indiv�duo era uma abstra��o. O homem era considerado sem levar em conta a sua inser��o em grupos, na fam�lia ou na vida econ�mica. Surgia, assim, o cidad�o como um ente desvinculado da realidade da vida. Estabelecia-se igualdade abstrata entre os homens, visto que deles se despojavam as circunst�ncias que marcam suas diferen�as no plano social e vital. Por isso, o Estado teria de abster-se. Apenas deveria vigiar, ser simples gendarme"(53). Na reda��o inicial, Siey�s pretendera mesmo discernir que a igualdade a ser garantia era "de direitos" e n�o "de recursos"(54). Mas, talvez por configurar distin��o excessivamente reveladora, os constituintes preferiram n�o acolh�-la - o que, ironicamente, iria facilitar nas d�cadas seguintes a que a no��o de igualdade fosse retomada pelo movimento oper�rio num sentido radical, socialista. Tamb�m "n�o � temer�rio supor que, se a Assembl�ia descartou a men��o da 'satisfa��o geral' como objetivo da associa��o pol�tica, � porque quis impedir que se invocasse a igualdade para exigir a melhora do destino dos deserdados da fortuna, e que se transformasse a igualdade jur�dica ou civil em igualdade social"(55). Os estudiosos n�o deixaram passar despercebidos outros sil�ncios eloq�entes de v�rias dimens�es da igualdade evitadas pelos constituintes: o sufr�gio universal sequer foi mencionado, a igualdade entre sexos n�o chegou a ser cogitada (o "homem" do t�tulo da Declara��o era mesmo s� o do g�nero masculino), o colonialismo franc�s (ou europeu em geral) n�o foi criticado, a escravid�o n�o foi vituperada (e era uma realidade dram�tica naquele tempo), o direito ao trabalho foi esquecido etc.. Assim, t�o importantes quanto as id�ias que a Declara��o cont�m, s�o as id�ias que ela n�o cont�m - e que, a julgar pela acumula��o filos�fica j� existente no final do s�culo XVIII, a "Raz�o" esperaria que fossem acolhidas nesse texto. Os deputados constituintes reproduziram no in�cio da Declara��o, de modo abstrato, princ�pios do jusnaturalismo que gozavam de grande prest�gio (liberdade, igualdade); mas, em seguida, ao "traduzirem-nos" nos demais artigos, promoveram uma sele��o cuidadosa de temas, de sentidos e de �nfases - sele��o guiada, evidentemente, pelo filtro de seus interesses e conveni�ncias. Por mais que tivessem bebido nas fontes filos�ficas iluministas dos direitos naturais e universais, seria excessivo esperar que esses burgueses legisladores se mostrassem dispostos, de "motu proprio", a pavimentar uma estrada jur�dica que apontasse para alguma esp�cie mais real de igualdade social. "As contradi��es que marcaram sua obra explicam o realismo dos Constituintes, que pouco se embara�avam com princ�pios quando se tratava de defender seus interesses de classe"(56). Mais precisamente, � "� liberdade que a burguesia mais se at�m. Exige, em primeiro lugar, a liberdade econ�mica, embora n�o se lhe fa�a a menor men��o na Declara��o dos Direitos de 1789: sem d�vida, porque a liberdade econ�mica estava impl�cita aos olhos da burguesia, mas tamb�m porque as massas populares permaneciam profundamente apegadas ao antigo sistema de produ��o que, pela regulamenta��o e pela taxa��o, garantia, em certa medida, suas condi��es de exist�ncia. O 'laisser-faire, laisser-passer' constitu�a, desde 1789, de forma ponder�vel, o fundamento das novas institui��es. A liberdade da propriedade derivou da aboli��o da feudalidade. A liberdade de cultura (agr�cola) consagrou o triunfo do individualismo agr�rio, ainda que o C�digo rural de 27 de setembro de 1791 tenha mantido, n�o sem contradi��o, o terreno de pastagem livre e o direito de percurso, se baseados num t�tulo ou num costume. A liberdade de produ��o foi generalizada pela supress�o dos monop�lios e das corpora��es: a lei de Al�arde, de 2 de mar�o de 1791, suprimiu as corpora��es, jurandas e mestrados, mas tamb�m as manufaturas privilegiadas. A liberdade do com�rcio interno foi acompanhada da unifica��o do mercado nacional pela aboli��o das aduanas internas e dos ped�gios, pelo recuo das barreiras que incorporou as prov�ncias de estrangeiro efetivo, enquanto a aboli��o dos privil�gios das companhias comerciais liberava o com�rcio externo. (...) O indiv�duo livre o � tamb�m de criar e de produzir, de procurar o lucro e de o desfrutar � sua maneira. De fato, o liberalismo fundado na abstra��o de um individualismo social igualit�rio beneficiava os mais fortes: a lei Le Chapelier constitui, at� 1864, para o direito de greve, e at� 1884, para o direito sindical, uma das pe�as mestras do capitalismo da livre concorr�ncia"(57). Os constituintes deram-se por bem servidos gravando na "Declara��o" de 1789 uma certa no��o de liberdade que estava em voga entre os revolucion�rios liberais, que n�o precisava ir al�m do significado de garantia formal contra o Estado: "Isso se explica no fato de que a burguesia que desencadeara a revolu��o liberal estava oprimida apenas politicamente, n�o economicamente. Da� porque as liberdades da burguesia liberal se caracterizavam como 'liberdades-resist�ncia' ou como meio de limitar o poder que, ent�o, era absoluto"(58). Portanto, a "Declara��o" era "um manifesto contra a sociedade hier�rquica de privil�gios nobres, mas n�o um manifesto a favor de uma sociedade democr�tica e igualit�ria.(...) Os homens eram iguais perante a lei e as profiss�es estavam igualmente abertas ao talento; mas, se a corrida come�asse sem handicaps, era igualmente entendido como fato consumado que os corredores n�o terminariam juntos. E a assembl�ia representativa que ela vislumbrava como o �rg�o fundamental de governo n�o era necessariamente uma assembl�ia democraticamente eleita, nem o regime nela impl�cito pretendia eliminar os reis. Uma monarquia constitucional baseada em uma oligarquia possuidora de terras era mais adequada � maioria dos liberais burgueses do que a rep�blica democr�tica, que poderia ter parecido uma express�o mais l�gica de suas aspira��es te�ricas, embora alguns tamb�m advogassem esta causa. Mas, no geral, o burgu�s liberal cl�ssico de 1789 (e o liberal de 1789-1848) n�o era um democrata, mas sim um devoto do constitucionalismo, um Estado secular com liberdades civis e garantias para a empresa privada e um governo de contribuintes e propriet�rios"(59). Isso come�aria a ficar claro logo em seguida, nos debates para a reda��o da Constitui��o, quando os mesmos deputados que haviam escrito a "Declara��o" explicitaram sua rejei��o � igualdade pol�tica, ao decidirem que o direito de voto seria "censit�rio", contra a "esquerda" jacobina (com destaque para o ardoroso deputado Robespierre) que batia-se pelo direito de voto universal. "J� em julho de 1789, Siey�s distinguia os cidad�os ativos, que desfrutariam dos direitos pol�ticos completos, e os cidad�os passivos, que s� teriam direitos naturais e civis. Em 29 de setembro, o comit� de constitui��o aceitava a distin��o e pedia o pagamento de um imposto direto igual a pelo menos o valor de tr�s dias de trabalho para obter a qualifica��o de cidad�o ativo.(...) Foram igualmente exclu�dos do direito de voto os criados assalariados e os devedores insolventes. Para elegibilidade �s assembl�ias locais, admitiu-se o pagamento de um imposto de dez dias de trabalho; para elegibilidade � Assembl�ia Nacional, a taxa foi fixada em marcos de prata, mas tamb�m se exigia a posse de uma propriedade fundi�ria. O marco de prata foi finalmente abolido em 27 de agosto de 1791, como resultado de uma violenta campanha dos jornais democr�ticos contra a 'aristocracia dos ricos'. (...) Nessa data, a Fran�a contava 4.298.360 cidad�os ativos, em 24 milh�es de habitantes"(60). Mesmo "...a igualdade civil recebeu, no entanto, uma singular deturpa��o pela manuten��o da escravid�o nas col�nias: sua aboli��o teria lesado os interesses dos grandes plantadores cujo grupo de press�o era particularmente influente na Assembl�ia"(61). Em 15 de maio de 1791, a Assembl�ia Constituinte decidia que "...o corpo legislativo nunca deliberar� sobre o estado pol�tico das pessoas de cor que n�o forem nascidas de pai e m�e livres"(62). S� em fevereiro de 1794 a Fran�a foi levada a abolir a escravatura no Haiti - depois que uma bem sucedida insurrei��o de escravos tomou o poder nessa ilha. A Assembl�ia Constituinte tamb�m tornou o porte de armas um privil�gio burgu�s: "somente os cidad�os ativos (...), �nicos de posse dos direitos pol�ticos, participaram da Guarda Nacional"(63). Al�m disso, a fome e o desemprego aumentavam e crescia a percep��o de que os deputados derivavam para uma solu��o de concilia��o com a aristocracia e a monarquia: por um decreto de 15 de mar�o de 1790, boa parte dos direitos feudais foi considerada resgat�vel, em vez de abolida. Por outro decreto, de 3 de maio desse ano, foi fixada a taxa de resgate em "vinte vezes a renda anual para os direitos em dinheiro, vinte e cinco para os direitos 'in natura'(...). O resgate era estritamente individual; o campon�s devia saldar os rendimentos em atraso desde trinta anos(...)e beneficiava unicamente aos propriet�rios, que o fizeram recair sobre os foreiros, meeiros e arrendat�rios"(64). A concilia��o prosseguiu com a preserva��o da monarquia sob forma constitucional, como na Inglaterra. Assim, foi emergindo a desconfian�a popular em rela��o � Assembl�ia Constituinte. Ap�s uma breve pausa no final de 1789, as greves e protestos ressurgiram. A resposta dos deputados n�o poderia ser mais esclarecedora de suas convic��es a respeito dos trabalhadores: "A Assembl�ia Constituinte votou ent�o a lei de 14 de junho de 1791, cujo relator foi Le Chapelier, que proibiu, sob pena de multa e pris�o, que todos os oper�rios aut�nomos ou assalariados se dissessem presidentes ou s�ndicos, tomassem decis�es na qualidade de autoridades, mantivessem registros, se associassem com vistas a recusar trabalho ou a s� desempenh�-los por determinadas tarifas. Qualquer ajuntamento de artes�os, oper�rios assalariados, aut�nomos ou jornaleiros seria dispersado pela for�a"(65). A lei "Le Chapelier" teria vida longa, quase cem anos: s� foi revogada em 1.887, ap�s duradoura resist�ncia dos trabalhadores franceses. A repress�o violenta tamb�m come�ou logo a agir. Em 17 de julho de 1.791 a Guarda Nacional, sob comando do general liberal La Fayette (her�i na guerra de independ�ncia americana) disparou contra uma manifesta��o no Champ-de-Mars que exigia a convoca��o de um novo poder constituinte: "registraram-se, pelo menos, cinq�enta mortos"(66). Com esse perfil, a primeira Constitui��o produzida pela Revolu��o, com 210 artigos, foi aprovada pela Assembl�ia Nacional Constituinte em 3 de setembro de 1.791, sem ser submetida a qualquer ratifica��o popular. Foram ent�o promovidas elei��es para o novo parlamento nacional, chamado de Assembl�ia Legislativa, com mandato de dois anos, sob aquelas regras restritivas do voto censit�rio. Em conseq��ncia, o corpo eleito foi ainda menos diversificado do que o das elei��es dos Estados Gerais: agora, "...a esmagadora maioria dos deputados era de origem burguesa, predominavam os propriet�rios e advogados, mas tamb�m havia 28 padres constitucionais, 28 m�dicos e eruditos. (...) Eram not�veis que j� haviam disputado um mandato local ou fun��es judici�rias"(67).

O Terror "de esquerda" e a Constitui��o de 1793 Talvez a decis�o de maiores consequ�ncias adotada pela Assembl�ia Legislativa foi iniciar a guerra contra a �ustria, em abril de 1792, numa tentativa de libertar-se do c�rculo de ferro que as monarquias europ�ias haviam erguido contra a Fran�a revolucion�ria. Iniciou-se, ent�o, o per�odo de mais de vinte anos de guerras quase ininterruptas entre a Fran�a e as monarquias feudais de toda a Europa. Mal preparada, a guerra come�ou com humilhantes derrotas iniciais e abriu passagem para a invas�o do pa�s pela coliga��o da �ustria-Pr�ssia, pondo em risco a sobreviv�ncia da Revolu��o. Essa interven��o estrangeira tinha certamente suas pr�prias raz�es: "era cada vez mais evidente para os nobres e governantes por direito divino de outros pa�ses que a restaura��o do poder de Lu�s XVI n�o era meramente um ato de solidariedade de classe, mas uma prote��o importante contra a difus�o de id�ias perturbadoras vindas da Fran�a"(68). A certeza de entendimentos mal ocultados entre o rei e as pot�ncias invasoras - e o perigo real de restaura��o do Antigo Regime - acendeu um ardoroso sentimento de patriotismo rebelde no povo parisiense, fortaleceu o movimento republicano e abriu caminho para o retorno de uma vigorosa a��o de massas no cen�rio pol�tico franc�s. Em julho de 1.792, quase todas as 48 sections (assembl�ias distritais) de Paris foram virtualmente tomadas pelos sans culottes(69). Os sublevados rapidamente constitu�ram um comit� central para coordenar a a��o entre as sections. Em 12 de agosto essa irrup��o popular criou uma outra Comuna em Paris, que se lan�ou novamente � insurrei��o armada, assumiu o poder na capital, for�ou a Assembl�ia Legislativa a precipitar a aboli��o da monarquia (setembro) e a pris�o do rei, exigindo, ainda, o fim da discrimina��o entre cidad�os "ativos" e "passivos" e a convoca��o de uma nova assembl�ia constituinte. No mesmo semestre foi eleita e empossada a Conven��o Nacional, agora num processo de sufr�gio que, pela primeira vez, foi quase universal, embora indireto. Essa "segunda Revolu��o Francesa", conseguiu mobilizar poderosamente as energias populares, fez inverter o curso da guerra, deu uma seq��ncia de vit�rias � Fran�a contra seu cord�o de inimigos externos e empurrou para fora do pa�s os ex�rcitos invasores. Por�m, ao mesmo tempo, as contradi��es sociais radicalizavam-se dramaticamente. Os remanescentes do bloco social aristocr�tico-clerical, ainda muito fortes, assim como o setor "moderado" da burguesia (monarquistas constitucionais), viram que estavam rompidas as possibilidades de concilia��o - o rei, inclusive, fora guilhotinado em 21/01/1.793 por decis�o da Conven��o Nacional. Al�m disso, a Igreja Cat�lica j� havia conseguido ganhar para o campo da contra-revolu��o uma fra��o ponder�vel dos camponeses, que se sentiam feridos em suas cren�as religiosas desde que os revolucion�rios, no acirramento da luta contra o clero, deflagraram uma agressiva campanha de "descristianiza��o"(70). Esse conjunto de for�as lan�ou-se numa feroz guerra civil contra o governo de Paris em imensas regi�es do interior (principalmente na Vend�ia e na Bretanha), promovendo massacres de revolucion�rios - que respondiam na mesma moeda. N�o demorou tamb�m para que se ampliassem por quase toda a Europa as alian�as militares estrangeiras contra a Fran�a: o pa�s voltou a ser invadido, agora por todos os lados, ficando em situa��o de cerco completo e iminente aniquilamento. A economia de livre empresa sem controle, institu�da desde 1789, entrou em turbul�ncia inflacion�ria e os pre�os dos alimentos dispararam novamente. "Em junho de 1793, sessenta dos oitenta departamentos franceses estavam em revolta contra Paris; os ex�rcitos dos pr�ncipes alem�es estavam invadindo a Fran�a pelo norte e pelo leste; os brit�nicos atacavam pelo sul e pelo oeste: o pa�s achava-se desamparado e falido"(71). Nesse panorama, a Conven��o Nacional - composta por cerca de 900 deputados majoritariamente burgueses e repletos de cis�es internas - curvou-se aos clamores que vinham da alian�a entre jacobinos e sans-culottes e constituiu, em abril de 1793, um governo revolucion�rio de guerra, dirigido por um Comit� de Salva��o P�blica. O agravamento dos conflitos pol�ticos - na Conven��o e na sociedade - fez subir depressa a temperatura: em 2 de junho de 1793, uma multid�o de sans culottes e soldados invadiu a Conven��o, expulsou e prendeu os 29 deputados que compunham o n�cleo principal dos moderados Girondinos, partid�rios, antes de tudo, de um legalismo garantidor da liberdade econ�mica. O movimento popular empurrava a Revolu��o para a frente, exigindo a intensifica��o do lev�e en masse (mobiliza��o geral) e o esmagamento dos inimigos internos e externos da Revolu��o. A partir da�, logo pontificou no Comit� de Salva��o P�blica o advogado Robespierre, rousseauniano ardoroso, conhecido como "o Incorrupt�vel". Em setembro de 1793, iniciavam-se os onze meses conhecidos como per�odo do "Terror": direcionamento estatal da economia para o esfor�o de guerra, controle compuls�rio de pre�os, sal�rios e lucros, confisco de gr�os para alimentar as tropas, incentivo � participa��o das massas em todos os momentos, execu��o na guilhotina de milhares de nobres e de opositores em geral. Repress�o n�o s� aos inimigos declarados da Revolu��o, como tamb�m a todas as pr�prias dissid�ncias internas a ela, da "direita" � "esquerda"(72) (inclusive de muitos jacobinos e sans culottes). Busca da unidade completa do pa�s, a fogo e ferro, com ou sem lei (Robespierre: "N�o se pode querer uma revolu��o sem revolu��o"), para salvar la grande nation. Sob este ponto de vista, deu certo: em menos de um ano, n�o s� a guerra civil estava sendo revertida em favor dos revolucion�rios, como todos os ex�rcitos estrangeiros haviam sido escorra�ados. Mais ainda: o que inicialmente fora guerra de autodefesa j� se transformara em guerra de ocupa��o e anexa��o de territ�rios de pa�ses vizinhos, com base numa doutrina pol�tico-militar rec�m-inventada pela burguesia que pregava a necessidade de estender as fronteiras da Fran�a at� certos limites geogr�ficos "naturais". Foi sob press�o dos mesmos sans culottes e jacobinos que a Conven��o Nacional redigiu a segunda Constitui��o produzida pela Revolu��o, democr�tica e socialmente avan�ada para a �poca - aprovada por um referendum popular em julho de 1793, o que tamb�m era in�dito. Essa Constitui��o - chamada pelos revolucion�rios de "Constitui��o do Ano I"(73) - estava dividida em duas partes: uma "Declara��o dos direitos do homem e do cidad�o", de 35 artigos, seguida de um "Ato Constitucional", com mais 124 artigos. Al�m de todos os direitos, deveres e liberdades previstos na "Declara��o" de agosto de 1789, a nova "Declara��o" introdut�ria desta Constitui��o iniciava-se com a afirma��o solene, j� no artigo primeiro, de que "o fim da sociedade � a felicidade comum", e colocava a igualdade (art. 2�) entre os direitos naturais imprescrit�veis - no mesmo n�vel da propriedade, liberdade e seguran�a. Mantinha a igualdade civil da Declara��o de 1789 e bania a distin��o pol�tica entre cidad�os "ativos" e "passivos" que fora gravada em tr�s artigo do T�tulo III, Cap�tulo I, da Constitui��o de 1791. No artigo 18, proibia a compra e venda de seres humanos e abolia a servid�o dom�stica (mantida na Constitui��o anterior, T�tulo III, Cap�tulo I). Institu�a, no artigo 21, a assist�ncia social como "d�vida sagrada" e reconhecia o direito ao trabalho. Erigia a instru��o p�blica (artigo 22) a direito de todos os cidad�os. Indicava (artigo 23) que os direitos de cada um deviam ser operantes, assegurados pela a��o de todos. O �ltimo artigo dessa "Declara��o" introdut�ria era flamejante: "Sempre que o Governo viola os direitos do povo, a insurrei��o constitui, para o povo e para cada por��o do povo, o mais sagrado dos direitos e o mais indispens�vel dos deveres". Na segunda parte dessa Constitui��o - o "Ato Constitucional" - v�rios artigos (2�, 7� e 8�) consagravam o princ�pio da soberania popular (na Constitui��o de 1791, artigos 1� e 2� do T�tulo III, a soberania pertencia � Na��o). No artigo 4�, o Ato Constitucional acabava com o requisito de pagamento de uma import�ncia em dinheiro para adquirir a condi��o de cidad�o (previsto no T�tulo III, Cap�tulo I, da outra Constitui��o). O princ�pio do sufr�gio universal decorria do esp�rito que perpassava v�rios artigos (4�, 7�, 8�, 11, 32 e 37), e o princ�pio da elegibilidade universal estava consagrado no artigo 28. A imunidade criminal dos parlamentares por opini�es expressadas dentro do Corpo Legislativo estava assegurada no artigo 43. O Ato combinava a democracia representativa (artigos 8� e 9�) com formas amplas de democracia direta: de acordo com os artigos 57 a 60, todas as leis deveriam ser aprovadas provisoriamente pelo parlamento e remetidas a todas as comunas da Rep�blicas, s� passando a vigorar se n�o fossem contestadas pelas assembl�ias prim�rias de eleitores. A Rep�blica era organizada de modo parlamentarista (art. 65). Todos os juizes e administradores eram eleitos (arts. 79 e 80). A publicidade era assegurada no �ltimo artigo: "A declara��o dos direitos e o ato constitucional ficam gravados em t�buas no interior do Corpo Legislativo e nas pra�as p�blicas"(74). "Foi a primeira constitui��o genuinamente democr�tica proclamada por um Estado moderno"(75). Contudo, a Constitui��o do Ano I nunca foi aplicada. Tanto no que diz respeito ao exerc�cio da democracia, quanto no que se refere �s aspira��es sociais dos trabalhadores e das mulheres, o abismo entre textos jur�dicos pomposos e sua efetividade pr�tica d� o tom. A Conven��o Nacional, agora sob hegemonia jacobina, decidiu em 10 de outubro desse ano que a nova Constitui��o ficaria suspensa enquanto durasse a guerra (iria durar mais de 20 anos!). Num discurso de 1794, Robespierre bradava: "� preciso organizar o despotismo da liberdade para esmagar o despotismo dos reis"(76). Assim, aqueles avan�os de natureza democr�tica e os acenos rumo a uma justi�a social distributiva, pela primeira vez colocados numa Constitui��o pela press�o popular, tornaram-se letra morta antes mesmo que essa press�o reflu�sse pelo cansa�o do esfor�o de guerra. Quando os oper�rios parisienses, desesperados pela fome, reiniciaram em 1793 protestos desorganizados contra a carestia, os l�deres "enrag�s" (raivosos, furiosos...) que os defenderam foram acusados pelo pr�prio Robespierre de "agentes do fanatismo, do crime e da perf�dia". O principal deles, Jacques Roux, ex-padre e membro da Comuna formada em Paris em 1.789, denunciava em 25 de junho de 1793: "A igualdade n�o passa de um v�o fantasma quando o enriquecido pelo monop�lio exerce o direito de vida e morte sobre seu semelhante"(77). Roux foi preso em 5 de setembro e encaminhado ao Tribunal Revolucion�rio, meio seguro de remet�-lo � guilhotina. Preferiu o suic�dio em 10 de fevereiro de 1794. Como o mal-estar social s� se agravasse, n�o demorou para que surgisse outro l�der em defesa dos esfomeados: H�bert, jornalista e suplente da Comuna de Paris, que juntou um grupo militante em torno de si e foi acusado de ser demagogo. No in�cio de 1794, quando a mis�ria gerou novos tumultos em Paris, H�bert e seus amigos foram presos e guilhotinados. A repress�o tamb�m se abateu sobre o incipiente e fr�gil movimento feminista. A Revolu��o, em momento algum, mostrou inclina��o de estender �s mulheres direitos iguais aos dos homens. J� em janeiro de 1789, quando lan�ou seu panfleto revolucion�rio "Qu� � o Terceiro Estado?", o abade Siey�s deixou isso claro: "N�o pode haver em g�nero algum uma liberdade ou um direito sem limites. Em todos os pa�ses, a lei fixou caracteres preciosos, sem os quais n�o se pode ser nem eleitor, nem eleg�vel. (...) E as mulheres est�o, em toda parte, por bem ou por mal, impedidas de receber essas procura��es."(78) Assim, quando Claire Lacombe, atriz da Com�die Fran�aise, l�der popular e organizadora da Sociedade das Mulheres Revolucion�rias, tentou exigir isso, teve o mesmo destino de todos os que eram considerados inimigos da Revolu��o(79). Os jacobinos, malgrado seu radicalismo operacional e sua bem sucedida pol�tica de alian�as com as classes populares, nunca deixaram de ser revolucion�rios burgueses: "partid�rios do liberalismo econ�mico, aceitaram a regulamenta��o e a taxa��o como uma medida de guerra e como uma concess�o �s reivindica��es populares"(80). Aliaram-se aos sans culottes - e � massa de prolet�rios que eles arrastavam atr�s de si - no combate comum � direita da Conven��o. Contudo, no in�cio de 1794, sua ditadura "salvacionista" j� havia conseguido quebrar a energia popular e esvaziar a din�mica democracia direta das sections parisienses. "Mas o que o governo ganhava em for�a coativa perdia em apoio confiante; sua base social encolhia-se perigosamente"(81).

O Terror "de direita" e a Constitui��o de 1795 T�o logo os perigos que amea�avam a Fran�a foram esconjurados pelas vit�rias em campo de batalha e o movimento dos sans culottes perdeu f�lego, formou-se uma nova maioria de direita entre os deputados da Conven��o Nacional. No dia 27 de julho de 1794 (9 de Termidor do Ano II, pelo novo calend�rio) os jacobinos foram derrubados do poder. Terminava o terror "de esquerda", come�ava o terror "de direita". Robespierre, ao ser preso, recebeu um tiro que lhe estilha�ou o maxilar. No dia seguinte, ele e mais 22 jacobinos foram guilhotinados. Mais um dia, e outros 71 robespierristas acabaram do mesmo jeito. O banho de sangue iniciado por essa "rea��o termidoriana" colocou a definitiva p� de cal nas esperan�as de democracia e justi�a social que a Revolu��o pudesse ter suscitado. A partir da�, a correla��o de for�as se definia: "A Revolu��o seria 'burguesa' e nada faria pelos oper�rios"(82). O terror de direita (chamado, eufemisticamente, de "branco") alastrou-se por toda a Fran�a, com massacres de jacobinos e sans culottes em Lyon, N�mes, Mont�limar, Tarascon e Avignon(83). Em dezembro de 1794, a Conven��o Nacional reintegrou os Girondinos. O controle de pre�os foi extinto, o liberalismo econ�mico retornou por completo e, com ele, o abastecimento desorganizou-se e a infla��o disparou. "Mis�ria crescente: o �ndice do custo de vida em Paris, com base 100 em 1790, passou de 580 em janeiro de 1795, a 720 em mar�o e 900 em abril"(84). Em 1� de abril de 1795 (12 de Germinal do ano III) uma multid�o esfomeada, desarmada e sem chefes, invadiu a sala de sess�es da Conven��o implorando "p�o e Constitui��o". A repress�o foi exemplar: pris�es, deporta��es para a Guiana, guilhotina, expurgo na Guarda Nacional. Mas a fome continuava gerando desespero. Em 20 de maio de 1795 (1� de Pradial), outra multid�o, principalmente mulheres, invadiu de novo a Conven��o e um deputado foi morto na confus�o. Os deputados fugiram, s� restando os "montanheses"(85), que votaram alguns decretos em atendimento �s reivindica��es dos manifestantes. Algumas horas depois, retomada a Conven��o pela tropa governista, esses decretos foram anulados e os "montanheses" foram acusados de cumplicidade com os "desordeiros". No dia 23 de maio, 20.000 soldados cercaram o faubourg (bairro popular do sub�rbio) de Saint-Antoine, que capitulou. Desta vez, repress�o ainda mais feroz, inclusive condena��o � morte pelo Tribunal Revolucion�rio de seis deputados "montanheses" (todos tentaram o suic�dio na pris�o, mas tr�s n�o morreram e foram conduzidos moribundos � guilhotina). Ao mesmo tempo em que esmagavam o movimento popular, os burgueses termidorianos, muito conscientes do que convinha a seus interesse de classe, n�o pensavam numa volta ao ancien r�gime: uma expedi��o de monarquistas emigrados, capturada em 21 de julho de 1.795 ap�s desastrada tentativa de invas�o da Fran�a, foi punida com oitocentas condena��es � guilhotina(86). Dois decretos da Conven��o, nessa fase de vit�ria termidoriana, foram extraordinariamente sugestivos: em 12 de junho de 1795 foi proscrito o uso da palavra "revolucion�rio"; e em 24 de junho foi ordenada a destrui��o dos edif�cios dos jacobinos da rua Saint-Honor�, para dar lugar a um...mercado(87). Nessa nova atmosfera pol�tica, nem pensar mais em aplicar a Constitui��o de 1793. Entre 4 de julho e 17 de agosto de 1795, a Conven��o Nacional discutiu e, em 22 de agosto, aprovou uma nova Constitui��o - a terceira ap�s a Revolu��o. Tinha 377 artigos, continuava buscando legitimidade nos "direitos naturais" e cristalizava um recuo em rela��o aos avan�os experimentados pelos Direitos Humanos na Constitui��o de 1793. Come�ava com uma declara��o de direitos e deveres que, desde logo, contemplava no artigo 5� a propriedade com uma defini��o de sentido individualista e sem limita��es, como nas Constitui��es anteriores: "a propriedade � o direito de desfrutar e dispor de seus bens, rendas, do fruto de seu trabalho e da ind�stria". O artigo 8� da Declara��o de deveres indicava o fundamento da sociedade: "� na manuten��o das propriedades que repousam a cultura das terras, todas as produ��es, todo meio de trabalho e toda a ordem social". Para algu�m obter a condi��o de cidad�o, a Constitui��o passava a exigir o pagamento de "uma contribui��o direta, territorial ou pessoal ". O enunciado solene do artigo 1� da "Declara��o" de 1789 ("Os homens nascem e permanecem livres e iguais em direitos") foi abandonado e, na Constitui��o de 1795, substitu�do (art. 3�) por: "A igualdade consiste no fato de a lei ser igual para todos". O princ�pio do voto universal foi abolido e, em seu lugar, foi restabelecido (art. 35) o sistema de voto censit�rio de 1791, por�m desta vez muito mais excludente socialmente: "Ningu�m poder� ser eleitor se n�o tiver 25 anos completos e n�o reunir �s qualidades necess�rias para exercer os direitos de cidad�o franc�s uma das condi��es seguintes, a saber: nas comunas com mais de 6 mil habitantes, ser propriet�rio ou ter o usufruto de um bem cuja renda for avaliada como igual ao valor local de duzentos dias de trabalho, ou ser o locat�rio de uma moradia avaliada numa renda igual ao valor de 150 dias de trabalho, ou de um bem rural avaliado em duzentos dias de trabalho. Nas comunas com menos de 6 mil habitantes, ser propriet�rio ou ter o usufruto de um bem cuja renda for avaliada corno igual ao valor local de cem dias de trabalho. E no campo, ser propriet�rio ou ter o usufruto de um bem cuja renda for avaliada como igual ao valor local de 150 dias de trabalho, ou ser arrendat�rio ou meeiro de bens avaliados em duzentos dias de trabalho...". O Poder Legislativo adotava, "prudentemente", o sistema bicameral, como na Inglaterra e nos Estados Unidos: uma c�mara baixa (o Conselho dos Quinhentos) e uma c�mara alta (o Conselho dos Anci�os). Tamb�m o princ�pio da elegibilidade universal era restringido: "Para ser eleito ao Conselho dos Quinhentos era preciso ter trinta anos completos e ter estado domiciliado no territ�rio da Rep�blica durante os dez anos precedentes � elei��o. A iniciativa das leis cabia a este Conselho. (...) O Conselho dos Anci�os era composto de 250 membros. Para participar dele, era preciso ter quarenta anos, ser vi�vo ou casado e ter domicilio no territ�rio da Rep�blica h� quinze anos. Ele aprovava ou rejeitava as propostas do Conselho dos Quinhentos. 'O Conselho dos Quinhentos, por ser composto de membros mais jovens, propor� os decretos que lhe parecerem �teis; ele ser�', observava Boissy d'Anglas, 'o pensamento e, por assim dizer, a imagina��o da Rep�blica; o Conselho dos Anci�os ser� sua raz�o'". O Poder Executivo era entregue a um Diret�rio de cinco membros, eleitos pelos Conselhos. Os direitos econ�micos-sociais do povo, que haviam se beneficiado de um in�cio de acolhida na Constitui��o de 1793, foram inteiramente deixados de lado. A Comuna de Paris, de lembran�a t�o assustadora para a burguesia, deixava de existir, e o direito de insurrei��o, exaltado na Constitui��o de 1793, n�o voltou a ser mencionado(88). Essa Constitui��o de 1795 (Ano III) consagrava finalmente, no plano jur�dico, a preponder�ncia social e pol�tica da burguesia e do capital. O desprezo dos liberais pelo povo, que seria doravante marca distintiva de sua ideologia, foi sintetizado de modo memor�vel pelo convencional Boissy d'Anglas, relator do projeto dessa Constitui��o, em seu discurso preliminar de 23 de junho de 1795: "A igualdade civil, eis tudo o que o homem razo�vel pode exigir. A igualdade absoluta � uma quimera; para que pudesse existir, seria preciso que existisse igualdade total no esp�rito, na virtude, na for�a f�sica, na educa��o e na fortuna de todos os homens. Em v�o a sabedoria se extenuaria para criar uma constitui��o se a ignor�ncia e a falta de interesse pela ordem tivessem o direito de serem aceitas entre os guardi�es e administradores desse edif�cio. N�s devemos ser governados pelos melhores, os melhores s�o os mais instru�dos e os mais interessados na manuten��o das leis. Ora, com pouqu�ssimas exce��es, os senhores s� encontrar�o homens assim entre aqueles que, possuindo uma propriedade, s�o ligados ao pa�s que a cont�m, �s leis que a protegem e que devem a essa propriedade e ao conforto que ela proporciona a educa��o que os tornou apropriados para discutir com sagacidade e justi�a as vantagens e desvantagens das leis que determinam o destino da p�tria". E Boissy d'Anglas concluiria, numa f�rmula que resumia a pol�tica social dos termidorianos: "Um pa�s governado pelos propriet�rios � de ordem social, aquele onde os n�o-propriet�rios governam est� em estado de natureza"(89). Esse paramento constitucional olig�rquico foi levado, no final de setembro de 1795 (Vindim�rio do ano IV), � consulta "popular" - menos de um milh�o e cem mil eleitores, numa popula��o que j� ultrapassava 25 milh�es de pessoas. Formalmente, estava tudo em ordem, conforme o direito constitucional positivo. Mas estava longe de significar paz social. Ao contr�rio: os setores populares e o incipiente proletariado urbano finalmente descobriam qual era o lugar que o reino do lucro lhes reservava e, pela primeira vez, pensariam em buscar um projeto social que atendesse a seus pr�prios interesses enquanto maioria oprimida. Esse novo caminho come�ou a ser aberto por Gracchus Babeuf, um jovem estudioso de origem pobre que se tornara l�der popular muito ativo desde 1789 (inclusive sofrera duas pris�es) e que amadurecera suas id�ias extraindo li��es dos desdobramentos sociais das v�rias fases da Revolu��o. Diferentemente da cren�a predominante entre jacobinos e sans culottes na fun��o redentora da pequena propriedade individual, a posi��o de Gracchus Babeuf evolu�ra para a defesa aberta da propriedade comum ou coletiva dos meios sociais de produ��o. No dia 30 de novembro de 1.795 (9 de Frim�rio do ano IV), Babeuf publicou no jornal Le Tribun du Peuple seu "Manifesto dos Plebeus", verdadeira declara��o de guerra aos termidorianos: "A democracia � a obriga��o dos que t�m demais de saciar os que n�o t�m o bastante; todo o d�ficit que se encontra na fortuna destes �ltimos procede apenas do que os outros lhes roubaram. N�s definiremos a propriedade, provaremos que o territ�rio n�o � de ningu�m, mas de todos. Provaremos que tudo aquilo que um indiv�duo a�ambarca al�m do que pode aliment�-lo � um roubo social, que, portanto, � justo tomar de volta. A �nica maneira de faz�-lo � implantar a administra��o comum, extinguir a propriedade particular, vincular cada homem ao talento, � ind�stria que conhece, obrig�-lo a entregar o fruto de seu trabalho em esp�cie �s lojas comuns e criar uma administra��o �nica de distribui��o... Este governo cuja viabilidade a experi�ncia demonstrou, pois � aplicado aos 1 milh�o e 200 mil homens de nossos doze ex�rcitos (o que � poss�vel em pequena escala, � poss�vel em grande), � o �nico que pode resultar em felicidade universal, em felicidade comum, objetivo da sociedade"(90). O governo do Diret�rio ordenou a pris�o de Babeuf e, numa opera��o comandada em 27 de fevereiro de 1796 por um jovem general que fazia carreira mete�rica (Napole�o Bonaparte), fechou o clube pol�tico do Panth�on, que agrupava militantes jacobinos conquistados para essas novas id�ias. Babeuf escapou e, na clandestinidade, refletiu sobre as novas condi��es pol�ticas em que se encontrava a Fran�a: os oper�rios dos faubougs j� haviam sido desarmados pelos termidorianos desde os dist�rbios de Germinal e Pradial; a repress�o policial aos movimentos populares tornara-se sufocante; portanto, n�o haveria mais espa�o de liberdade para repetir-se uma insurrei��o de massas � maneira antiga, isto �, com pouca organiza��o pr�via e movida quase s� pela propaganda revolucion�ria. Por isso, criou um comit� clandestino que estabeleceu la�os discretos com a tropa e com os bairros oper�rios, fez circular um "Manifesto dos Iguais"(91), e come�ou a preparar um levante em segredo. Mas seus planos foram abortados por um delator e a rebeli�o ficou restrita a um �nico acampamento do regimento de drag�es. Houve centenas de pris�es e deporta��es. Babeuf e outros companheiros foram executados em 27 de maio de 1797. Esse movimento, que entrou para a hist�ria com o nome de "Revolta dos Iguais", � considerado o marco inicial de um longo processo de transforma��o da consci�ncia dos trabalhadores, no sentido de passarem a exercer uma a��o pol�tica independente da burguesia. Seu programa - uma esp�cie de "comunismo de reparti��o", no dizer de Lefebvre - ainda refletia o pequeno grau de concentra��o industrial e oper�ria do capitalismo do final do s�culo XVIII e antecipava as idealiza��es de reforma social de inspira��o moral da primeira metade do s�culo XIX que seriam conhecidas como "socialismo ut�pico". Apesar do esmagamento da resist�ncia popular, o regime do Diret�rio criado pelos termidorianos n�o consolidaria uma institucionaliza��o duradoura. Os termidorianos, sem o apoio de massas de outrora, e ainda amea�ados - pelas monarquias absolutistas dos pa�ses � sua volta e pela resist�ncia aristocr�tica interna, que n�o se dissipara por completo - passaram a depender cada vez mais do ex�rcito para impor a ordem. A turbul�ncia pol�tica na Fran�a p�s-revolucion�ria ainda continuaria por v�rios anos, mas agora as lutas se davam no seio das novas classes dominantes, ou contra rea��es de inspira��o monarquistas - cabendo, quase sempre, uma quota de repress�o para as franjas de setores populares que fossem levadas de rold�o em cada epis�dio. Seguiram-se diversos golpes (em Frutidor de 1797, Floreal de 1.798, Pradial de 1799) at� tudo culminar no golpe de Estado de 10 de novembro de 1799 (18 de Brum�rio do Ano VIII), pelo qual a burguesia francesa rasgou sua pr�pria Constitui��o e entregou o poder ao general Napole�o Bonaparte, para que ele impusesse a estabilidade pol�tica com base no programa econ�mico liberal de 1789-1791 e levasse o pa�s � vit�ria em guerras por toda a Europa (at� no Egito) - que, rapidamente, assumiam a natureza de expedi��es militares para anexa��o de territ�rios e conquista de mercados. Come�ava a ditadura "cesarista" de Napole�o, primeiro em sua forma ainda remotamente republicana (regime do "Consulado", 1799-1804), deslizando depois para o regime imperial absolutista (1804-1815), mas, em ambos os casos, a servi�o da edifica��o e expans�o da ordem capitalista francesa na Europa. Bonaparte era a "pessoa adequada para concluir a revolu��o burguesa e come�ar o regime burgu�s"(92) - isto a hist�ria provou. As guerras napole�nicas certamente concretizaram a voca��o universal da Revolu��o Francesa, aniquilando a estrutura feudal remanescente por onde passavam seus ex�rcitos, e exportando as institui��es e leis burguesas para esses pa�ses. O C�digo Napole�nico de 1804, que se tornaria modelo de estatuto jur�dico do capitalismo para grande parte das na��es, simboliza adequadamente isso: cerca de 80% dos seus dispositivos dizem respeito, direta ou indiretamente, � propriedade, �s rela��es contratuais e n�o contratuais dela decorrentes ou a institutos jur�dicos que lhes s�o aparentados (t�tulos de cr�dito, sociedades an�nimas ou comandit�rias, posse, sucess�es, etc.). Mesmo ap�s a debacle final de Waterloo, em 1815, as velhas rela��es feudais n�o puderam mais retornar de modo pleno, seja na Fran�a, seja em toda a Europa ocidental. Contudo, sob o prisma de uma hist�ria social dos Direitos Humanos, esse per�odo n�o suscita mais interesse, sen�o pelo que passaria a apresentar de negativo. A Revolu��o Francesa - e suas extens�es militares por quase todo o continente - j� havia esgotado o que tinha a oferecer neste terreno: igualdade civil e liberdade individual - uma e outra muito relativizadas pela desigualdade social que se consolidaria no capitalismo. Isso n�o foi pouco, se comparado com o modo de vida na sociedade feudal, mas deixava muito a desejar para a maioria da popula��o que, como visto, sonhara mais alto. Os anseios de igualdade social ou, ao menos, de algo que se aproximasse disso, foram ferozmente frustrados pelos revolucion�rios burgueses que, malgrado sua alian�a com o campesinato e com as massas populares urbanas, sempre conservaram a hegemonia pol�tica e, por isso, imprimiram ao processo de transforma��es a marca dos seus interesses de classe. A pr�pria igualdade pol�tica formal (sufr�gio universal e elegibilidade universal), motivo de retumbantes discursos, nunca passou de ret�rica conveniente, mesmo durante o brev�ssimo per�odo (1792-1793) em que as classes populares quase conseguiram impor seus pontos de vista a esse respeito. Os direitos de votar e ser votado ficaram, de fato, restritos � elite econ�mica, modelo que se disseminou at� o final do s�culo XIX, seja por muitas variantes de qualifica��o censit�ria do eleitorado (isto �, baseada em censo pr�vio de patrim�nio ou renda), seja mediante subterf�gios jur�dicos aparentemente "democr�ticos", �s vezes at� engenhosos. Na Inglaterra do s�culo XIX, por exemplo, "nenhum cidad�o s�o e respeitador da lei era impedido, devido ao status pessoal, de votar. Era livre para receber remunera��o, adquirir propriedade ou alugar uma casa e para gozar quaisquer direitos pol�ticos que estivessem associados a esses feitos econ�micos"(93). Em outros casos, o direito de voto n�o era universal simplesmente porque uma parte enorme dessa "universalidade" continuaria por muito tempo na escravid�o - situa��o da maioria dos pa�ses americanos, inclusive dos EUA. Quanto �s mulheres, o balan�o da Revolu��o Francesa iniciada em 1789 n�o poderia ser mais melanc�lico: nada lhes foi concedido. Assim como Claire Lacombe, foi em v�o que outra mulher not�vel, Olympe de Gouges, tentou reivindicar igualdade direitos: "A lei deve ser a express�o da vontade geral; todas as cidad�s e cidad�os devem participar pessoalmente, ou por meio de seus representantes, de sua cria��o; ela deve ser a mesma para todos; todas as cidad�s e todos os cidad�os, sendo iguais a seus olhos, devem ter igual acesso a todas as dignidades, lugares e empregos p�blicos, segundo suas capacidades, e sem outra distin��o al�m de suas virtudes e talentos"(94). Tamb�m terminou na guilhotina.

"Restaura��o" e "Revolu��o Industrial": Direitos Humanos em crise Com a derrota definitiva de Napole�o em 1815 perante os ex�rcitos da coliga��o anti-francesa (principalmente �ustria, Inglaterra, R�ssia e Pr�ssia), iniciavam-se quinze opressivos anos em que foram abolidos da Europa continental quase todos os vest�gios de liberdades - exceto, evidentemente, a liberdade de empreendimento e de lucro. Foi o per�odo conhecido como "Restaura��o". Sob a batuta da "Santa Alian�a" (R�ssia, �ustria e Pr�ssia), monarquias reacion�rias retornaram ao poder, promoveram a ca�a sistem�tica aos militantes revolucion�rios, colocaram a imprensa sob censura e se esfor�aram por expurgar do ambiente cultural europeu aquelas "perigosas" id�ias de liberdade e igualdade. A Inglaterra, satisfeita com a derrota imposta � velha rival, ficou fora da "Santa Alian�a", seja porque lhe convinha cuidar de seus pr�prios interesses econ�micos, seja porque sua burguesia liberal e sua aristocracia h� muito tempo j� haviam superado o absolutismo do rei e negociado um modus vivendi entre si. Na Fran�a, a monarquia foi restaurada em 1815, assumindo o trono Lu�s XVIII, irm�o de Lu�s XVI. Mas isso n�o significou o retorno ao ancien r�gime anterior a 1789: as rela��es econ�micas capitalistas j� estavam perfeitamente consolidadas e, politicamente, a grande burguesia francesa n�o teve maiores dificuldades para acomodar-se a um regime que n�o interferiu na acumula��o de capital. A express�o mais caracter�stica da resist�ncia popular europ�ia durante os anos sombrios da Restaura��o assumiu a forma do movimento dos carbon�rios(95). Nesse ambiente de conservadorismo, os Direitos Humanos, sofreram retrocesso generalizado, despontando contra eles uma agressiva cr�tica promovida pelos governos e pela Igreja Cat�lica. "Para os governos conservadores depois de 1815 - e que governos da Europa continental n�o o eram? - o encorajamento dos sentimentos religiosos e das igrejas era uma parte t�o indispens�vel da pol�tica quanto a organiza��o da pol�tica e da censura: o sacerdote, o policial e o censor eram agora os tr�s principais apoios da rea��o contra a revolu��o. (...) Al�m do mais, os governos genuinamente conservadores se inclinavam a desconfiar de todos os intelectuais e ide�logos, at� dos que eram reacion�rios, pois, uma vez aceito o principio do racioc�nio em vez da obedi�ncia, o fim estaria pr�ximo. Conforme escreveu Friedrich Gentz (secret�rio de Metternich) a Adam Mueller, em 1819: 'Continuo a defender esta proposi��o: a fim de que a imprensa n�o possa abusar, nada ser� impresso nos pr�ximos...anos. Se este princ�pio viesse a ser aplicado como uma regra obrigat�ria, sendo as rar�ssimas exce��es autorizadas por um Tribunal claramente superior, dentro em breve estar�amos voltando a Deus e � Verdade"(96). Embora sobrevivesse na Igreja um pensamento - minorit�rio e marginal - receptivo a no��es de progresso, sua hierarquia aferrou-se numa posi��o de repulsa, n�o s� �s id�ias de igualdade e de direitos sociais para os trabalhadores, como tamb�m antiliberal. Essa inflexibilidade perduraria at� o final do s�culo XIX, s� vindo a experimentar mudan�as em 1891, quando o Papa Le�o XIII publicou sua enc�clica Rerum Novarum, em que, ao mesmo tempo em que demarcava escrupulosa dist�ncia do socialismo, lamentava os males sociais produzidos pelo capitalismo. Essa ofensiva ideol�gica de car�ter regressivo congelou os direitos das classes populares no patamar da igualdade civil (jur�dico-formal) alcan�ado durante a primeira fase da Revolu��o Francesa de 1789, sem concess�es que lhe estendessem os direitos pol�ticos quase alcan�ados na segunda fase daquela revolu��o. Al�m da "Restaura��o", abateram-se tamb�m sobre os Direitos Humanos novos danos, n�o mais decorrentes de resqu�cios feudais ou do absolutismo, mas do pr�prio desenvolvimento da economia capitalista. No in�cio do s�culo XIX, come�aram a estender-se sobre partes da Europa os efeitos da "Revolu��o Industrial" que j� estava adiantada na Inglaterra. Neste pa�s, a outra grande pot�ncia europ�ia daquele tempo e inimiga hist�rica da Fran�a, a pol�tica j� havia acertado o passo com a burguesia h� mais de um s�culo. Pela "Revolu��o Gloriosa" (1688), o Parlamento, dominado por uma alian�a da alta burguesia com a nobreza anglicana libe-ral, apoiou o pr�ncipe Guilherme de Orange, que destronou militarmente seu sogro, o rei Jaime II. Essa uni�o da maioria das classes dominantes no Parlamento possibilitou-lhes mobilizarem as classes populares em seu favor, sem perder o controle sobre elas (como ocorrera na Fran�a), e acarretou a substitui��o revolucion�ria do absolutismo por uma monarquia constitucional bicameral. Foi, ent�o, assinado o Bill of Rights (Declara��o de Direitos), implantou-se a liberdade de imprensa, a livre iniciativa econ�mica desvencilhou-se de restri��es anteriores, e logo desenvolveram-se outras reformas que permitiram � acumula��o privada de lucro erigir-se em meta dominante das pol�ticas governamentais(97). Os resqu�cios do problema campon�s foram "resolvidos" pelos Enclosure Acts ("decretos de cercamentos"), pelos quais as antigas terras de uso comum foram cercadas e interditadas aos camponeses, for�ando seu �xodo massivo para as cidades, dando lugar ao surgimento de extensas fazendas para a produ��o de l� e cereais. Formou-se assim na Inglaterra, em poucas d�cadas, uma numerosa classe oper�ria urbana: economicamente, "livre" de seus antigos meios de produ��o e, juridicamente, "livre" para locomover-se do campo para os bairros miser�veis das cidades e l� abra�ar a perspectiva de vida que lhe restava, ou seja, vender sua for�a de trabalho a baix�ssimo pre�o a quem quisesse empreg�-la. A Inglaterra j� dispunha tamb�m de vasto imp�rio colonial, al�m de haver-se tornado a maior pot�ncia comercial da �poca. Quando, no �ltimo quarto do s�culo XVIII, sobreveio intenso desenvolvimento tecnol�gico - inven��o da fiandeira e do tear mec�nicos, produ��o de ferro com carv�o de coque, navios e locomotivas a vapor, etc. - a burguesia brit�nica p�de tirar partido da reuni�o privilegiada dessas duas condi��es (abund�ncia de for�a de trabalho "livre" e monop�lio quase solit�rio do mercado mundial) para promover a substitui��o das antigas manufaturas pela ind�stria mecanizada moderna. O pa�s ganhou dianteira no desenvolvimento do capitalismo e, em 1780, j� iniciava o grande salto produtivo da Revolu��o Industrial, que faria dele a principal pot�ncia econ�mica, militar e colonial do planeta por mais de cem anos. Mais devagar, e com algum atraso, essas transforma��es tecnol�gicas e produtivas foram se operando em outros pa�ses ao longo da primeira metade do s�culo XIX(98). E foram sempre acompanhadas do desenvolvimento ou consolida��o de no��es jur�dicas novas - correspondentes a essas mudan�as econ�micas - como, por exemplo, o hoje t�o familiar instituto do "sujeito de direitos", inerente � igualdade jur�dica e indispens�vel para que compra e venda capitalista da for�a de trabalho pudesse passar a ter livre curso(99). As consequ�ncias sociais da Revolu��o Industrial s�o bem conhecidas, mas � �til fixar na mem�ria seus tra�os de maior relevo. Por um lado, multiplicou enormemente a riqueza e o poderio econ�mico da burguesia. Por outro, desestruturou o modo tradicional de vida da popula��o, tornando-o permanentemente inst�vel, aprofundando dramaticamente as desigualdades sociais e fazendo tornarem-se familiares duas realidades terr�veis: o desemprego e a aliena��o do trabalhador em rela��o ao seu produto. No antigo sistema de corpora��es de of�cios da �poca do feudalismo, os artes�os, como se sabe, eram donos dos seus instrumentos e objetos de trabalho, produziam com habilidade pessoal cada artigo em sua casa-oficina, do come�o ao fim, para um mercado pequeno e est�vel e colhiam os resultados financeiros de sua atividade. No sistema manufatureiro, que havia se desenvolvido na Europa durante a fase inicial do capitalismo (mercantilismo, mais ou menos entre os s�culos XVI e XVIII), essa independ�ncia do trabalhador deu o primeiro passo em dire��o ao desaparecimento: os artes�os quase sempre ainda eram propriet�rios de seus instrumentos, mas o crescimento e a instabilidade do mercado for�aram-nos a trabalharem por encomendas de capitalistas-mercadores, de quem passaram, inclusive, a depender para o adiantamento das mat�rias-primas. Havia casos em que a antiga oficina j� tendia a se expandir, agregando mais empregados e come�ando a introduzir uma divis�o de trabalho com especializa��o de fun��es entre eles. Os artes�os, embora j� estivessem se tornando tarefeiros-assalariados, ainda executavam pessoalmente quase todas as tarefas necess�rias � produ��o de um artigo, mantendo o conhecimento do conjunto de seu processo produtivo. Com a Revolu��o Industrial, tudo se transformou: o empres�rio capitalista, dono dos novos meios de produ��o (m�quinas, instrumentos, mat�rias primas e instala��es) passou a agrupar no seu estabelecimento grande n�mero de assalariados sob seu comando e a habilidade individual perdeu import�ncia, pois a f�brica mecanizada generalizou e radicalizou a divis�o do trabalho, fragmentando a produ��o de cada artigo em etapas sucessivas e estanques, cada uma delas exigindo quase s� movimentos repetitivos do trabalhador. Completava-se, assim, a separa��o do trabalhador em rela��o a seu produto: n�o possu�a mais os meios de produ��o, perdeu o dom�nio t�cnico do conjunto do processo produtivo, e deixou de ser senhor dos resultados de seu trabalho. Como a produtividade das f�bricas mecanizadas era muito maior do que a das manufaturas, elas n�o tinham necessidade de absorver toda a imensa for�a de trabalho "liberada", seja pela expuls�o dos camponeses das �reas rurais, seja pela ru�na dos remanescentes urbanos do antigo artesanato individual. Em consequ�ncia, milh�es de trabalhadores vieram a compor o que viria a ser chamado de "ex�rcito industrial de reserva": multid�es de desempregados que, nos momentos de expans�o da economia, eram convocados dessa "reserva" e retornavam ao assalariato enquanto o "capit�o" da ind�stria deles necessitasse. Como essa "reserva" humana nunca se esgotasse, ela logo passou a desempenhar a fun��o econ�mica de manter baixos os sal�rios dos que estivessem empregados. � medida em que o capitalismo caminhou para o amadurecimento, duas caracter�sticas do seu funcionamento foram se tornando evidentes: primeiro, uma contradi��o completa entre o car�ter social da produ��o e a natureza individual da apropria��o de seus resultados; segundo, uma tend�ncia � anarquia na produ��o. No artesanato feudal, como visto, tanto a produ��o quanto a apropria��o de seus resultados estavam unidas na pessoa do artes�o. No capitalismo concorrencial esses dois momentos sofreram cis�o vertical: o novo modo de produ��o, com extremada divis�o social do trabalho e meios de produ��o mecanizados, demandava o concurso de centenas ou de milhares de trabalhadores em cada f�brica, ou em f�bricas sucessivas, agregando ainda trabalhos desenvolvidos virtualmente por toda a sociedade, desde a extra��o das mat�rias primas, at� culminar na mercadoria acabada; mas a apropria��o dos resultados dessa cadeia produtiva social passava a ser feita individualmente pelos propriet�rios dos novos meios de produ��o, que "redistribu�am" uma parte desses resultados sob a forma de sal�rios. A desigualdade, n�o mais pelo privil�gio de nascimento, estava instalada no �mago do sistema - era inerente � sua l�gica. Por outro lado, como a �nica motiva��o produtiva era a busca do lucro, os capitalistas concentravam-se continuamente nos setores que mais favorecem isso e concorriam entre si pelo aumento da produ��o enquanto perdurasse a demanda do mercado. Contraditoriamente, quanto mais a produ��o se revestia de r�gida disciplina e organiza��o no interior da f�brica, mais desorganizada socialmente se tornava. Periodicamente, essa corrida sem planejamento social atingiria o ponto de satura��o e a crise de superprodu��o se instalaria com sua coorte de fal�ncias, crescimento do desemprego e da mis�ria. N�o que tivesse havido superprodu��o em rela��o �s necessidades de toda a sociedade; a superprodu��o � relativa �quela parcela da popula��o com poder aquisitivo, chamada mercado consumidor, � qual a produ��o capitalista se dirige. Malgrado as extraordin�rias possibilidades produtivas geradas pela ci�ncia e pela tecnologia, a atividade econ�mica se deter�, permanecendo ociosa - nos limites do mercado(100). Assim, os efeitos combinados da "Restaura��o" e da "Revolu��o Industrial" instauraram na Europa, ao longo da primeira metade do s�culo XIX, o que pode ser chamado de uma primeira grande crise dos Direitos Humanos, desde que haviam sido formulados pelos fil�sofos racionalistas do s�culo XVIII. Ela se configurava de duas maneiras: como estagna��o e como agravamento. Era como estagna��o no plano institucional, devido � resist�ncia, tanto da rea��o mon�rquica como dos liberais, em estender os direitos pol�ticos aos trabalhadores. E era como agravamento no plano econ�mico-social pois, al�m da converg�ncia dessas duas for�as no prop�sito de manter a igualdade em estado de raquitismo jur�dico-formal (recusa em ampli�-la ao campo social), a Revolu��o Industrial havia tamb�m piorado dramaticamente as condi��es de vida dos trabalhadores. At� medidas institu�das com o prop�sito exterior de aliviar os tormentos dos desvalidos, muitas vezes terminavam por agrav�-los de outras formas: "O liberalismo econ�mico se prop�s a solucionar o problema dos trabalhadores de sua maneira usual, brusca e impiedosa, for�ando-os a encontrar trabalho a um sal�rio vil ou a emigrar. A Nova Lei dos Pobres de 1814, um estatuto de insensibilidade incomum, deu aos trabalhadores (da Inglaterra) o aux�lio-pobreza somente dentro das novas workhouses (onde tinham que se separar da mulher e dos filhos para desestimular o h�bito sentimental e n�o malthusiano de procria��o impensada) e retirou a garantia paroquial de uma manuten��o m�nima"(101). Nessas ocasi�es em que a mis�ria batesse � porta, sequer vest�gios de cidadania se preservariam: "...os indigentes abriam m�o, na pr�tica, do direito civil da liberdade pessoal devido ao internamento na casa de trabalho, e eram obrigados por lei a abrir m�o de direitos pol�ticos que possu�ssem. Essa incapacidade permaneceu em exist�ncia at� 1918"(102). Claro, aos que n�o viam mais como sobreviver no Velho Mundo, restava a alternativa de renunciar a tudo, cruzar o oceano e ... recome�ar a vida na Am�rica. Pelo menos na sua grande por��o norte, n�o havia reis e, dizia-se, era a terra da liberdade.

A Revolu��o Americana Num certo sentido, ainda mais se comparado com a opressiva Europa da �poca da Restaura��o, o novo pa�s dos Estados Unidos da Am�rica era mesmo a terra da liberdade - ao menos para os imigrados europeus do sexo masculino e seus descendentes, e mais ainda quando tivessem amealhado algumas posses (o que n�o exigiria sacrif�cios t�o imensos quanto na Europa, considerada a grande disponibilidade de terras). Os "pele-vermelha", como se sabe, n�o contavam, sen�o como inc�modo a ser removido, e para os escravos trazidos da �frica n�o fazia qualquer diferen�a se o seu propriet�rio era um liberal iluminista ou um retr�grado renitente. Embora os �ndios e os escravos constitu�ssem a maioria da popula��o, n�o podia mesmo fazer parte das cogita��es dos colonizadores levar at� eles o espinhoso debate sobre Direitos "naturais" do homem - isso n�o conviria � expans�o dos neg�cios. Mas, exceto por esse "detalhe", sob o ponto de vista dos europeus dominantes havia realmente, h� muito tempo, desde antes da independ�ncia, mais liberdade individual na Am�rica do Norte. Uma raz�o bastante antiga para isso consistia na circunst�ncia de o feudalismo, a n�o ser por algumas manifesta��es ideol�gicas tardias e dilu�das, nunca ter sido transplantado para l� enquanto modo de organiza��o da sociedade e da economia, mesmo porque, al�m de outros motivos hist�ricos, a imensid�o de territ�rios vazios (isto �, n�o ocupados por europeus) e a popula��o rarefeita tornavam isso completamente desnecess�rio e impratic�vel. Mais importante ainda: a Inglaterra havia se livrado do absolutismo cem anos antes que a Fran�a e a Europa em geral (desde, pelo menos, a Revolu��o Gloriosa de 1688) e desenvolvido tamb�m mais cedo as no��es jur�dicas de liberdade individual e garantias pessoais(103). Essas no��es, com as restri��es � participa��o que existiam na metr�pole (como o voto censit�rio para as assembl�ias locais), foram estendidas aos s�ditos das treze col�nias. No in�cio do s�culo XVIII, quando a popula��o inglesa na costa atl�ntica da Am�rica do Norte j� adquirira certa import�ncia, ela n�o estava submetida a qualquer coisa que se assemelhasse a feudos ou a privil�gios civis (pelo menos, intoler�veis) decorrentes do nascimento. Mesmo o governador e os funcion�rios administrativos de cada col�nia sendo nomeados pelo rei, os habitantes que n�o fossem escravos, �ndios ou pessoas muito pobres j� contavam com prerrogativas que os europeus continentais s� muito depois iriam conquistar mediante revolu��es e guerras ao som da Marselhesa. A sociedade colonial tornava-se mais complexa e fortalecia-se uma classe dominante local que se interessava cada vez mais pela vida pol�tica: "Os pr�speros grandes negociantes, advogados, propriet�rios de terras e fazendeiros, que ocupavam elevada posi��o na sociedade colonial, vinham buscando, h� muito tempo, exercer influ�ncia nas institui��es pol�ticas que se haviam estabelecido em cada col�nia, tais como o conselho do governador e, especialmente, a assembl�ia. As assembl�ias eram eleitas pelos pr�prios colonos, pelo menos por aqueles que tinham patrim�nio suficiente para votar, os quais eram comumente em n�mero muito grande, e com o correr dos anos, as assembl�ias iam obtendo mais poder, � medida que tomavam por modelo a C�mara dos Comuns. Embora desejando manter-se leais ao rei, os colonos buscavam naturalmente certo grau de autonomia, e as elites que tinham assento nas assembl�ias procuravam transform�-las em miniparlamentos, recorrendo amplamente � tradi��o parlamentar inglesa para justificar suas reivindica��es"(104). O incessante crescimento dessa autonomia levou a que, "...quando o Parlamento de Londres, a partir de 1764, pretendeu instituir taxas sem o pr�vio consentimento dos colonos subjugados, estes as sentiram como uma viola��o de seus direitos. A agita��o e a revolta que se seguiram, foram, no fim das contas, a express�o de um civismo brit�nico. Tratava-se de manter, contra o governo e o rei ingl�s, as liberdades...da Inglaterra"(105). Os desentendimentos entre a Inglaterra e seus s�ditos na Am�rica, que terminaram conduzindo ao movimento pela independ�ncia, foram causados por medidas mercantis e tribut�rias adotadas pela metr�pole que, a partir da d�cada de setenta do s�culo XVIII, passaram a ser consideradas pelos colonos como indevidamente lesivas aos seus interesses comerciais e financeiros. "Desde meados do s�culo XVII, por exemplo, o com�rcio colonial fora regulado pelas Navigations Laws (Leis da Navega��o), que exigiam que alguns produtos coloniais fossem exportados diretamente para a Inglaterra, e apenas em navios ingleses ou coloniais, e poder-se-ia argumentar ser injusto que ainda se acrescentassem impostos a tais restri��es comerciais"(106). Duas tentativas do governo ingl�s de aplicar novos tributos �s suas possess�es americanas acirraram os �nimos dos fazendeiros, comerciantes e profissionais liberais l� estabelecidos: em 1764, uma taxa alfandeg�ria denominada Sugar Act (Lei do A��car) ou Plantation Act (Lei das Fazendas); em 1765, o Stamp Act (Lei do Selo), que seria o primeiro imposto interno das col�nias. "Algumas assembl�ias coloniais j� se haviam queixado de que a Lei do A��car significava que os norte-americanos estavam sendo tributados sem terem dado sua anu�ncia. A institui��o de um novo imposto interno pelo Parlamento levantou, de maneira ainda mais �spera, a pol�mica sobre se os colonos norte-americanos podiam ser tributados por um organismo no qual n�o eram diretamente representados. (...) A Lei do A��car havia incomodado sobretudo os habitantes da Nova Inglaterra, mas a Lei do Selo causou aborrecimento em todas as col�nias, pelo menos aos cidad�os influentes, como advogados, grandes negociantes, impressores e agricultores, cujas atividades comerciais foram diretamente afetadas pelas novas taxas. (...) Organiza��es secretas, conhecidas como Filhos da Liberdade, disseminaram-se pelas principais cidades para coordenar a resist�ncia e amea�ar os que apoiassem a Lei do Selo. Todos os distribuidores de selos foram obrigados a renunciar a seus cargos. Grandes negociantes constitu�ram associa��es de n�o-importa��o para boicotar mercadorias brit�nicas. Em outubro de 1765, nove col�nias enviaram representantes para um Congresso da Lei do Selo, reunido em Nova York, e este, ao mesmo tempo que insistiu em sua lealdade ao rei, insistiu tamb�m em que os colonos gozassem dos mesmos direitos que os ingleses da metr�pole, e que s� pudessem ser tributados por suas respectivas assembl�ias de representantes"(107). O Parlamento brit�nico acabou recuando e, em mar�o de 1766, revogou a Lei do Selo, mas aprovou o Declaratory Act (Lei Declarat�ria), em que firmava seu direito de tributar as col�nias. Em 1767, o Parlamento voltou � carga com o Revenue Act (Lei da Receita), criando tarifas alfandeg�rias sobre o ch� e diversos artigos manufaturados que as col�nias importavam. Os colonos deflagraram novo boicote aos produtos da metr�pole, come�aram a ocorrer agita��es e, em mar�o de 1770, cinco norte-americanos morreram durante a repress�o a um protesto, epis�dio que ficou conhecido como "Massacre de Boston". A Inglaterra cedeu novamente, mas, para fixar sua autoridade, manteve as tarifas sobre a importa��o de ch�. Os colonos contornaram a imposi��o, passando a comprar ch� contrabandeado, o que levou a Companhia das �ndias Orientais a perder quase todo o seu mercado americano. O Parlamento reagiu impondo, em 1773, o Tea Act (Lei do Ch�), que autorizava aquela Companhia a vender seu produto diretamente na Am�rica, com tarifas reduzidas, o que causou perda de lucros aos comerciantes norte-americanos envolvidos com o contrabando de ch�. A rebeldia aumentou, simbolizada pela Boston Tea Party (Festa do Ch� de Boston) de dezembro de 1773, em que americanos disfar�ados de �ndios jogaram ao mar um carregamento de ch� ingl�s que havia chegado ao porto. Em repres�lia, o governo ingl�s, mediante os Coercitive Acts (Leis Coercitivas) ou Intolerable Acts (Leis Intoler�veis), de 1774, baixou, dentre outras, as seguintes medidas repressivas: fechou o porto de Boston para disciplin�-lo, reduziu as prerrogativas da Assembl�ia de Massachusetts, proibiu manifesta��es p�blicas na cidade e aumentou os poderes do governador ingl�s de interferir na administra��o, na pol�cia e na magistratura da col�nia. Em vez de se intimidarem, os colonos intensificaram a resist�ncia: representantes de doze col�nias reuniram-se na Filad�lfia, em setembro de 1774, num primeiro Congresso Continental, que recusou a sujei��o tribut�ria dos norte-americanos � Inglaterra, decretou boicote geral �s mercadorias inglesas e proclamou os direitos dos norte-americanos � vida, � liberdade e � propriedade. Em fevereiro de 1775, o Parlamento brit�nico considerou formalmente que Massachusetts estava em sedi��o contra a metr�pole e o governo brit�nico preparou-se para repor a ordem. A partir da�, os acontecimentos precipitaram-se para a guerra de independ�ncia (abril de 1775 a setembro de 1883), durante a qual os norte-americanos obtiveram apoio econ�mico e militar da Fran�a (a partir de fevereiro de 1778) e da Espanha (a partir de 1779), pot�ncias rivais da Inglaterra. Foram, ent�o, proclamadas as famosas "Declara��es" americanas de direitos: a "Declara��o de Direitos do Bom Povo de Virg�nia" (12/01/1776) e a "Declara��o de Independ�ncia dos Estados Unidos da Am�rica" (4/7/1776). A "Declara��o de Direitos do Bom Povo de Virg�nia", considerada a primeira declara��o de direitos dos tempos modernos, enunciava em suas dezesseis se��es princ�pios e garantias assim sintetizados: igualdade natural de todos os homens e exist�ncia de direitos inatos de que n�o podem ser privados, "nomeadamente o gozo da vida e da liberdade, com os meios de adquirir e possuir a propriedade e procurar e obter felicidade e seguran�a" (se��o I); soberania popular (se��o II); governo para o bem comum, sob pena de mudan�a e substitui��o (se��o III); proibi��o de proventos ou privil�gios que n�o resultem de fun��o p�blica (se��o IV); separa��o de poderes (se��o V); sufr�gio masculino limitado aos que tiverem "consci�ncia suficiente do permanente interesse comum e dedica��o � comunidade" e proibi��o de tributa��o ou priva��o arbitr�ria da propriedade (se��o VI); proibi��o do descumprimento arbitr�rio de leis pelo governo (se��o VII); veda��o � pris�o ilegal e garantia dos direitos de defesa e de julgamento pelo j�ri popular, tanto em causas criminais (se��o VIII) como em lit�gios sobre a propriedade (se��o XI); proporcionalidade entre delitos e penas e proscri��o de penas cru�is (se��o IX); veda��o de ordens de busca ou de pris�o sem acusa��o espec�fica e baseada em fatos (se��o X); liberdade de imprensa (se��o XII); policiamento por mil�cias civis e subordina��o do ex�rcito � autoridade civil (se��o XIII); veda��o de exist�ncia de governo paralelo dentro do territ�rio de Virg�nia (se��o XIV); "firme sentimento de justi�a, modera��o, temperan�a, frugalidade e virtude" e respeito aos "princ�pios fundamentais" para garantir a liberdade e o governo livre (se��o XV); e garantia de liberdade religiosa (se��o XVI).(108) J� a "Declara��o de Independ�ncia dos Estados Unidos da Am�rica", adotada na Conven��o de Filad�fia de julho de 1776, proclamava e justificava o desligamento da Gr�-Bretanha. Seu segundo par�grafo tornou-se c�lebre(109). Declara��es similares foram emitidas por v�rias das col�nias que se transformariam em Estados federados do novo pa�s. A Constitui��o americana, aprovada na Conven��o de Filad�lfia de 17 de setembro de 1787, no princ�pio n�o incorporava uma declara��o de direitos fundamentais do indiv�duo. Contudo, nove das treze ex-col�nias exigiram que isso fosse providenciado, como condi��o para ratificarem a Constitui��o e aderirem � federa��o. A reivindica��o foi acatada e deu origem �s dez primeiras Emendas � Constitui��o, aprovadas em 1791. Acrescidas de outras Emendas aprovadas nos s�culos XIX e XX, elas configuram o chamado Bill of Rights norte-americano. As "Declara��es" e a Constitui��o americanas tinham claro fundamento na filosofia jusnaturalista da �poca e na tradi��o constitucional inglesa. Al�m de limitarem o poder arbitr�rio dos governantes sobre a pessoa (o que j� existia nos textos anteriores da ex-metr�pole), ampliavam a autonomia dos indiv�duos em rela��o ao Estado. Tratavam apenas de direitos civis e pol�ticos, nenhuma cogita��o de direitos sociais (isso n�o cabia no credo liberal). Mesmo os direitos civis e pol�ticos enunciados, teriam - malgrado o "universalismo" que perpassava as "Declara��es" - que percorrer uma longa jornada pela frente at� come�arem a ser estendidos a homens mais pobres, a escravos, a �ndios e a mulheres. Nos Estados do norte, a economia baseava-se menos no trabalho escravo - portanto, sua liberta��o incomodaria menos aos neg�cios - e as primeiras manifesta��es anti-escravagistas do novo pa�s defrontaram-se com menor resist�ncia. Em 1780, o Estado da Pensilv�nia j� planejou a aboli��o gradual da escravatura no seu territ�rio e, ao longo das d�cadas subsequentes, outros Estados renderam-se tamb�m a press�es nessa dire��o. "Onde ocorreu a emancipa��o, isso n�o significava, contudo, igualdade, pois at� mesmo os mais ardorosos dos libert�rios brancos tinham dificuldade em se livrar dos preconceitos acumulados. �s vezes, atribuiu-se aos negros um status an�logo ao dos �ndios, de n�o-escravos mas tamb�m n�o integralmente de cidad�os, pois seus direitos civis e pol�ticos eram restritos e imprecisos. Em todo caso, a grande maioria dos escravos vivia nos Estados atl�nticos do sul e, ali, eram por demais importantes para a economia agr�cola, e por demais numerosos para que aquelas sociedades cogitassem seriamente da emancipa��o"(110). Tanto na Declara��o de Virg�nia, como na portentosa Declara��o de Independ�ncia, afirmava-se que todos os homens s�o livres e iguais. Mas o pr�prio Thomas Jefferson, um dos fundadores da na��o americana e redator da Declara��o de Independ�ncia, continuou - ap�s essa Declara��o - a ser propriet�rio de quase duas centenas de escravos. Ainda se passariam mais noventa anos at� que os escravos negros fossem legalmente emancipados em toda a extens�o do pa�s - e, ainda assim, � custa de uma guerra civil (1861-1865) que matou mais de 600.000 pessoas. Mesmo em rela��o aos cidad�os livres, a quest�o da igualdade social ficou como antes - sua promo��o nada tinha a ver com o liberalismo - e a igualdade pol�tica deu passos imediatos em poucos Estados(111): "A n�o ser o confisco das propriedades dos legalistas, n�o houve durante aqueles anos qualquer empenho mais s�rio em redistribuir a propriedade ou a riqueza dentro das sociedades estaduais. Os patriotas ricos mantiveram sua riqueza e, freq�entemente, sua influ�ncia. Nenhuma das novas constitui��es estaduais concedeu o direito de voto a todos os homens, sem considerar qualquer outra qualifica��o, nem mesmo a todos os homens brancos e, na maioria delas, os grandes propriet�rios de terras mantiveram alguns privil�gios. Assim sendo, os levantes revolucion�rios n�o nivelaram aquelas sociedades norte-americanas"(112). Mas a press�o popular pela amplia��o do direito de voto surtiria efeitos antes do que na Europa, obtendo consider�veis progressos nos cinquenta anos posteriores � independ�ncia, o que colocaria os Estados Unidos, por volta de 1830 (no per�odo jacksoniano), na posi��o de pa�s em que o sufr�gio mais havia se universalizado (sempre para o sexo masculino). Na �poca, isso foi tido como "...uma espantosa inova��o, e os pensadores do liberalismo moderado que eram realistas o suficiente para saber que, mais cedo ou mais tarde, as amplia��es do direito de voto seriam inevit�veis, examinaram-na de perto e com muita ansiedade, notadamente Alexis de Tocqueville, cuja obra 'Democracia na Am�rica', de 1835, chegou a melanc�licas conclus�es sobre ela"(113). Nos anos que antecederam a guerra de independ�ncia, � medida em que a temperatura pol�tica foi subindo, numerosos artes�os urbanos, e at� os brancos mais pobres, foram sendo tomados pelo sentimento anti-brit�nico, o decorria tanto do temor, largamente difundido pela propaganda patri�tica, de a metr�pole reduzi-los todos � escravid�o, como da percep��o de que o aumento da autonomia econ�mica - inclusive com a liberdade de cria��o de manufaturas locais - ampliaria o reduzido mercado de trabalho, o que, obviamente, interessava de perto a quem n�o fosse membro da elite abastada. Outra importante base social para a luta de liberta��o nacional foi a grande classe de pequenos propriet�rios rurais: al�m de motiva��es econ�micas, eles tamb�m "...haviam sido atingidos pelo grande despertar religioso de meados do s�culo XVIII, o que os levava a voltarem-se contra as hierarquias eclesi�sticas tradicionais. Esse protestantismo igualit�rio constitu�a ainda uma poderosa for�a � �poca da Guerra da Independ�ncia, alimentando desconfian�a contra todo tipo de pompa, ostenta��o e hierarquia". A incorpora��o de classes populares ao movimento pela independ�ncia, embora de modo politicamente subalterno, favoreceu o florescimento de uma corrente democr�tica mais radical, que inclinou-se para o igualitarismo pol�tico. Seu porta-voz mais c�lebre talvez tenha sido Tom Paine, jornalista ingl�s de origem pobre e polemista not�vel, que fixou-se na Filad�lfia em 1774 e logo passou a fazer apaixonada prega��o republicana, n�o poupando a elite local: em 1775 j� vituperava a incoer�ncia de os ricos "...queixarem-se em t�o alto e bom som das tentativas de escraviz�-los, quando mant�m como escravos tantas centenas de milhares"(114). Em 1776, publicou o c�lebre livro-panfleto "Bom Senso", que causou forte impacto na opini�o p�blica: no mesmo ano, vendeu mais de cem mil exemplares(115) - o que ainda � bastante para os dias de hoje, foi espantoso para a reduzida popula��o alfabetizada das col�nias. Mas esse radicalismo republicano de matriz popular (muito moderado, se comparado com o subsequente jacobinismo franc�s), embora cumprisse papel mobilizador enquanto duraram os combates, nunca conseguiu prevalecer - o que explica o rumo pol�tico do pa�s ap�s a guerra de independ�ncia.

Enfim, as caracter�sticas do processo de surgimento dos Estados Unidos como na��o independente chamaram a aten��o dos historiadores para esta distin��o importante: devido a condi��es internas completamente diferentes das que existiam na Fran�a de 1789, a Revolu��o Americana n�o revolucionou a sociedade americana colonial, isto �, n�o transformou a estrutura econ�mico-social j� estabelecida internamente - nunca pretendeu isto - nem alterou o modo de viver, produzir e se relacionar a que estavam habituados os colonos. O que l� se derrubou n�o foi o feudalismo e o absolutismo - isto, a burguesia inglesa j� havia feito - mas os la�os coloniais externos. Por isso, "...o per�odo da Independ�ncia Americana, dito per�odo revolucion�rio, n�o questionava realmente o modo de vida dos habitantes das col�nias, suas rela��es m�tuas ou seus interesses imediatos. Fora da zona limitada das opera��es e das desordens passageiras suscitadas pelas manobras militares, prosseguia e prosseguiria a mesma exist�ncia, sem que se modificassem os equil�brios fundamentais. A Rep�blica federal americana continuou, sem grandes altera��es, um movimento que adquirira no curso do tempo seus equil�brios espec�ficos. P�s-se um presidente no lugar do monarca constitucional da Inglaterra; o Congresso de Washington substituiu o distante Parlamento de Londres. Alguns intelectuais entraram em pol�mica, de modo cort�s, quanto a essa transforma��o dos poderes, que influiu fracamente na vida cotidiana de uma popula��o habituada ao funcionamento de �rg�os representativos. Os insurretos americanos lan�aram m�o das armas para garantir uma liberdade que j� possu�am. Qualquer que tenha sido a emo��o dos momentos de crise, a viol�ncia dos sobressaltos populares e a coragem dos combatentes, a liberdade n�o se iniciou nos Estados Unidos em 1776-1777, em 1783 ou 1787; n�o foi arrancada das m�os do 'tirano' de Londres; n�o deu origem a uma nova ordem de coisas. Ela � contempor�nea do estabelecimento das primeiras col�nias. Os colonos se revoltaram porque tiveram o sentimento de que se queria despoj�-los das prerrogativas de que sempre haviam usufru�do. V�-se aqui, sem d�vida, uma diferen�a fundamental entre os acontecimentos da Am�rica e os da Fran�a. O que estava em jogo na Revolu��o Francesa era uma total muta��o da exist�ncia comunit�ria, uma transforma��o pela raiz da ordem social, das hierarquias tradicionais, das estruturas pol�ticas e econ�micas, uma redistribui��o da propriedade, uma renova��o dos valores psicol�gicos e morais, que tamb�m se afirmou na ordem da moral, da l�ngua, do costume. Nada seria como antes, enquanto nos Estados Unidos tudo continuou como antes, com exce��o de certas estruturas pol�ticas. A despeito de alguns violentos safan�es, as col�nias da Am�rica n�o foram submersas por um cataclisma; o abalo permaneceu superficial, e a continuidade sobrepujou a ruptura. Antes, como depois, habeas corpus � a lei do pa�s, e os cidad�os votavam para eleger seus representantes nas assembl�ias locais"(116). Essa diferen�a essencial entre o que aconteceu na Fran�a e na Am�rica do Norte transparece no diagn�stico do historiador liberal Alexis de Tocqueville que, no seu cl�ssico "O Antigo Regime e a Revolu��o", escreveu o seguinte: "Como a Revolu��o Francesa n�o teve apenas por objeto mudar um governo antigo, mas abolir a forma antiga da sociedade, ela teve de ver-se a bra�os a um s� tempo com todos os poderes estabelecidos, arruinar todas as influ�ncias reconhecidas, apagar as tradi��es, renovar os costumes e os usos e, de alguma maneira, esvaziar o esp�rito humano de todas as id�ias sobre as quais se tinham fundado at� ent�o o respeito e a obedi�ncia"(117). Ali�s, o fato de a Revolu��o Americana ter acontecido na d�cada que precedeu a Revolu��o Francesa e, portanto, ter tamb�m produzido antes suas "Declara��es" de direitos, suscitou, durante algum tempo, certa pol�mica - hoje mera curiosidade acad�mica - quanto a ter sido a "refer�ncia inspiradora" dos revolucion�rios franceses. Os que se ocuparam dessa hip�tese chamaram a aten��o para a circunst�ncia de Benjamin Franklin e Thomas Jefferson terem sido embaixadores dos Estados Unidos na Fran�a entre 1776 e 1789. "Na verdade, n�o foi assim, pois os revolucion�rios franceses j� vinham preparando o advento do Estado Li-beral ao longo de todo o s�culo XVIII. As fontes filos�ficas e ideol�gicas das declara��es de direitos americanas, como da francesa, s�o europ�ias, como bem assinalou Mirkine-Guetz�vitch, admitindo que os franceses de 1789 somente tomaram de empr�stimo a t�cnica das declara��es americanas, 'mas estas n�o eram, por seu turno, sen�o reflexo do pensamento pol�tico europeu e internacional do s�culo XVIII - dessa corrente da filosofia humanit�ria cujo objetivo era a Iibera��o do homem esmagado pelas regras caducas do absolutismo e do regime feudal. E porque essa corrente era geral, comum a todas as Na��es, aos pensadores de todos os pa�ses, a discuss�o sobre as origens intelectuais das Declara��es de Direito americanas e francesas n�o tem, a bem da verdade, objeto. N�o se trata de demonstrar que as primeiras Declara��es 'prov�m' de Locke ou de Rousseau. Elas prov�m de Rousseau, e de Locke, e de Montesquieu, de todos os te�ricos e de todos os fil�sofos. As Declara��es s�o obra do pensamento pol�tico, moral e social de todo o s�culo XVIII"(118). De maior relev�ncia para a compreens�o do processo hist�rico que se seguiu foi que, malgrado a Revolu��o Americana e suas "Declara��es" detenham a preced�ncia cronol�gica, elas surgiram e produziram efeitos pr�ticos num pa�s que, � �poca, n�o ocupava a primeira cena mundial. De outro lado, seja pela profundidade das transforma��es sociais e pol�ticas que provocaram no pa�s de origem, seja pelas dram�ticas e imediatas conseq��ncias internacionais - diretamente, em toda a Europa; indiretamente, at� na Am�rica ib�rica - foram a Revolu��o Francesa de 1789 e sua "Declara��o dos Direitos do Homem e do Cidad�o" que terminaram exercendo maior influ�ncia no mundo e galvanizando o imagin�rio de v�rias gera��es de revolucion�rios.

Pensadores da nova ordem Como o modo de produ��o capitalista triunfasse em toda parte - ele n�o se embara�ava com a crise europ�ia dos Direitos Humanos da primeira metade do s�culo XIX - os intelectuais do liberalismo, mesmo quando compungidos com o sofrimento dos pobres, produziam os argumentos necess�rios para "demonstrar" que a desigualdade social, n�o s� inevit�vel, era tamb�m justa. Eis o que um desses humanitaristas, o senhor Patrick Colquhoun, havia escrito, j� em 1806, em seu A Treatise on Indigence: "Sem uma grande propor��o de pobres n�o poderia haver ricos, j� que os ricos s�o produto do trabalho, ao passo que o trabalho pode resultar somente de um estado de pobreza... A pobreza, portanto, � um ingrediente indispens�vel e por demais necess�rio da sociedade, sem o qual as na��es e comunidades n�o poderiam existir num estado de civiliza��o"(119). Acima de tudo, a disciplina que estudava e justificava "racionalmente" o capitalismo - a economia pol�tica cl�ssica - vivia seu momento de gl�ria e respeitabilidade. Mas, ao contr�rio do futuro id�lico profetizado em 1776 por Adam Smith na sua "A Riqueza das Na��es: Investiga��o Sobre sua Natureza e suas Causas", dois autores liberais que exerceram grande influ�ncia na primeira metade do s�culo XIX trouxeram ao debate no��es "perturbadoras": Malthus e David Ricardo. O senhor Thomas Robert Malthus, a julgar pelas id�ias rabugentas que defendia, devia ser um cavalheiro muito mal-humorado. Pastor anglicano nascido em fam�lia propriet�ria de terras, esse sisudo ingl�s havia, dentre outros escritos, publicado em 1798 seu famoso "Ensaio Sobre a Popula��o". Observando os estragos sociais que o capitalismo triunfante alastrava, chegou � famosa conclus�o "explicativa" da causa da mis�ria: "a popula��o, quando n�o controlada, cresce numa progress�o geom�trica, e os meios de subsist�ncia crescem apenas numa progress�o aritm�tica"(120), instalando-se na sociedade grave despropor��o. Por consequ�ncia, a mis�ria dos trabalhadores existiria por culpa dos pr�prios trabalhadores, porque insistem em casar cedo e ter muitos filhos. Para resolver esse impasse, Malthus enxergava duas possibilidades: na sua pr�pria linguagem, freios "positivos" e freios "preventivos" � explos�o demogr�fica. Sempre que aquela despropor��o se tornasse aguda, os freios "positivos" seriam as peri�dicas guerras, as ondas de fome e as inevit�veis epidemias que, ao dizimar principalmente a popula��o trabalhadora, reequilibrariam por algum tempo a situa��o. Os freios "preventivos" consistiriam, pura e simplesmente, em os pobres retardarem seu casamento at� poderem sustentar adequadamente uma fam�lia, devendo manter abstin�ncia sexual enquanto fossem solteiros - ou por toda a vida, se a "fortuna" n�o chegasse um dia a favorec�-los... Todas as formas de assist�ncia social seriam in�teis e at� perniciosas, tanto porque estimulariam os miser�veis a "se acomodarem" e casarem sem condi��es de sustentar a prole, como porque, retendo os trabalhadores nas par�quias beneficentes, restringiriam a conveniente mobilidade da m�o de obra(121). Na realidade, como logo se veria, Malthus partia de bases erradas, porque estabelecia uma compara��o entre o crescimento da popula��o dos Estados Unidos (muito r�pido, na �poca) e o lento aumento da produ��o agr�cola da Inglaterra. Al�m disso, "as estat�sticas n�o confirmaram as id�ias de Malthus, quer quanto � taxa de crescimento da popula��o, quer quanto � produ��o de alimentos. Alguns progressos cient�ficos importantes, como as descobertas de adubos qu�micos e de gr�os h�bridos, al�m de t�cnicas mais refinadas de cultivo e tratamento do solo, permitiram not�vel aumento da produtividade agr�cola. � de se notar que algumas dessas descobertas ocorreram antes do lan�amento da sexta e �ltima edi��o do 'Ensaio', em 1826, sem que Malthus se abalasse em modificar suas conclus�es. No tocante � popula��o, a utiliza��o de m�todos anticoncepcionais, que Malthus consideraria "vicio", j� consagrados por volta de 1900, fez com que a popula��o crescesse bem menos do que Malthus esperava"(122). As id�ias de Malthus eram de um pessimismo atroz quanto ao futuro da humanidade e, nessa medida, chocaram a cren�a no progresso disseminada pelos fil�sofos e economistas do s�culo XVIII. Mas introduziam no pensamento liberal um modo c�nico e aparentemente "cient�fico" de transformar as v�timas em culpadas, absolvendo o capitalismo da impiedosa desigualdade social. Apesar de sua falta de fundamentos e do sentimento de decep��o que adicionou ao otimismo racionalista da �poca, essas id�ias acabaram desempenhando papel nada desprez�vel, pois encaixavam-se como m�o e luva nos preconceitos antioper�rios das classes dominantes (de liberais a aristocratas), desviavam a aten��o da maior causa da pobreza (a desigualdade social) e, portanto, contribu�am para justificar a intoler�ncia patronal e governamental frente �s reivindica��es dos trabalhadores(123). Diferentemente de Malthus, que marcou sua obra muito mais pelo empenho apolog�tico do capitalismo, David Ricardo, adepto tamb�m do liberalismo econ�mico, dedicou-se ao estudo do funcionamento da economia com esfor�o investigativo reconhecidamente de maior consist�ncia. O mais famoso desses estudos foi "Princ�pios de Economia Pol�tica e Tributa��o", publicado em 1817, que teve v�rias edi��es ainda durante a vida de seu autor e trazia, no m�nimo, duas id�ias igualmente "perturbadoras" para a autoconfian�a dos liberais. Primeiro, sua teoria do "valor-trabalho". Aprofundando e retificando conceitos de Adam Smith, Ricardo demonstrou que o valor de troca de cada mercadoria em rela��o �s demais mercadorias produzidas na sociedade, expresso monetariamente por seu pre�o, � determinado pela quantidade total de trabalho humano socialmente necess�rio � sua produ��o e nelas incorporado, e n�o por seu valor de uso (utilidade intr�nseca) ou por sua eventual escassez. A utilidade n�o pode ser a medida do valor de troca porque os bens sem utilidade, por mais escassos que sejam, n�o chegam sequer a se tornar mercadorias, isto �, mesmo que produzidos, s�o recusados pelo mercado. J� a escassez de um bem s� determinar� seu valor nos casos muito espec�ficos em que seja imposs�vel produz�-los em grande quantidade - Ricardo exemplificava com est�tuas e quadros famosos, moedas ou livros raros e vinhos especiais - mas estes bens ocupam fra��o m�nima dos artigos demandados no mercado. Portanto, somente o trabalho "...� realmente o fundamento do valor de troca de todas as coisas, � exce��o daquelas que n�o podem ser multiplicadas pela atividade humana"(124). Contudo, essa constata��o permitia que dela se extra�sse uma conclus�o �bvia: "se, como argumentava a economia pol�tica, o trabalho representava a fonte de todo o valor, ent�o por que a maior parte de seus produtores vivia � beira da priva��o? Porque, como demonstrava Ricardo - embora ele se sentisse constrangido em rela��o �s conclus�es de sua teoria - o capitalista se apropriava, em forma de lucro, do excedente que o trabalhador produzia al�m daquilo que ele recebia de volta sob a forma de sal�rio. (...)De fato, o capitalista explorava o trabalhador. Era necess�rio eliminar os capitalistas para que fosse abolida a explora��o. Um grupo de 'economistas do trabalho' ricardianos logo surgiu na Gr�-Bretanha para fazer a an�lise e concluir a moral da historia"(125). Outra id�ia alarmante contida nesse livro era de que o capitalismo teria a tend�ncia natural de caminhar para a estagna��o (estado estacion�rio). O aumento da demanda de alimentos causado pelo crescimento da popula��o elevaria os pre�os dos produtos agr�colas, estimulando, num primeiro momento, a ocupa��o de terras de segunda qualidade quanto � fertilidade, apesar da produtividade menor ou dos custos de produ��o maiores. Como a concorr�ncia entre os capitalistas imporia um pre�o de venda �nico para os produtos das duas terras, subiria a taxa de lucros dos capitalistas instalados nas glebas mais f�rteis e, na mesma propor��o, aumentaria tamb�m a renda a ser paga aos propriet�rios das terras. A esse rendimento suplementar dos propriet�rios, Ricardo chamou de renda diferencial da terra. Aumentando a press�o populacional, o processo se repetiria: nova eleva��o dos pre�os agr�colas, ocupa��o de terras de terceira categoria, crescimento ainda maior da renda diferencial dos propriet�rios das glebas de primeira qualidade, surgimento de alguma renda diferencial nas terras de segunda, mas redu��o crescente dos lucros dos novos capitalistas que investissem nas terras piores. Chegaria um ponto em que o processo se esgotaria: a press�o demogr�fica continuaria aumentando os pre�os, os ociosos propriet�rios de terras boas se apropriariam de renda diferencial exorbitante, mas as terras remanescentes, de fertilidade muito baixa, n�o atrairiam mais investidores, pois nelas a perspectiva de lucro seria zero ou pr�xima a zero. A atividade agr�cola se deteria num estado estacion�rio, afetando negativamente o dinamismo geral da economia. Esse diagn�stico, ao associar pela primeira vez a id�ia de crise como imanente ao capitalismo, deitava por terra as idealiza��es anteriores de desenvolvimento harm�nico e ininterrupto desse modo de produ��o. Isso semeou inquieta��o entre os liberais - ainda mais por emanar de um c�rebro devotadamente liberal(126). Percebia-se que "a economia pol�tica cl�ssica em sua forma ricardiana, podia virar-se contra o capitalismo, fato este que levou os economistas da classe m�dia posteriores a 1830 a ver Ricardo com alarme, e at� mesmo a consider�-lo, como o fez o americano Carreei (1793-1879), como fonte de inspira��o de agitadores e destruidores da sociedade"(127). Adicionando-se a esse novo "clima" cultural, no campo filos�fico come�ava a granjear prest�gio o Positivismo, doutrina sistematizada por Auguste Comte, Herbert Spencer e outros, cuja caracter�stica mais geral e aparente parecia ser o prop�sito de substituir as especula��es religiosas e metaf�sicas pela busca de compreens�o cient�fica dos fen�menos. Neste sentido, o Positivismo poderia, � primeira vista, ser tomado apenas como mais um desdobramento do racionalismo do s�culo XVIII - como, de fato, o era. Contudo, portava pelo menos um elemento de novidade em rela��o ao racionalismo anterior: mediante o esfor�o de transposi��o sistem�tica da �tica e dos m�todos das ci�ncias da natureza para a an�lise social, pretendia imprimir uma neutralidade axiol�gica - completa absten��o de ju�zos de valor - ao estudo da sociedade, que cedo mostraria adequa��o para uso politicamente conservador. "Entendo por 'F�sica Social' a ci�ncia que tem por objeto pr�prio o estudo dos fen�menos sociais, considerados com o mesmo esp�rito que os fen�menos astron�micos, f�sicos, qu�micos e fisiol�gicos, isto �, como submetidos a leis naturais invari�veis, cuja descoberta � o objetivo especial de suas pesquisas. (...) Considerando sempre os fatos sociais, n�o como objetos de admira��o ou de critica, mas como objetos de observa��o, ocupa-se ela unicamente em estabelecer suas rela��es m�tuas e apreender a influ�ncia que cada um exerce sobre o conjunto do desenvolvimento humano. Em suas rela��es com a pr�tica, afastando das diversas institui��es qualquer id�ia absoluta de bem ou de mal, encara-as como constantemente relativas ao estado determinado da sociedade, e com ele vari�veis, ao mesmo tempo que as concebe como podendo se estabelecer espontaneamente pela �nica for�a dos antecedentes, independente de qualquer interven��o pol�tica direta. Reduzem-se, pois, suas pesquisas de aplica��o, a colocar em evid�ncia, segundo as leis naturais da civiliza��o, combinadas com a observa��o imediata, as diversas tend�ncias pr�prias de cada �poca"(128). � bem verdade que formula��es no sentido de que a sociedade tamb�m se rege por leis naturais, suscet�veis de serem descobertas pela investiga��o "desapaixonada" e estudadas com os m�todos das ci�ncias da natureza, j� haviam sido mais ou menos disseminadas pelo esp�rito geral do approach iluminista-jusnaturalista (em especial, pelo enciclopedista Condorcet, de quem Comte se dizia continuador), pelos fisiocratas, pelos economistas pol�ticos, assim como pelo disc�pulo de Condorcet, o futuro socialista ut�pico Saint Simon (de quem Comte fora secret�rio na juventude). Contudo, nessa primeira gesta��o - de modo muito vis�vel nos jusnaturalistas e em Saint Simon - a busca de uma ci�ncia social neutra era motivada por (e portadora de) inequ�voca inflex�o ut�pico-cr�tica: "...instrumento de luta contra o obscurantismo clerical, as doutrinas teol�gicas, os argumentos de autoridade, os axiomas a priori da Igreja, os dogmas imut�veis da doutrina social e pol�tica feudal. (...) O combate da ci�ncia social livre de 'paix�es' �, portanto, insepar�vel da luta revolucion�ria dos Enciclopedistas e de toda a filosofia do Iluminismo contra os 'preconceitos', isto �, contra a ideologia tradicionalista (principalmente clerical) do Antigo Regime"(129). Ou seja, os iluministas reivindicavam neutralidade no estudo da sociedade precisamente porque, ent�o, n�o havia qualquer neutralidade na representa��o de sociedade produzida pela nobreza e pelo clero - ao contr�rio, tratava-se de uma imagem deformada por "paix�es" interessadas na conserva��o social (o poder tem origem divina, os privil�gios s�o naturais, etc.). Neste sentido, a proposi��o iluminista de neutralidade na an�lise dos fen�menos da sociedade - mesmo sem colocarmos em discuss�o sua real possibilidade de exist�ncia - desempenhava fun��o social evidentemente transformadora. Ocorre que o contexto hist�rico da maturidade de Comte era outro: j� se estava consumando (ao menos na Europa ocidental) a transi��o do feudalismo para o capitalismo, e do absolutismo para o constitucionalismo (n�o democr�tico), seja por revolu��es sociais "quentes", como a francesa, seja pela revolu��o industrial "� inglesa". Se, como propunha Comte, essa nova realidade fosse adotada apenas como "objeto de observa��o", sem "admira��o ou cr�tica", produto espont�neo do "estado da sociedade", n�o restaria mais o que se fazer sen�o estud�-la com aquela "neutralidade", favor�vel a seu progresso natural, o que exigia a restaura��o da ordem. Pois, com efeito, a transforma��o exigida pela "for�a dos antecedentes" j� estava completada: se o feudalismo fora destru�do porque contrariava as "leis naturais invari�veis", impunha-se a conclus�o de que o capitalismo seria a realiza��o concreta dessas leis. Portanto, a rebeldia - antes recomend�vel - agora deve ser afastada, j� n�o se justifica, malgrado certos males do capitalismo, que ser�o corrigidos com o triunfo da filosofia positivista. "Construamos diretamente o sistema de id�ias gerais que esta filosofia, de agora em diante, est� destinada a fazer prevalecer na esp�cie humana, e a crise revolucion�ria, que atormenta os povos civilizados, estar� essencialmente terminada"(130). Comte proclama no positivismo "sua aptid�o exclusiva para dissipar radicalmente as diversas utopias an�rquicas que, cada vez mais, amea�am toda exist�ncia dom�stica e social"(131), e denuncia que "os h�bitos insurreicionais da raz�o moderna n�o lhe autorizam supor um car�ter indefinidamente revolucion�rio, uma vez que suas leg�timas reclama��es se encontrem largamente satisfeitas. Al�m do mais, conforme as necessidades, meios n�o faltariam ao novo regime para reprimir de modo suficiente as pretens�es subversivas..."(132). O modelo de sociedade imaginado refletia os tra�os do capitalismo olig�rquico: "Vimos, pois, abertamente, libertar o Ocidente de uma democracia an�rquica e de uma aristocracia retr�grada..."(133). Comte n�o esconde suas prefer�ncias e antipatias: "Desde, por�m, que a reconstru��o est� na ordem do dia, a aten��o p�blica volta-se cada vez mais para a grande e imortal escola de Diderot e Hume (...) Pelo contr�rio, nunca esperei sen�o �bices espont�neos ou propositais, por parte dos atrasados destro�os das seitas superficiais e imorais oriundas de Voltaire e de Rousseau"(134). Quando � bondade, Comte avalia que "ela indica mais o �dio contra os ricos do que o amor pelos pobres...", mas o instinto social da venera��o preserva a esperan�a, pois "contitui hoje o sinal decisivo que caracteriza os revolucion�rios suscet�veis de uma verdadeira regenera��o, por mais atrasada que ainda tenham a intelig�ncia, sobretudo entre os comunistas iletrados" - exceto no caso da maioria de seus chefes, pois esses "homens verdadeiramente indisciplin�veis, exercem uma vasta influ�ncia, que predisp�e � fermenta��o subversiva todos os c�rebros desprovidos de convic��es inabal�veis"(135). Os destinat�rios principais da prega��o positivista deveriam ser as mulheres e o proletariado, com um prop�sito claro: "A revolu��o feminina deve agora completar a revolu��o prolet�ria, como esta consolidou a revolu��o burguesa, dimanada a princ�pio da revolu��o filos�fica. (...) O homem deve sustentar a mulher. (...) Sob a santa rea��o feminina, a revolu��o prolet�ria purificar-se-� espontaneamente das disposi��es subversivas que at� aqui a t�m neutralizado"(136). Comte recomendou em v�rias passagens de sua vasta obra a necessidade de a propriedade exercer uma fun��o social, assim como deixou clara sua posi��o quanto � igualdade: "A despeito de algumas v�s no��es que se formam hoje sobre a igualdade social, qualquer sociedade, at� a mais restrita, sup�e, por evidente necessidade, n�o somente diversidades, mas tamb�m certas desigualdades; porque n�o poderia haver sociedade sem o concurso permanente para uma opera��o geral, perseguida por meios distintos, convenientemente subordinados uns aos outros"(137). Por fim, advertindo contra o agu�amento dos conflitos entre prolet�rios e industriais, que Comte atribu�a ao "cego ego�smo dos empres�rios", ele indicava o curioso papel pacificador do Positivismo "n�o somente nas classes inferiores, onde a educa��o positiva deve ser especialmente acolhida, mas tamb�m nas classes dirigentes, que se sentir�o talvez bastante felizes de que a racionalidade positiva lhes queira bem prestar, contra as utopias subversivas de qualquer sociabilidade, um socorro indispens�vel. (...) Numa palavra, a positividade ser�, talvez logo, invocada em socorro da ordem, a qual s� ela pode hoje proteger suficientemente, pelo menos tanto quanto a favor do progresso..."(138). Portanto, um m�todo possivelmente �til na investiga��o de fen�menos da natureza, ao ser transposto para a an�lise social n�o demorou para manifestar, em nome da "neutralidade" cient�fica, fun��o pol�tica conservadora. O m�todo positivista tamb�m seria depois empregado para a concep��o e estudo do Direito, descartando os suportes anteriores num direito natural, tantos os derivados da natureza externa ao homem, quanto da natureza humana ou da raz�o. A mesma demanda de neutralidade axiol�gica conduziria os juristas positivistas a circunscreverem esse estudo � investiga��o met�dica do direito positivo (objetivamente existente em cada sociedade), suas normas e a forma prescrita pelo pr�prio ordenamento jur�dico para sua produ��o - sempre sem manifesta��o de ju�zos de valor. A norma jur�dica, portanto, tamb�m se converte em "objeto de observa��o" ao qual o jurista deve se debru�ar sem "admira��o ou cr�tica". A tarefa do jurista "cient�fico" consistiria em explicar - pelas regras da pr�pria l�gica jur�dica - e aplicar o Direito existente, sem indaga��es "extra-jur�dicas" quanto � sua legitimidade social. Iniciava-se, a partir da�, um duradouro div�rcio entre Direito e Moral. Certamente o Positivismo dedicou-se a uma diversidade de temas e quest�es muito mais amplas do que as at� agora indicadas e desdobrou-se em "escolas" e correntes ao longo das d�cadas, sofisticando-se e diversificando-se - aprofundar sua compreens�o n�o caberia neste trabalho. �, por�m, necess�rio registrar que, assim como no s�culo XVIII a burguesia em ascens�o havia se servido do Jusnaturalismo como arma de combate contra o feudalismo e o absolutismo, no s�culo XIX essa classe, tornada dominante, mudou-se de armas e bagagens para o Positivismo.

A bandeira muda de m�os Enquanto esses pensadores se ocupavam desses e de outros assuntos, um fato novo come�ava a acontecer: a bandeira dos Direitos Humanos, aos poucos, na pr�tica, mudava de m�os - e isso a faria tamb�m mudar de car�ter. Os liberais haviam se tornado cada vez mais conservadores nesse campo: detiveram a caminhada dos Direitos Humanos no patamar da primeira fase da Revolu��o Francesa porque, de fato, isso lhes bastava. A liberdade conquistada estava quase na medida das suas conveni�ncias, isto �: liberdade econ�mica para os empres�rios e liberdade de assalariamento para os trabalhadores. Faltava ainda restabelecer na maior parte da Europa a liberdade de express�o, particularmente a de imprensa. Mas isso, por mais que incomodasse, n�o representava empecilho grave para o desenvolvimento dos neg�cios. Os que mais se ressentiam da falta dessa liberdade - os trabalhadores, para proclamar suas reivindica��es - n�o dispunham dos meios para pratic�-la, al�m de estarem ocupados demais com necessidades muito prementes, tais como...sobreviver. Quando � igualdade, esta sim, estava no ponto certo: igualdade perante a lei. O fim dos privil�gios legais de nascimento era o suficiente para os que se defendiam muito bem com os novos privil�gios de fortuna. O voto censit�rio, mais que uma necessidade de sobreviv�ncia pol�tica, era sintoma do atraso elitista da burguesia olig�rquica: afinal de contas, retendo para si o poder econ�mico e mantendo a hegemonia ideol�gica na sociedade, ela dificilmente teria motivos para temer os trabalhadores mesmo quando, sob press�o, viesse a estender-lhes o direito de voto - como a hist�ria viria a demonstrar. Se, eventualmente, o sufr�gio universal amea�asse causar-lhe inconvenientes de maior monta, sempre restaria a possibilidade de abolir por algum tempo qualquer sufr�gio - como a hist�ria tamb�m viria a demonstrar. O que n�o poderia ser assimilado mesmo era ampliar a igualdade ao plano econ�mico-social, isto �, transformar a igualdade formal em igualdade real, pois isto seguramente mexeria com os lucros - quem sabe at� onde mais poderia ir? "Havia mais do que um mero preconceito pol�tico na insist�ncia sobre a livre propriedade que caracterizava os governos liberais moderados de 1830; o homem que n�o tivesse demonstrado a habilidade de chegar a propriet�rio n�o era um homem completo e, portanto, dificilmente poderia ser um cidad�o completo (...)O per�odo que culminou por volta da metade do s�culo foi, portanto, uma �poca de insensibilidade sem igual, n�o s� porque a pobreza que rodeava respeitabilidade da classe m�dia era t�o chocante que o homem rico preferia n�o v�-la, deixando que seus horrores provocassem impacto apenas sobre os visitantes estrangeiros (como � o caso hoje em dia das favelas da �ndia), mas tamb�m porque os pobres, como os b�rbaros do exterior, eram tratados como se n�o fossem seres humanos. Se seu destino era o de se tornarem trabalhadores industriais, eles eram simplesmente massa que deveria ser modelada pela disciplina atrav�s da pura coer��o, sendo a draconiana disciplina fabril suplementada com a ajuda do Estado. (� bastante caracter�stico que a opini�o da classe m�dia contempor�nea n�o perceba qualquer incompatibilidade entre o princ�pio de igualdade perante a lei e os c�digos trabalhistas deliberadamente discriminat�rios que, como no caso do C�digo Brit�nico de Patr�es e Empregados, de 1823, puniam os trabalhadores com a pris�o por quebra de contrato e os empregadores com modesta multa, se tanto.) Eles deveriam estar constantemente � beira da indig�ncia porque, caso contr�rio, n�o trabalhariam, sendo inacess�veis �s motiva��es 'humanas'. '� no pr�prio interesse do trabalhador', disseram os empregadores a VilIerm� no final da d�cada de 1830, 'que ele deve estar sempre fustigado pela necessidade, pois assim ele n�o dar� a seus filhos um mau exemplo, e sua pobreza ser� uma garantia de sua boa conduta'. (...) Era pequeno o passo a ser dado desta atitude para o reconhecimento formal da desigualdade que, como afirmou Henri Baudrillart em sua confer�ncia inaugural no Coll�ge de France em, 1835, era um dos tr�s pilares da sociedade humana, sendo que os outros dois eram a propriedade e a heran�a. A sociedade hier�rquica era, assim, reconstru�da sobre os princ�pios da igualdade formal"(139). De certa forma, essa situa��o nova criou condi��es para que come�asse a ser levantada a ponta do v�u: o discurso dos Direitos Humanos, de plataforma generosa e universal, como a burguesia o apresentara quando necessitara mobilizar o entusiasmo e a energia do povo, muito rapidamente se convertera em ideologia legitimadora de uma nova domina��o social. Na medida em que passara de revolucion�ria a conservadora, a burguesia impusera, desde o triunfo em 1789, sua vers�o de classe dos Direitos Humanos. Essa vers�o embutia a contradi��o �bvia entre liberdade (burguesa) e igualdade, conferindo aos Direitos Humanos a fun��o social de preserva��o do novo dom�nio. N�o tardaria para que isso fosse percebido e formulado no plano conceitual. Mas, primeiramente, essa inquieta��o se manifestou no terreno da pr�tica social: de modo confuso, movidos mais pelo desespero do que por uma consci�ncia socialmente organizada, o proletariado emergente da Revolu��o Industrial e as camadas sociais que lhe eram pr�ximas come�aram a engendrar caminhos pr�prios de auto-defesa. Aprendizado dif�cil, pois o que lhes sobrava em desencanto e frustra��o com a nova ordem faltava-lhes em compreens�o te�rica e experi�ncia pol�tica - pois, at� ent�o, s� haviam feito seguir as consignas que lhes apontavam os ex-revolucion�rios de anteontem. Uma das formas mais rudimentares de resist�ncia trabalhista durante esse per�odo de transi��o foram as recorrentes ondas de destrui��o de m�quinas, principalmente nas florescentes ind�strias t�xteis, promovidas no in�cio do s�culo por multid�es de desempregados, que lhes atribu�am, de modo um tanto instintivo, a responsabilidade por sua situa��o de mis�ria. Esses movimentos "luditas"(140) expressavam a revolta contra a mecaniza��o e o desejo a um imposs�vel retorno ao antigo trabalho artesanal. Foram severamente punidos com pris�o, deporta��es e, desde uma lei inglesa de 1812, tamb�m com pena de morte. Aos poucos, come�aram tamb�m a surgir por toda a Europa os primeiros fundos oper�rios de ajuda m�tua, as sociedades cooperativas e, apesar da feroz repress�o, desenvolveram-se tamb�m os primeiros sindicatos. As greves, quase sempre seguidas de muita viol�ncia policial, tornaram-se uma forma de luta largamente empregada pelos trabalhadores. Na Inglaterra, onde a Revolu��o Industrial, com seus efeitos sociais dr�sticos, chegara mais longe, o movimento trabalhista tamb�m organizou-se mais rapidamente. J� em 1824, conseguiu for�ar o Parlamento a revogar certas leis contra a liberdade de associa��o. Nas d�cadas de 1830-40, o trabalhismo brit�nico alcan�ou grande express�o social com o cartismo, movimento que fez vigorosas den�ncias da situa��o em que se encontrava a classe trabalhadora e, dentre outras reivindica��es, lutou pela jornada de trabalho de dez horas, pela liberdade sindical e pelo direito de representa��o parlamentar dos oper�rios. O nome desse movimento derivava da Carta do Povo, documento de reivindica��es apresentado em 1.838 ao Parlamento ap�s anos de mobiliza��o oper�ria. O Programa de Seis Pontos(141) dessa Carta demonstrava que a bandeira dos Direitos Humanos passara efetivamente para as m�os dos trabalhadores. Os cartistas, como o movimento popular do restante da Europa, ainda precisavam lutar por direitos pol�ticos para os trabalhadores (mas at� eles se esqueciam desses direitos para as trabalhadoras) e j� come�avam a lutar por direitos econ�micos e sociais. Al�m desses movimentos reivindicat�rios, uma nova palavra, criada na d�cada de 1820, come�ava a ser ouvida: socialismo. Uma no��o mais ou menos gen�rica de um modo comunista - isto �, igualit�rio - de organiza��o social j� existia h� muito tempo. Eram comuns as refer�ncias a uma perdida e paradis�aca "idade de ouro", anterior ao surgimento da divis�o das sociedades em classes sociais. Plat�o, na sua obra "A Rep�blica" j� defendia que uma reorganiza��o da sociedade em bases racionais deveria implicar na aboli��o da propriedade privada - embora s� entre os respons�veis pelas decis�es da comunidade(142). Na antiga Esparta, o legend�rio rei Licurgo havia conseguido criar um bem sucedido estado "militar-comunista de elite": arrecadou todas as terras, redistribuiu-as entre os cidad�os e introduziu outras reformas no sentido de estabelecer um modo de vida austero e disciplinado. Foi, assim, eliminada a grande desigualdade de bens que antes existia entre os cidad�os, sobreveio prosperidade, e Esparta alcan�ou hegemonia em toda a antiga Gr�cia ap�s a vit�ria na guerra do Peloponeso, que travou contra Atenas. Mas esse curioso proto-comunismo foi uma experi�ncia de curta dura��o - e tinha p�s de barro: a igualdade limitava-se aos cidad�os espartanos, isto �, � classe dominante, enquanto a grande massa da popula��o continuou escrava (os "ilotas", periodicamente rebelados e periodicamente submetidos a matan�as coletivas que lhes inflingiam os espartanos) ou subalterna (os "periecos", trabalhadores sem cidadania, obrigados a pesados tributos). As primeiras comunidades crist�s da �sia Menor, antes de o cristianismo tornar-se religi�o oficial do Imp�rio Romano, tamb�m praticavam uma vida igualit�ria - afinal de contas, o pr�prio filho de Deus n�o dera o exemplo de uma vida em completo "comunismo" com seus ap�stolos e disc�pulos, sem qualquer privil�gio ou distin��o especial? Esse ideal de igualdade social do cristianismo primitivo reapareceu em v�rios momentos durante a Idade M�dia, no mais das vezes ligado a lutas camponesas. Durante a primeira revolu��o burguesa da Inglaterra, em 1.648, tamb�m aflorou uma corrente de plebeus radicais - os levellers (niveladores) - que tendia para propostas sociais igualit�rias. Desde o s�culo XVI, diversos pensadores vinham escrevendo idealiza��es ut�picas, �s vezes muito minuciosas, de imagin�rias sociedades que viveriam felizes sem propriedade privada, o que expressava indiretamente o desejo de reforma social na pr�pria Europa. A mais c�lebre dessas fic��es com mensagem reformadora foi certamente o livro de Thomas Morus, "A Utopia", publicado em 1516. Reunindo elementos do epicurismo e do estoicismo gregos com a moral crist� e o humanismo renascentista, seu autor imaginou uma ilha "comunista" muito organizada e pac�fica (mas, estranhamente, onde ainda existiriam escravos). Logo se seguiram idealiza��es semelhantes: dentre outras, "A Cidade do Sol ", de Tomaso Campanella, "A Nova Atl�ntida", de Francis Bacon, "Oceana", de Harrington e "Voyage dans l'�le des Plaisirs", de F�n�lon. A revela��o de que povos antigos da Am�rica n�o estavam divididos em classes sociais, desconheciam a propriedade privada da terra e, no entanto, desfrutavam de conviv�ncia mais equilibrada e feliz que os europeus, tamb�m contribuiu para inflamar algumas imagina��es. Cr�ticas, �s vezes muito corrosivas, aos males morais e sociais produzidos pela desigualdade decorrente da propriedade privada tiveram papel importante no pensamento de alguns fil�sofos do Iluminismo. Em 1755, na Fran�a, Morelly publicou o "Code de la Nature", onde pregava a propriedade coletiva do solo como condi��o para resolver os males sociais. As id�ias expostas nesse livro, ali�s, exerceram grande influ�ncia sobre Babeuf. Na mesma �poca, o abade franc�s Gabriel Bonnot de Mably criticava severamente a propriedade privada como fonte da desigualdade. Para n�o nos alongarmos em demasia, basta um �ltimo exemplo. Eis como Jean-Jacques Rousseau se referia � ambi��o de riquezas e � propriedade privada: "...a ambi��o devoradora, o ardor de elevar sua fortuna relativa, menos por verdadeira necessidade do que para colocar-se acima dos outros, inspira a todos os homens uma negra tend�ncia a prejudicarem-se mutuamente, uma inveja secreta tanto mais perigosa quanto, para dar seu golpe com maior seguran�a, freq�entemente usa a m�scara da bondade; em uma palavra, h�, de um lado, concorr�ncia e rivalidade, de outro, oposi��o de interesses e, de ambos, o desejo oculto de alcan�ar lucros a expensas de outrem. Todos esses males constituem o primeiro efeito da propriedade e o cortejo insepar�vel da desigualdade nascente" (143). Evidentemente, nenhuma dessas id�ias foi aproveitada pelos revolucion�rios triunfantes de 1789. A burguesia recolheu do Jusnaturalismo a indigna��o racional e moral contra o feudalismo e o absolutismo e desviou-se, habilidosamente, de outras consequ�ncias igualmente l�gicas (isto �, compat�veis com a Raz�o) que poderiam ser desdobradas a partir daquela filosofia - porque n�o lhe convinha faz�-lo. Por�m, assim como no terreno pr�tico da luta social os Direitos Humanos haviam passado para outras m�os, o mesmo aconteceria no plano das id�ias. Aquelas fantasias de um "comunismo" cerebrino e mais ou menos asc�tico dos s�culos XVI a XVIII tiveram continuadores ap�s a Revolu��o Francesa, que as adaptaram para os tempos da ind�stria moderna, agora com o prop�sito declarado de reforma social. Durante a primeira metade do s�culo XIX, diversos projetos aparentados �quele comunismo ideal, misturados com cooperativismo oper�rio e radicaliza��o da democracia, foram produzidos sob a designa��o gen�rica de socialismo (que, depois, seria qualificado de ut�pico ou rom�ntico). Foram tr�s os grandes socialistas ut�picos desse per�odo: Saint-Simon e Fourier na Fran�a, e Owen na Inglaterra. Claude-Henri de Rouvroy, conde de Saint-Simon (1760-1825), havia lutado na guerra de independ�ncia dos Estados Unidos e, de volta � Fran�a, apoiou a Revolu��o e renunciou a seu t�tulo de nobreza, o que n�o o impediu de sofrer uma pris�o durante o per�odo do Terror. Logo percebeu que a Revolu��o n�o significou o triunfo de todo o Terceiro Estado, mas apenas de uma fra��o - e que, entre os vitoriosos, fortalecera-se um segmento que n�o era produtivo: a parcela da burguesia que vivia de especula��o, rendas e alugu�is. Portanto, a antiga contradi��o entre pessoas ociosas (nobreza e clero) e pessoas ativas (produtivas) foi "atualizada" por Saint-Simon: o novo corte social oporia, de um lado, todos os "ociosos" (antigos e novos) e, de outro lado, os "industrialistas" - nesta categoria inclu�dos n�o s� os oper�rios, como tamb�m os empres�rios industriais, comerciantes e banqueiros, que deveriam unir-se para a reorganiza��o racional da sociedade. Como os ociosos haviam perdido a capacidade de governar no interesse comum, e os oper�rios ainda n�o a haviam adquirido, a dire��o da sociedade deveria ser entregue � ci�ncia (s�bios acad�micos), aos industriais e aos banqueiros, que se transformariam numa esp�cie de tecnocratas do bem p�blico. Nesse sistema, que chamou de "industrialismo", seria promovida a emancipa��o feminina, o trabalho seria obrigat�rio para todos e, embora continuasse a existir o direito de propriedade, seria abolido o direito de heran�a(144). "Esse modo de conceber correspondia perfeitamente a uma �poca em que a grande ind�stria, e com ela o antagonismo entre a burguesia e o proletariado, mal come�ava a despontar na Fran�a. Mas Saint-Simon insiste muito especialmente neste ponto: o que o preocupa, sempre e em primeiro lugar, � a sorte da 'classe mais numerosa e mais pobre' da sociedade. (...) Em 1816, Saint-Simon declara que a pol�tica � a ci�ncia da produ��o e prediz j� a total absor��o da pol�tica pela economia. E se aqui n�o faz sen�o aparecer em germe a id�ia de que a situa��o econ�mica � a base das institui��es pol�ticas, proclama j� claramente a transforma��o do governo pol�tico sobre os homens numa administra��o das coisas e dos processos da produ��o, que n�o � sen�o a id�ia da 'aboli��o do Estado'"(145). Quanto a Fran�ois-Marie Charles Fourier (1772-1837), era um comerciante malsucedido que se tornou escritor talentoso e, impressionado pelas id�ias de Rousseau, interessou-se pelos problemas sociais de seu tempo. J� come�ou colocando o dedo diretamente na ferida: comparou as fascinantes possibilidades de harmonia social aventadas pelos fil�sofos do s�culo anterior com a realidade de mis�ria material e moral efetivamente criada pelo capitalismo triunfante. A partir da�, "desmascara as brilhantes frases dos ide�logos burgueses da �poca, demonstra como a essas frases grandiloq�entes corresponde, por toda a parte, a mais cruel das realidades e derrama a sua s�tira mordaz sobre esse ruidoso fracasso da fraseologia. (...) Mas � ainda mais magistral nele a cr�tica das rela��es entre os sexos e da posi��o da mulher na sociedade burguesa. � ele o primeiro a proclamar que o grau de emancipa��o da mulher numa sociedade � o bar�metro natural pelo qual se mede a emancipa��o geral"(146). Al�m disso, concebendo o desenvolvimento da sociedade de modo dial�tico, em fases alternadas, entreviu n�o s� a historicidade do capitalismo - � diferen�a da ilus�o que o entendia como modelo definitivo de organiza��o social - como tamb�m a possibilidade de futuro desaparecimento da pr�pria humanidade. Na tentativa de levar � pr�tica suas teorias, imaginou a cria��o de "falanst�rios": pr�dios que abrigariam comunidades cooperativas livres, minuciosamente planejados - esp�cies de ilhas de comunismo que, pela for�a do exemplo e da superioridade moral, se imporiam gradativamente ao circundante "mar" capitalista, tornando-se bases de uma reorganiza��o social. J� Robert Owen (1771-1858) era um industrial ingl�s muito pr�tico. Movido inicialmente por esp�rito de filantropia, planejou e desenvolveu durante quase trinta anos um projeto de enorme �xito: na sua grande f�brica de fios de algod�o instalada na comunidade miser�vel de New Lanark, na Esc�cia (que chegou a ter 2.500 oper�rios), reduziu a jornada de trabalho dos oper�rios para dez horas e meia (a jornada comum na �poca era de 13, 14, at� 18 horas...), recusou-se a empregar menores de dez anos, criou jardins de inf�ncia e escolas para os filhos dos trabalhadores, servi�os de sa�de para a comunidade, e implantou armaz�ns para a venda de g�neros aliment�cios e outros bens a pre�o de custo, nos quais o dinheiro foi substitu�do por b�nus representativos de horas trabalhadas. Os resultados foram surpreendentes: a f�brica converteu-se numa col�nia exemplar auto-gerida, de onde desapareceram o alcoolismo e as brigas, sem necessidade de policiamento, de asilo para os pobres ou de institui��es de caridade e - inesperadamente, para a mentalidade da �poca - os lucros cresceram como nunca visto! "Quando uma crise algodoeira obrigou o encerramento da f�brica por quatro meses, os oper�rios de New Lanark que ficaram sem trabalho continuaram recebendo as suas di�rias integrais. E, contudo, a empresa incrementara para o dobro o seu valor e rendeu aos seus propriet�rios, at� ao �ltimo dia, enormes lucros"(147). Estupefato, Owen analisou a tecnologia da f�brica, estabeleceu compara��es, fez e refez os c�lculos, chegando a este resultado: "...a parte produtora daquela popula��o de 2.500 almas dava � sociedade uma soma de riqueza real que, apenas meio s�culo antes, teria exigido o trabalho de 600.000 homens juntos. Perguntava-me: onde vai parar a diferen�a entre a riqueza consumida por essas 2.500 pessoas e a que precisaria ser consumida pelas 600.000?"(148). Com honestidade intelectual, concluiu: essa diferen�a era apropriada individualmente pelos capitalistas. Da�, para chegar a propor que os modernos meios de produ��o poderiam servir ao bem estar social se fossem tornados propriedade coletiva de toda a sociedade foi um passo - e esse passo foi sua ru�na. Enquanto se comportara como rico de "alma nobre", que sente d� dos pobres e lhes faz concess�es por esp�rito de caridade, Owen fora adulado como celebridade nos sal�es da Europa. Quando deu o passo fatal, tornou-se execrado como homem de id�ias perigosas, perdeu todo apoio e a imprensa ergueu-lhe um muro de sil�ncio. Ent�o, Owen revelou-se pessoa de extraordin�ria integridade: n�o s� manteve suas novas convic��es, como estendeu suas cr�ticas � fun��o social conformista desempenhada pela religi�o e pela forma atual de casamento. Em completo isolamento dentro de sua classe, gastou sua fortuna tentando criar col�nias cooperativas, auto-geridas e igualit�rias no M�xico e nos Estados Unidos, na esperan�a, como Fourier, de que a simples for�a moral do exemplo pudesse faz�-las triunfar. Suas "ilhas de comunismo" tamb�m terminaram por naufragar em poucos anos. Voltou � Inglaterra arruinado, mas j� havia feito a op��o, para sempre, pelo lado dos trabalhadores: durante outros trinta anos, continuou a dedicar-se �s suas causas e �s suas lutas. "Assim, em 1819, depois de cinco anos de grandes esfor�os, conseguiu que fosse votada a primeira lei limitando o trabalho da mulher e da crian�a nas f�bricas. Foi ele quem presidiu ao primeiro congresso em que as trade-unions de toda a Inglaterra se fundiram numa grande organiza��o sindical �nica"(149). Como se pode ver, os socialistas ut�picos combinavam sensibilidade social, algumas percep��es te�ricas relevantes e projetos impratic�veis. Reformadores rom�nticos, nunca chegaram a conceber uma solu��o propriamente pol�tica de transforma��o geral da sociedade pois acreditavam sinceramente que a grandeza moral de suas propostas, os chamamentos � Raz�o e alguns exemplos pr�ticos bem conduzidos seriam suficientes para que id�ias justas e generosas conquistassem todas as mentes para a reorganiza��o racional da sociedade. Essa convic��o - magn�nima e ing�nua - n�o lhes deixou perceber dois aspectos cruciais. Primeiro: suas experi�ncias isoladas, projetadas como "exemplos" para uma nova sociedade, n�o conseguiriam sequer produzir o efeito de demonstra��o pr�tica por muito tempo, porque n�o � poss�vel ilhas de "comunismo" perdurarem cercadas de capitalismo por todos os lados. Segundo: mesmo que, por hip�tese, essas col�nias dessem certo, isso n�o bastaria para "convencer" capitalistas a abrirem m�o de... lucros. Salvo exce��es individuais, a raz�o burguesa guia-se, n�o por princ�pios morais ou racionais, mas por outro crit�rio: seu algo mais concreto interesse de classe. Isto j� parecia estar demonstrado desde, pelo menos, 1789. Seja como for, mesmo fracassando nos prop�sitos de reformar o mundo, o socialismo ut�pico cumpriu fun��o inestim�vel: ao inaugurar a cr�tica moral ao capitalismo, propiciou os primeiros argumentos te�ricos �s lutas concretas que os trabalhadores, at� ent�o isolados, encetavam por seus Direitos Humanos.

O "perigo" oper�rio A temporada de revolu��es no mundo ocidental, inaugurada e inspirada pela Revolu��o Francesa, mas assumindo fei��es pr�prias em cada pa�s, tomaria novo f�lego na d�cada de 1820: Espanha, N�poles, Gr�cia, B�lgica, Pol�nia, Portugal, Irlanda e, novamente, a Fran�a em 1830. Neste ano, uma revolu��o popular derrubou o �ltimo rei da dinastia Bourbon, Carlos X, e colocou no trono da Fran�a Lu�s Felipe I, da dinastia Orleans, o "rei burgu�s". Por assim dizer, 1830 "completa" e "repete" 1789. Completa porque, mais que uma simples troca de reis, essa e outras revolu��es da d�cada de 1830 recolocaram na ordem do dia por toda a Europa a vit�ria da burguesia sobre a aristocracia, ap�s o recuo do per�odo da Restaura��o. E repete 1789 porque, como antes, foram revolu��es feitas pelo povo(150), mas novamente sob dire��o burguesa. O regime pol�tico em consolida��o (caso da Inglaterra) ou que emerge (Fran�a, B�lgica etc.) afasta novamente as esperan�as de implanta��o do sufr�gio universal e assegura "... institui��es liberais salvaguardadas contra a democracia por qualifica��es educacionais ou de propriedade para os eleitores - havia inicialmente s� l68 mil eleitores na Fran�a - sob uma monarquia constitucional; de fato, algo muito semelhante � primeira fase burguesa mais moderada da Revolu��o Francesa, a da Constitui��o de 1791 (s� que, na pr�tica, com um direito de voto muito mais restrito)"(151). O impulso revolucion�rio produziria nova e mais formid�vel vaga em 1848: a "Primavera dos povos", como ficou conhecida, devido a seu internacionalismo e forte presen�a popular. Uma crise econ�mica fizera recrudescer o desemprego desde o in�cio da d�cada e as classes populares voltaram a se agitar. No primeiro semestre desse ano, a maioria das regi�es da Europa central e ocidental - dentre outras, a Fran�a, Alemanha, It�lia, �ustria, Hungria, Pol�nia e B�lc�s - foram tomadas por insurrei��es de conte�do nacionalista, anti-mon�rquico, democr�tico ou oper�rio (�s vezes tudo isso junto). Todas foram vitoriosas a princ�pio e, logo a seguir, todas foram esmagadas com muito sangue(152). A grande novidade da "Primavera dos Povos", destacadamente na Fran�a, foi a emerg�ncia dos oper�rios reivindicando uma "rep�blica democr�tica e social" - muito al�m do que estavam dispostos a ir os liberais das revolu��es anteriores. O medo da revolu��o social uniu da� por diante os liberais �s for�as mais retr�gradas da Europa num vasto "partido da ordem"(153) e essas revoltas populares foram isoladas e reprimidas com trucul�ncia exemplar. Na Fran�a, a nova revolu��o abriu caminho para a proclama��o da segunda Rep�blica, em 24 de fevereiro de 1848 (a primeira fora em 1792) e formou-se um governo provis�rio. Mas quando, em junho desse ano, os oper�rios parisienses tentaram aprofundar as transforma��es, o "partido da ordem" sufocou a rebeli�o, deixando claro de modo fulminante que os "limites" n�o seriam mais ultrapassados. "� caracter�stico da ferocidade do �dio que os ricos nutrem pelos pobres o fato de que uns tr�s mil (trabalhadores) foram trucidados depois da derrota, enquanto outros 12 mil foram aprisionados, a maioria para serem deportados para campos de trabalho na Arg�lia"(154). Ap�s a derrota oper�ria, realizaram-se as primeiras elei��es presidenciais com sufr�gio universal (masculino), em novembro de 1848, sendo eleito presidente Lu�s Bonaparte, sobrinho de Napole�o. A Rep�blica teria vida curta: em 2 de dezembro de 1851, com apoio da burguesia, do ex�rcito e de contingentes manipulados de desempregados, o presidente deu um golpe de Estado, suspendeu as liberdades pol�ticas, reinstaurou a monarquia heredit�ria e proclamou-se a si mesmo "imperador Napole�o III"(155). Retrocessos semelhantes aconteceram em todos os pa�ses por onde havia sido derrotada a ef�mera "Primavera dos Povos". A democracia estava longe de ser uma prioridade para as classes dominantes. Na verdade, outra coisa j� as preocupava, guiando da� por diante todos os seus movimentos: o temor da classe oper�ria, classe que se tornava cada dia mais numerosa com a industrializa��o e que come�ava a agitar um programa de transforma��es sociais muito mais profundo do que havia sonhado em 1789. A quest�o que essa classe come�ava a se colocar era esta: h� pelo menos cinquenta anos, a burguesia vinha ensinando continuamente que era leg�timo fazer revolu��es contra a opress�o. Ora, por qu� ent�o n�o levar � pr�tica essa li��o at� o fim, isto �, at� o fim de todas as formas de opress�o social, em vez de parar a meio caminho? Nos anos anteriores, o movimento oper�rio de alguns pa�ses da Europa n�o s� crescera e come�ara a se organizar de forma aut�noma, como tamb�m passara a elaborar programas pol�ticos que apontavam de modo crescente, embora ainda confuso, para transforma��es sociais de sentido anticapitalista. Nas insurrei��es de 1848 a burguesia tomara consci�ncia do risco muito real de perder o controle dessas revolu��es populares. Al�m disso, o discurso liberal dos Direitos Humanos, petrificado desde 1789, esva�a continuamente seu poder de sedu��o sobre os pobres. Para a imensa maioria dos habitantes do planeta, ele n�o passava de eco long�nquo vindo de alguns pa�ses da Europa Ocidental ou da Am�rica - e, mesmo nessas regi�es, representava, de fato, pouco mais que fic��o jur�dica para a maioria dos humanos. � verdade que a progressiva universaliza��o da igualdade civil, n�o s� colocara um contingente enorme de for�a de trabalho � disposi��o da ind�stria, como tamb�m removera as antigas restri��es jur�dicas �s rela��es contratuais - a burguesia tirava bom partido disso. Mas, para os pobres, a igualdade civil fora de muito pouco proveito pr�tico - a n�o ser a de coloc�-los "em p� de igualdade" para travar rela��es contratuais de trabalho com seus patr�es. Quanto � liberdade individual, n�o restava mais d�vida de que seu exerc�cio efetivo estava poderosamente condicionado pelas muito desiguais possibilidades sociais de cada indiv�duo - mais precisamente, de cada classe. Os direitos pol�ticos continuavam interditados aos trabalhadores por limita��es censit�rias ou de outra natureza. Sob este aspecto particular, os Estados Unidos, onde o movimento democr�tico jacksoniano implantara o sufr�gio "universal", pareciam uma exce��o - mas, efetivamente, estavam longe disso, pois milh�es de africanos levados � for�a para esse novo pa�s continuavam a ferros e sob chibata, e as popula��es ind�genas iam sendo metodicamente massacradas pelo ex�rcito, escalpeladas(156) pelos colonos e empurradas sempre para mais adentro do continente. No que se refere aos direitos econ�micos, sociais e culturais, eram aspira��es que mal come�avam a ganhar terreno - palmo a palmo, contra feroz resist�ncia patronal, e sempre sob repress�o sangrenta das pol�cias de todos os pa�ses. Por fim, nem pensar em igualdade entre homens e mulheres em nenhum pa�s do mundo - nem mesmo jur�dica. Em todos os lugares onde a burguesia j� havia alcan�ado o poder pol�tico e, diretamente ou por representantes, fazia as leis, os Direitos Humanos reduziam-se a isto: uma ideologia, no sentido de discurso legitimador da nova domina��o de classe. Muitos j� percebiam que, na falta de igualdade social, a "liberdade" jur�dico-formal reduz-se a uma caricatura. Hegel j� denunciara que quem se encontra em car�ncia aguda de meios de subsist�ncia est� em condi��o de "total falta de direitos", numa posi��o que, de fato, pouca dist�ncia guarda da falta de liberdade dos escravos(157). Mas caberia a um jovem intelectual alem�o, � �poca com 25 anos, cujas reflex�es estavam transitando do Direito para a Filosofia e para a Economia, esbo�ar a primeira cr�tica filos�fica e pol�tica mais sistem�tica a isso que, no campo legal e na realidade social, concretamente se apresentava como "Direitos Humanos" em meados do s�culo XIX. Seu nome: Karl Marx. Num artigo intitulado "A Quest�o Judaica"(158), observou que "a emancipa��o pol�tica n�o implica em emancipa��o humana" e que o "homem" contemplado nos estatutos oriundos da Revolu��o Francesa n�o � o ser humano universalmente considerado, mas o "membro da sociedade burguesa", o "homem ego�sta", "separado dos outros homens e da comunidade"(159). A desigualdade real operante na sociedade � o crit�rio delimitador, que atribui e restringe o significado pr�tico aos demais direitos: "O Estado anula, a seu modo, as diferen�as de nascimento, de status social, de cultura e de ocupa��o, ao declarar o nascimento, o status social, a cultura e a ocupa��o do homem como diferen�as n�o pol�ticas, ao proclamar todo membro do povo, sem atender a estas diferen�as, co-participante da soberania popular em base de igualdade, ao abordar todos os elementos da vida real do povo do ponto de vista do Estado. Contudo, o Estado deixa que a propriedade privada, a cultura e a ocupa��o 'atuem a seu modo', isto �, como propriedade privada, como cultura e como ocupa��o, e fa�am valer sua natureza 'especial'. Longe de acabar com estas diferen�as de fato, o Estado s� existe sobre tais premissas. (...) Todas as premissas desta vida ego�sta permanecem de p� '� margem' da esfera estatal, na 'sociedade civil', por�m, como qualidade desta. Onde o Estado pol�tico j� atingiu seu verdadeiro desenvolvimento, o homem leva, n�o s� no plano do pensamento, da consci�ncia, mas tamb�m no plano da realidade, da vida, uma dupla vida: uma celestial e outra terrena, a vida na 'comunidade pol�tica', na qual ele se considera um 'ser coletivo', e na 'sociedade civil', em que atua como 'particular' ; considera os outros homens como meios, degrada-se a si pr�prio como meio e converte-se em joguete de poderes estranhos. O Estado pol�tico conduz-se em rela��o � sociedade de modo t�o espiritualista como o c�u em rela��o � terra (...) o homem � considerado um ser gen�rico, ele � o membro imagin�rio de uma soberania imagin�ria, acha-se despojado de sua vida individual real e dotado de uma generalidade irreal"(160). A diferencia��o entre direitos "do homem" e direitos "do cidad�o" expressa a exist�ncia humana auto-dividida na sociedade burguesa, diferencia��o que "marca de fato a oposi��o total de seus conte�dos respectivos. Os direitos do homem como tal consagram uma exist�ncia dedicada � particulariedade, que se privatiza e se fixa, afastada e em choque com os outros, na privatiza��o, enquanto os direitos do cidad�o consagram uma exist�ncia que, fazendo abstra��o de sua particulariza��o multiforme, dirige-se aos assuntos gerais, abre-se a uma preocupa��o universal"(161). A liberdade(162), conceituada por um crit�rio negativo nas Constitui��es p�s-revolucion�rias (poder fazer tudo o que n�o prejudique aos outros), expressa o "limite dentro do qual todo homem pode mover-se 'inocuamente' em dire��o ao outro (...), assim como as estacas marcam o limite ou a linha divis�ria entre duas terras", reduzindo-se essa liberdade a uma "m�nada isolada, dobrada sobre si mesma", que "n�o se baseia na uni�o do homem com o homem, mas, pelo contr�rio, na separa��o do homem em rela��o a seu semelhante. A liberdade � o 'direito' a esta dissocia��o, o direito do indiv�duo 'delimitado', limitado a si mesmo. A aplica��o pr�tica do direito humano da liberdade � o direito humano � propriedade privada." Este, por sua vez, � o direito do homem de "de desfrutar de seu patrim�nio e dele dispor arbitrariamente � son gr�, sem atender aos demais homens, independentemente da sociedade, � o direito do interesse pessoal. A liberdade individual e esta aplica��o sua constituem o fundamento da sociedade burguesa. Sociedade que faz com que todo homem encontre noutros homens n�o a 'realiza��o' de sua liberdade, mas, pelo contr�rio, a 'limita��o' desta." A igualdade civil "nada mais � sen�o a igualdade da 'liberdade' acima descrita", e a seguran�a � o "conceito social supremo da sociedade burguesa, conceito de pol�cia, segundo o qual toda a sociedade somente existe para garantir a cada um de seus membros a conserva��o de sua pessoa, de seus direitos e de sua propriedade", o que impede a supera��o do ego�smo. "A seguran�a, pelo contr�rio, � a preserva��o deste". Ap�s essas primeiras formula��es, a cr�tica de Marx aos Direitos Humanos da �poca da Revolu��o Industrial, mesmo sem ocupar mais posi��o de centralidade em seu pensamento, reapareceria em obras posteriores(163), ora enfatizando sua fun��o social ilus�ria, ora embutida numa ruptura radical com a compreens�o liberal de mundo(164) - localizando sempre na explora��o dos trabalhadores o suporte din�mico do modo de produ��o capitalista e na propriedade privada dos meios de produ��o o fundamento da desigualdade social: "Horrorizai-vos por querermos suprimir a propriedade privada. Mas na sociedade existente, a vossa, a propriedade privada j� est� suprimida para nove d�cimos dos seus membros; ela existe precisamente pelo fato de n�o existir para nove d�cimos. Censurai-nos, portanto, por querermos suprimir uma propriedade que pressup�e como condi��o necess�ria que a imensa maioria da sociedade n�o possua propriedade"(165). Captando no movimento real dos trabalhadores a pot�ncia capaz de abrir caminhos para a supera��o dial�tica dessa situa��o, Marx diria: "No lugar do pomposo cat�logo dos 'direitos inalien�veis do homem' entra a modesta Magna Charta de uma jornada de trabalho legalmente limitada"(166). O papel dos trabalhadores como novos sujeitos ativos da transforma��o social seria enfatizado reiteradamente, deslocando o socialismo do plano da utopia para o terreno da luta pol�tica. As id�ias desenvolvidas por Marx abarcaram tem�ticas muito mais amplas e complexas do que as indicadas aqui. E, certamente, n�o conquistaram terreno com facilidade no movimento oper�rio. Tiveram que abrir caminho num emaranhado de tend�ncias que misturava anarquismo de v�rios matizes e remanescentes ut�picos, para n�o falar da feroz repress�o dos governos que, periodicamente, produzia chacinas, como o massacre da Comuna de Paris de 1871.(167) Mas, para o objeto deste estudo, o que importa ressaltar � que, ao longo da segunda metade do s�culo XIX, elas foram imprimindo �s lutas sociais uma din�mica dupla de, a um s� tempo, continuidade e ruptura: retomavam a indigna��o moral e a insatisfa��o social dos socialistas ut�picos e dos movimentos espont�neos dos oper�rios; mas afastavam-se daquelas idealiza��es voluntaristas de um imagin�rio mundo "perfeito" para, em seu lugar, promover a an�lise e a cr�tica concretas da sociedade real, em conex�o com uma pr�xis social transformadora sob a perspectiva dos explorados e oprimidos. No final daquele s�culo, ap�s a morte de Marx, o marxismo j� cumpria no movimento oper�rio (na Europa e, em menor grau, na Am�rica do Norte) uma fun��o similar � que, um s�culo antes, o jusnaturalismo desempenhara em rela��o � burguesia revolucion�ria: m�todo de an�lise, de compreens�o e de cr�tica da sociedade, instrumento te�rico para sua transforma��o e suporte program�tico para essa luta.

Luta pelos Direitos Sociais: a pr�tica transforma a teoria Derrotada a "Primavera dos Povos", o capitalismo ingressou no seu per�odo de consolida��o econ�mica e, at� o final do s�culo, expandiria seu dom�nio colonial aos �ltimos recantos do planeta onde ainda n�o houvera penetrado. Claro, desenvolvendo-se de modo desigual e combinado, no seu ritmo an�rquico de crises c�clicas que, como lei tendencial, passaria a acompanh�-lo da� por diante: expans�o na d�cada de cinquenta, depress�o em 1857-58, expans�o por mais dez anos, crise entre 1866 e 1868, novo per�odo de expans�o, seguida ent�o da primeira longa depress�o, entre meados da d�cada de setenta e meados da d�cada de noventa daquele s�culo. Configurava-se um padr�o espasm�dico que, bem mais tarde, entre as d�cadas de quarenta e setenta do s�culo seguinte, seria transitoriamente atenuado pela interven��o de pol�ticas econ�micas (mas, com o aumento da internacionaliza��o do capital e dos mercados, retornaria mais complexo e igualmente danoso). "Na verdade, o processo de expans�o era, como todos agora reconhecem, curiosamente catastr�fico. Violentas quedas, algumas vezes dr�sticas e crescentemente globais, sucediam-se a expans�es estratosf�ricas, at� que os pre�os ca�ssem o suficiente para dissipar os mercados retra�dos e limpar o campo de empresas falidas, para que, ent�o, os homens de neg�cios come�assem a investir e expandir-se, renovando dessa forma o ciclo. Foi em 1860, depois da primeira dessas genu�nas quedas mundiais, que os economistas acad�micos, na pessoa de um brilhante franc�s, Cl�ment Juglar (1819-1905), reconheceram e mediram a periodicidade desse 'ciclo do com�rcio' at� ent�o considerado apenas por socialistas e outros elementos heterodoxos"(168). Se a quest�o se reduzisse a exerc�cio de econometria, tudo estaria bem. Mas, a cada crise, milh�es de homens e mulheres perdem trabalho, transformam-se em "superpopula��o relativa", e s�o lan�ados � alternativa entre mis�ria ou emigra��o para os territ�rios vastos do continente americano - esta alternativa de fuga se esgotaria nas primeiras d�cadas do s�culo vinte. Nesses momentos, falar em Direitos Humanos para a popula��o n�o passa de pilh�ria atroz. Em meio a essa gangorra recorrente, aqueles foram tempos de triunfo do liberalismo econ�mico: aumento internacional do interc�mbio comercial, queda de barreiras alfandeg�rias, abertura de mercados � livre concorr�ncia (exceto nos Estados Unidos, que prudentemente preservaram sua ind�stria da competi��o europ�ia), conquista de novos mercados, ascendente competi��o entre as empresas. A euforia competitiva n�o duraria muito tempo: antes de aquele s�culo terminar, a feroz luta econ�mica entre as maiores empresas conduziria � massiva centraliza��o e concentra��o de capitais, engendrando a progressiva transforma��o daquele capitalismo de concorr�ncia generalizada no capitalismo conhecido no s�culo XX, comandado por gigantescos monop�lios dominadores do mercado. A segunda metade do s�culo XIX foi tamb�m a �poca em que, nos pa�ses e nas regi�es de cada pa�s onde o capitalismo estava mais desenvolvido, as classes dominantes convenceram-se definitivamente da conveni�ncia de substituir a m�o de obra escrava da Am�rica por trabalhadores livres. A experi�ncia europ�ia ocidental j� demonstrara que isso sa�a mais barato (limitava a responsabilidade patronal ao pagamento de sal�rios), os oper�rios produziam mais (receosos do desemprego) e favorecia a cria��o de mercados para os produtos das ind�strias. Al�m disso, intermin�veis rebeli�es rurais e urbanas de escravos e a press�o de movimentos humanit�rios deixavam os escravagistas acuados e sem argumentos. Essa combina��o de conveni�ncias burguesas, insubordina��o escrava e agita��o abolicionista levou a Inglaterra, desde meados daquele s�culo, a for�ar os pa�ses americanos a celebrarem sucessivos tratados internacionais e a adotarem leis internas para restri��o ou supress�o do com�rcio internacional de escravos, liberta��o dos cativos rec�m-nascidos ou muito idosos, at� a aboli��o da escravatura. Nos Estados Unidos, foi preciso a Guerra Civil (1861-1865) para completar esse processo nos Estados do sul. E caberia ao Brasil o trof�u de ter sido o �ltimo pa�s do hemisf�rio ocidental a abolir a escravatura, em 1888. Mas era cedo para comemora��es: os negros libertos seriam imediatamente lan�ados ao �ltimo escal�o da sociedade e discriminados de todos os modos - quando n�o enclausurados socialmente por legisla��es segregacionistas (Estados Unidos, mais tarde Rod�sia e Africa do Sul). De sua parte, o movimento oper�rio defendia-se como podia. Nos pa�ses de maior concentra��o industrial come�avam a brotar partidos socialistas e organizavam-se sindicatos e outros instrumentos de auto-defesa oper�ria, abrindo lentamente fissuras na muralha da resist�ncia patronal-governamental. Na Europa - come�ando pela Inglaterra, em seguida na Fran�a, depois na B�lgica, Alemanha, It�lia e outros pa�ses - os trabalhadores, como visto, j� vinham h� d�cadas num lento ac�mulo de for�as. Em 1864, foi fundada a Associa��o Internacional dos Trabalhadores, mais tarde conhecida como Primeira Internacional (para discerni-la de outras Internacionais criadas depois). Agrupou as organiza��es da classe trabalhadora de pa�ses da Europa Ocidental e Central. Essa federa��o, que come�ou atuando na unifica��o das lutas econ�micas dos trabalhadores dos diversos pa�ses, progressivamente apontou para a necessidade de sua a��o pol�tica: desenvolveu campanhas pelo direito de voto dos trabalhadores, inclinou-se para uma plataforma socialista, chegando a defender, em 1871, a cria��o de partidos oper�rios independentes das agremia��es pol�ticas burguesas. Essa Primeira Internacional dissolveu-se em 1876, em meio a diverg�ncias internas, mas o debate pol�tico que gerou favoreceu a funda��o de diversos partidos nacionais de trabalhadores na Europa entre as d�cadas de 1870 e 1880, a maior parte de inspira��o declaradamente marxista. Nos Estados Unidos, manifesta��es espont�neas pela jornada de trabalho de oito horas haviam acontecido em Nova Iorque j� em 1829, e essa reivindica��o come�ou a expandir-se pelos principais centros manufatureiros do nordeste do pa�s a partir de 1850, com a cria��o das Grandes Ligas de Oito Horas. Mas esses movimentos precursores, embora importantes, demoraram para adquirir intensidade e express�o nacional enquanto a escravatura perdurou como principal quest�o social daquele pa�s. Contudo, mal terminou a Guerra Civil, o movimento oper�rio norte-americano imediatamente ganhou vitalidade: em agosto de 1866, reuniram-se em Baltimore os delegados do primeiro congresso de trabalhadores de todo o pa�s, desfraldando a bandeira da jornada legal de oito horas e debatendo quest�es organizativas da classe oper�ria. Levas sucessivas de imigrantes europeus - muitos deles expulsos de seus pa�ses por participarem de lutas oper�rias do Velho Mundo - contribu�ram para conferir �mpeto � organiza��o dos trabalhadores americanos. Vit�rias significativas come�aram a ser conquistadas: em meados da d�cada de oitenta do s�culo XIX, a press�o oper�ria j� havia conseguido impor � legisla��o de dezenove Estados norte-americanos jornadas que variavam at� o m�ximo de dez horas de trabalho. O �dio das classes dominantes tamb�m crescia(169). Tanto na Europa, como na Am�rica do Norte, no que mais os trabalhadores conseguiram avan�ar ao longo daquele per�odo foi em rela��o aos direitos de associa��o e de greve - praticados sempre contra as leis vigentes, antes que, no final do s�culo, come�assem a ser tolerados institucionalmente em alguns pa�ses. Al�m disso, obtiveram progressos significativos, ainda que com grande lentid�o, na amplia��o dos seus direitos pol�ticos, mediante leis de reforma eleitoral que atenuavam ou removiam restri��es econ�micas diretas ou indiretas ao direito de voto (principalmente na Europa, onde essas restri��es eram maiores), j� apontando para o sufr�gio universal - entenda-se bem: "universal" para os homens. Os direitos pol�ticos das mulheres ainda teriam de aguardar at� que, no in�cio do novo s�culo, as lutas das "sufragistas" europ�ias e norte-americanas adquirissem dimens�o de massas(170). Ent�o, a cidadania pol�tica feminina come�aria a conseguir reconhecimento legal - ainda assim, vagarosamente. Ao terminar o s�culo, ficava claro tamb�m que o movimento dos trabalhadores dava passos concretos - e alcan�avam as primeiras vit�rias, t�midas ainda - na organiza��o das lutas pelo que, mais tarde, seria conhecido como direitos econ�mico-sociais (jornada regulamentada, sal�rio m�nimo, repouso semanal remunerado, f�rias, aposentadoria, acesso � educa��o e a servi�os p�blicos de sa�de e assist�ncia social, etc.). Que se afaste, todavia, qualquer equ�voco de assimila��o edulcorada desse processo hist�rico: todas essas vastas demandas sociais s� avan�aram mediante combate aguerrido, sacrif�cio, vertendo - continuaria a verter - muito sangue dos trabalhadores e das trabalhadoras de todos os pa�ses. A men��o constante - talvez at� por sua for�a emblem�tica - de alguns marcos mais conhecidos, como o massacre das oper�rias de Nova Iorque, em 8 de mar�o de 1857(171), ou o epis�dio dos "oito m�rtires de Chicago"(172), poderia induzir � tranquilizadora ilus�o de que foram casos isolados. N�o foram: as d�cadas de passagem para o s�culo XX foram palco de incruenta e s� parcialmente bem sucedida luta pela conquista de direitos - assim mesmo, praticamente s� na Europa ocidental e na Am�rica do Norte. Cada conquista - civil, pol�tica, econ�mica, social ou cultural - por m�nima que fosse, teve atr�s de si hist�rias de repress�o estatal incruenta, intoler�ncia patronal, defesa encarni�ada de privil�gios por parte das classes dominantes, pris�es odiosas, enforcamentos, extradi��o de sindicalistas, degredo, mortes e mais mortes de trabalhadores e de trabalhadoras. � longo e arrepiante (convenientemente esquecido), em todos os pa�ses, esse hist�rico. O vagaroso aparecimento da legisla��o social "...n�o se deve, ali�s, de modo algum, � generosidade dos cora��es burgueses, � s�bita convers�o moral dos antigos algozes da classe oper�ria..."(173). Al�m disso, nesse tempo em que a luta oper�ria ascendia em todas as partes industrializadas do mundo, o desgastado liberalismo olig�rquico tamb�m operava, na ideologia das classes dominantes cultas dos pa�ses mais importantes, sua transi��o para o pensamento "liberal-democrata". Mas a antiga autoconfian�a racionalista da burguesia tamb�m ia cedendo terreno a medos - de advers�rios reais e imagin�rios. Um acontecimento, como mau press�gio, expressou adequadamente essa ansiedade burguesa do final do s�culo XIX: o caso Dreyfus(174). Ele foi indicativo de que, no pr�prio aparato estatal, recome�ava a ganhar f�lego uma das muitas modalidades de racismo que se fortaleciam no ocidente "civilizado". J� h� algum tempo, engendrava-se e disseminava-se, �s vezes at� com t�nicas pretensamente "cient�ficas", toda sorte de teorias racistas - justificadoras, tanto da nova onda de expans�o colonial europ�ia na �frica e na �sia, como da supremacia burguesa no planeta. O pensamento conservador, at�nito ante os abalos econ�micos e sociais de seu mundo supostamente s�lido, abandonava as retumbantes proclama��es do humanismo e da raz�o de menos de um s�culo atr�s, em favor do irracionalismo truculento e obscurantista. Ambiente prop�cio para que o antigo anti-semitismo crist�o tamb�m recrudescesse. Assim, al�m do "perigo oper�rio", o imagin�rio conservador engendrou novos "inimigos" sociais cuja exist�ncia pudesse "explicar" (e a quem se pudesse atribuir) a inseguran�a que rondava � volta. De pa�s para pa�s, essa nova matura��o de preconceitos seculares da cultura crist� combinou-se, em graus variados, com seu uso de caso pensado pelos que tinham interesses a preservar. Sua dissemina��o pela sociedade passaria a cumprir, na pr�tica, dois pap�is precisos: de um lado, no plano ideol�gico, acrescentou mais ingredientes a uma nova vis�o reacion�ria de mundo que j� se encontrava em franca expans�o, apartada das refer�ncias no humanismo universalista do s�culo XVIII e em aberta recusa ao igualitarismo (social, racial, nacional ou de g�nero); e, de outro lado, no terreno das lutas sociais, chegou a introduzir confus�o e divis�o at� no movimento oper�rio de v�rios pa�ses. Apesar da evidente rea��o conservadora que se gestava - e que, em trinta anos, tornar-se-�a sinistramente forte - essa �poca demarcou o in�cio da fase hist�rica em que os movimentos populares finalmente acumularam for�as para iniciar o processo - longo e permeado de graves contramarchas - de arrancar os Direitos Humanos, n�o s� do confinamento social, como tamb�m dos limites conceituais a que os mantivera a burguesia oitocentista. Se, no final do s�culo XIX, os trabalhadores do sexo masculino j� conquistavam direitos pol�ticos em v�rios pa�ses, � medida em que o s�culo XX avan�ou os �xitos da press�o oper�ria e camponesa tamb�m for�aram a que o pr�prio conceito setecentista de Direitos Humanos (direitos civis e pol�ticos) se expandisse, com a progressiva incorpora��o jur�dica dos direitos econ�micos e sociais, nunca contemplados pelas revolu��es burguesas.

M�xico, R�ssia, Alemanha: grandes esperan�as No novo s�culo, pela primeira vez na Hist�ria - e pela for�a de todos aqueles que n�o aceitavam mais permanecer nos por�es da sociedade - os Direitos Humanos pareciam, progressivamente, ganhar efetividade pr�tica para milh�es de pessoas, suscitando esperan�as de que, por fim, tornar-se-�a realidade sua sempre adiada promessa de universaliza��o. E, naqueles anos dur�ssimos que se seguiram aos escombros da maior e mais desoladora guerra at� ent�o travada pelas na��es (1914-1918), essas esperan�as nutriam-se nas r�pidas - por vezes, profundas - transforma��es sociais em curso em partes muito importantes do planeta. Muitas conquistas sociais - e seus reflexos jur�dicos - foram mesmo not�veis e, mesmo quando controvertidas, chegaram por um momento a parecerem irrevers�veis. A primeira revolu��o russa, de 1905, havia deixado atordoada a velha autocracia semi-feudal, antiliberal e antioper�ria dos Czares. Embora n�o a conseguisse demolir dessa vez, a revolu��o popular de 1905 trincou irremediavelmente esse mais antigo absolutismo remanescente na Europa e, para quem tivesse olhos de futuro, apontou o dedo para a ascens�o de um maremoto oper�rio e campon�s que demoraria pouco mais de uma d�cada para mostrar-se irresist�vel. No M�xico, no final de 1910, eclodiu a primeira revolu��o popular vitoriosa do s�culo XX. Marcada por ziguezagues pol�ticos(175), ela produziu, contudo, em 31 de janeiro de 1917, uma Constitui��o que, al�m de estender os direitos civis e pol�ticos para toda a popula��o, pela primeira vez incorporava amplamente direitos econ�micos e sociais, com o conseq�ente estabelecimento de restri��es � propriedade privada. Logo no seu artigo 3�, assegurava que a educa��o, al�m de laica, gratuita e baseada nos "...resultados do progresso cient�fico...contra qualquer esp�cie de servid�o, fanatismo e preconceitos", seria ainda democr�tica, "...considerando a democracia n�o somente uma estrutura jur�dica e um regime pol�tico, mas tamb�m um sistema de vida fundado na constante promo��o econ�mica, social e cultural do povo". J� apontava, portanto, para a supera��o da no��o liberal (isto �, pol�tica e formal) de democracia. � semelhan�a do que haviam feito os revolucion�rios franceses ap�s 1789, a Constitui��o mexicana, para salvaguarda da liberdade individual, proibia (art. 5�) o estabelecimento de ordens mon�sticas restritivas ao direito pessoal de ir e vir e, mesmo mantendo a liberdade religiosa (art. 24), estatizou os bens da Igreja (art. 27, II)(176). O artigo 27 deve ter suscitado horror aos conservadores, ao romper conceitualmente, logo no seu caput, com o cl�ssico credo liberal da anterioridade do indiv�duo propriet�rio em rela��o � sociedade: "A propriedade das terras e das �guas compreendidas dentro dos limites do territ�rio nacional pertence originariamente � Na��o, a qual teve e tem o direito de transmitir seu dom�nio aos particulares, constituindo a propriedade privada". A partir dessa formula��o, resultava que a Na��o poder� "...impor � propriedade privada as regras ditadas pelo interesse p�blico (...) e regular o aproveitamento dos elementos naturais suscet�veis de apropria��o, com vistas � distribui��o eq�itativa e � conserva��o da riqueza p�blica." No sentido de tornar concreta a fun��o social da propriedade, o artigo determinava que "...ser�o decretadas as medidas necess�rias � divis�o dos latif�ndios; ao desenvolvimento da pequena propriedade de extra��o agr�cola; � cria��o de novos centros de popula��o agr�cola com terras e �guas que lhes sejam indispens�veis; ao fomento da agricultura de modo a evitar a destrui��o dos elementos materiais e os danos que os bens possam sofrer em preju�zo da sociedade." O mesmo artigo subordinava o direito individual de propriedade �s necessidades coletiva: "Os n�cleos de popula��o que care�am de terras e �guas, ou n�o os tenham em quantidade suficiente para as suas necessidades, ter�o direito a adquiri-las das propriedades vizinhas, respeitando sempre a pequena propriedade de explora��o agr�cola". Tornava, ainda, propriedade da Na��o os recursos do subsolo e da plataforma continental submarina e restitu�a a propriedade comunal das terras aos n�cleos camponeses (incs. VII e X). O inciso XVII desse artigo limitava a extens�o m�xima da propriedade de terras (aboli��o dos latif�ndios), institu�a a expropria��o fundi�ria compuls�ria para a reforma agr�ria, com indeniza��o mediante t�tulos da d�vida agr�ria resgat�veis a longo prazo e a baixos juros, pagos em parcelas anuais, e criava garantias ao patrim�nio familiar campon�s. No mesmo diapas�o que horrorizou liberais, liberais-democratas e demais matizes de conservadores sociais, o artigo 28 da constitui��o mexicana proibia a forma��o de monop�lios econ�micos, castigava as manobras empresariais para eleva��o de pre�os, abolia privil�gios tribut�rios, autorizava o funcionamento de sindicatos e estimulava as associa��es cooperativas para livrar os produtores rurais dos intermedi�rios. Os artigos 34 e 35 estendiam a cidadania a todos os homens e mulheres com mais de dezoito anos que tivessem um "modo de vida honesto", assegurando-lhes sufr�gio universal e elegibilidade universal. Por fim, pela primeira vez numa Constitui��o, seu longu�ssimo artigo 123 relacionava(177), detalhadamente, os direitos sociais dos trabalhadores(178). � claro que, t�o logo as for�as populares reflu�ssem, muito disso n�o passaria do papel. Mas, por se tratar da Constitui��o que, mesmo mantendo o capitalismo, foi socialmente a mais avan�ada at� ent�o produzida, ela seria tomada como uma das novas refer�ncias para lutas sociais vindouras - e para Constitui��es vindouras. Mas a Constitui��o mexicana de 31 de janeiro de 1917 era s� o prel�dio das dores de cabe�a que estragariam o humor de quem ainda acreditasse ser poss�vel manter o planeta im�vel. Na R�ssia, j� se haviam colocado em movimento as for�as sociais que, naquele mesmo ano, produziriam os abalos s�smicos de fevereiro (revolu��o democr�tico-burguesa) e de outubro (revolu��o socialista). A segunda dessas revolu��es, iniciada por um levante oper�rio em Moscou e S�o Petersburgo em 25 de outubro de 1917 (dia 7 de novembro, pelo calend�rio atual), chamou logo muita aten��o. Diferentemente da Fran�a de 1789, em que a revolu��o fora principalmente pol�tica (era nesse terreno que a burguesia sentia mais a opress�o), na R�ssia os oper�rios queriam mais, pois sua opress�o, sob o capitalismo, era tanto pol�tica, como econ�mica e social. Por isso - agora vinha o mais inusitado - os que haviam feito a revolu��o (isto �, a insurrei��o) queriam tamb�m conservar para si o poder para fazer uma revolu��o (isto �, transformar a sociedade)(179). Era o que, menos de dois meses depois, anunciariam os delegados populares reunidos na assembl�ia que, naquele momento, encarnou o novo poder revolucion�rio - o "III Congresso Pan-Russo dos Sovietes de Deputados Oper�rios, Soldados e Camponeses". No dia 4 de janeiro de 1918 (dia 17, pelo calend�rio atual), esse "Congresso dos Sovietes" proclamou ao mundo a "Declara��o dos Direitos do Povo Trabalhador e Explorado", que viria a ser conhecida como um contraponto prolet�rio � "Declara��o" burguesa de 1789. A "Declara��o dos Direitos do Povo Trabalhador e Explorado" inaugurou uma �tica completamente nova e pol�mica na abordagem tradicional dos Direitos Humanos. Em vez da perspectiva individualista de um ser humano abstrato contida na "Declara��o" francesa de 1789, a "Declara��o" russa de 1918 elegia como ponto de partida o ser humano concretamente (isto �, historicamente) existente, o ser humano que vive em sociedade, em rela��o cont�nua com outros homens, e que, portanto, poder� desenvolver (ou n�o desenvolver) suas potencialidades humanas conforme a posi��o que ocupar nessa sociedade, ou conforme o modo de organiza��o dessa sociedade venha a favorecer ou a dificultar esse desenvolvimento. Em vez da sociedade hipoteticamente uniforme (isto �, juridicamente igualit�ria), dissolvida idealmente em cidad�os supostamente iguais, a "Declara��o" russa partia do reconhecimento - cautelosamente evitado desde 1789 - de que a sociedade est� dividida em classes sociais com interesses conflitantes. Portanto, em vez da idea��o liberal de "neutralidade" social do Estado, a nova "Declara��o" tomava partido, desde logo e abertamente, dos explorados e oprimidos, alijando explicitamente do poder econ�mico e pol�tico os exploradores. Assim, com vistas a "...suprimir toda explora��o do homem pelo homem, a abolir completamente a divis�o da sociedade em classes..." (Cap�tulo II, caput) todas as terras agr�colas, o subsolo, as f�bricas, minas, bancos, estradas de ferro - enfim, os meios sociais de produ��o e distribui��o que fossem de interesse p�blico - passavam a ser propriedade nacional, sob administra��o dos trabalhadores coletivamente organizados em "Sovietes" (conselhos populares), com base numa "reparti��o igualit�ria em usufruto" (Cap. II, arts. 1�, 2� e 3�). Ademais, "tendo em vista suprimir os elementos parasitas da sociedade" (Cap. II, art. 4�) trabalhar passava a ser dever de todos. Para evitar a retomada do poder pelas classes dominantes depostas, institu�a-se (Cap. II, art. 5�) o "armamento dos trabalhadores (...) e o desarmamento das classes possidentes". A "Declara��o" russa posicionava-se contra a guerra e por uma "paz democr�tica dos trabalhadores, paz sem anexa��es nem repara��es, baseada na livre disposi��o dos povos" (Cap. III, art. 1�), contra o colonialismo e em "rep�dio completo � pol�tica b�rbara da civiliza��o burguesa, que alicer�ava o bem-estar dos exploradores em algumas na��es eleitas sobre a servid�o de centenas de milh�es de trabalhadores na �sia, nas col�nias em geral e em pequenos pa�ses" (Cap. III, art. 2�). O Cap�tulo IV, na primeira parte, avaliava que, "...atualmente, no momento da luta decisiva do povo contra os exploradores, n�o pode haver lugar para estes em nenhum dos organismos do poder. O poder deve pertencer na totalidade e exclusivamente �s massas laboriosas e � sua representa��o autorizada...". Por fim, a segunda parte desse Cap�tulo reconhecia a cada Na��o, mediante seu pr�prio Congresso Nacional de Sovietes, a liberdade de "decidir livremente (...) sobre se querem e, em caso afirmativo, em que bases, participar no Governo Federal e nas outras institui��es federais sovi�ticas". Retomando um procedimento adotado pelos franceses no final do s�culo XVII, a "Declara��o dos Direitos do Povo Trabalhador e Explorado", de janeiro de 1918, foi em seguida incorporada, como T�tulo I, na primeira Constitui��o da Rep�blica Socialista Federativa Sovi�tica da R�ssia, de 10 de julho de 1918. Inspirada nos princ�pios dessa "Declara��o", essa primeira Constitui��o sovi�tica manifestava o prop�sito de assegurar liberdade e igualdade reais aos que, at� ent�o, nunca as haviam tido: os trabalhadores das cidades e do campo. A Igreja foi separada do Estado e foi "reconhecida a liberdade de propaganda religiosa e anti-religiosa a todos os cidad�os" (art. 13)(180). Para garantia da liberdade de express�o aos trabalhadores, foram deslocados para suas m�os "todos os recursos t�cnicos e materiais necess�rios � publica��o de jornais, livros e outras publica��es", ficando garantida "sua livre difus�o em todo o pa�s" (art. 14 da Constitui��o). Para dar efetividade � liberdade de reuni�o, a Constitui��o (art. 15) p�s � disposi��o dos trabalhadores "todos os locais convenientes, com mobili�rio, ilumina��o e aquecimento, para a realiza��o de reuni�es populares". Para impulsionar a liberdade de associa��o dos trabalhadores, o artigo 16 direcionou-lhes toda "assist�ncia material e qualquer outra forma de apoio tendente a que eles se unam e organizem". Quanto ao "real acesso � cultura", o artigo 17 assegurou "instru��o completa, universal e gratuita aos oper�rios e aos camponeses mais pobres". O artigo 18 tornou o trabalho um dever de todos, com base no princ�pio de "quem n�o trabalha n�o come". O artigo 21 conferiu o "direito de asilo a todos os estrangeiros perseguidos por delitos pol�ticos ou religiosos". Foi proclamada (art. 22) a "igualdade de direitos dos cidad�os independentemente de sua ra�a ou nacionalidade" e repudiada "qualquer opress�o das minorias nacionais ou limita��o de sua igualdade jur�dica". J� o artigo 23, expressando a conjuntura de conflito social extremado(181), reproduziu outra solu��o adotada pelos jacobinos franceses ap�s outubro de 1793: privava "os indiv�duos e os grupos particulares dos direitos de que poderiam usar em detrimento dos interesses da revolu��o socialista". Nas localidades rurais menores, a autoridade suprema local passou a ser a "assembl�ia geral dos eleitores" (art. 60); nas cidades, essa autoridade foi conferida aos Sovietes de Deputados (conselhos populares locais), eleitos proporcionalmente � popula��o (arts. 57 e 60) que, por sua vez, elegiam delegados aos Congressos de Sovietes provinciais, regionais, etc., at� o Congresso Pan-Russo dos Sovietes (poder supremo do pa�s) que, ent�o, elegia um Comit� Executivo de at� 200 membros (com o qual repartia a compet�ncia legislativa nacional) que exercia as fun��es administrativas por meio de um Conselho de Comiss�rios (ministros) do Povo (arts. 24, 25, 28, 49, 53, 56 e 61). O mandato de cada deputado aos Sovietes passava a ser curt�ssimo - apenas tr�s meses (art. 57). O artigo 64 colocou, literalmente, de ponta-cabe�a o que os liberais sempre praticaram no terreno dos direitos pol�ticos, inaugurando o conceito de "cidadania pol�tica pelo trabalho: "T�m o direito de eleger e de ser eleitos para os Sovietes os cidad�os de ambos os sexos (...), sem distin��o de confiss�o, de nacionalidade e de resid�ncia (...) que granjeiem os seus meios de exist�ncia atrav�s do trabalho produtivo, ou de um trabalho socialmente �til, e os que efetuem um trabalho dom�stico e assegurem aos primeiros a possibilidade de desenvolver o seu trabalho produtivo (...)". E, para assegurar a fidelidade dos representantes em rela��o aos representados (evitando a conhecida independ�ncia dos eleitos em rela��o aos eleitores), o artigo 78 instituiu o mandato revog�vel: "Os eleitores t�m o direito de destituir a todo momento o deputado que tiverem eleito e de proceder a novas elei��es, em conformidade com as regras gerais"(182). Tudo isso era muito novo. E havia outra coisa nova, que n�o passou despercebida: tanto a "Declara��o" russa, como a Constitui��o que se lhe seguiu, silenciaram sobre um ponto que, desde o s�culo XVIII, tornara-se crucial no ocidente - nenhuma palavra quanto a garantias dos direitos individuais. Considerado o car�ter socialista da revolu��o em curso, seria razo�vel esperar-se que a �nfase necess�ria �quele momento reca�sse mesmo em medidas para a conquista da igualdade - de outro modo n�o seria quebrada a desigualdade social do capitalismo. Mas, at� em proveito desse rumo, seria tamb�m razo�vel esperar-se que, em vez de silenciarem sobre garantias individuais, os revolucion�rios imprimissem-lhes sentido novo - compat�vel com os direitos sociais dos trabalhadores e com a primazia do interesse social, superando o vi�s individualista com que haviam sido marcadas nas revolu��es burguesas. N�o fizeram isso. A burguesia nunca fora perdoada por, na "Declara��o" de 1789, haver omitido a igualdade do rol dos "direitos naturais e imprescind�veis do homem". A revolu��o russa, por essa outra omiss�o, tamb�m n�o o seria. Tardiamente, sob St�lin, os pr�prios revolucion�rios descobririam a extens�o desse erro. Enquanto, na R�ssia, tantas novidades pareciam virar o mundo de pernas para o ar, o II Reich alem�o emergia de um transe catastr�fico (derrota na 1� Guerra Mundial) para iniciar a conhecida e espasm�dica caminhada que o conduziria a novo transe ainda mais catastr�fico (nazismo, III Reich, derrota na Segunda Guerra Mundial). No �nterim entre os dois marcos, equilibrou-se a ef�mera Rep�blica de Weimar (1919-1933), com sua Constitui��o de 11 de agosto de 1919. Se, em poucas palavras, fosse poss�vel definir o car�ter mais geral dessa Constitui��o de vida breve, as palavras poderiam ser estas: uma tentativa de concilia��o das contradi��es sociais. Terminado o mortic�nio da Primeira Guerra Mundial, a Alemanha, vergada pela derrota militar, teve de submeter-se ao Tratado de Versalhes, que lhe imp�s perdas territoriais, longas e pesadas repara��es de guerra em favor das pot�ncias vencedoras e retra��o de mercados. Sua economia entrou em recuo desorganizado, o desemprego tornou-se s�rio e uma crise social severa amea�ava transformar-se em crise pol�tica. A custo, a burguesia manteve a nau sob controle. Mas n�o estava mais em condi��es de ignorar os ventos transformadores que sopravam na Europa, nem de subestimar o aguerrido movimento oper�rio alem�o, que levantava a cabe�a e olhava para o que seus companheiros de classe estavam fazendo na R�ssia. Nessas condi��es de temperatura e press�o, a Constitui��o da rec�m-criada Rep�blica de Weimar refletiu, aproximadamente, a correla��o de for�as sociais surgida na Alemanha do imediato p�s-guerra: o movimento popular conseguiu inscrever direitos sociais nessa Constitui��o - certamente menos do que os trabalhadores do M�xico, mas certamente mais do que, em outras condi��es, a burguesia poderia estar disposta a lhe conceder. A Parte I da Constitui��o de Weimar, intitulada "Estrutura e Atribui��es do Imp�rio", tinha sete se��es e come�ava mantendo o Imp�rio (Reich) e instituindo a Rep�blica (art. 1�). Em seguida, assegurava: o "sufr�gio universal, direto e secreto (...) de todos os homens e mulheres" (art. 17) e consagrava a independ�ncia dos deputados em rela��o aos eleitores (art. 21); autorizava a iniciativa legislativa dos eleitores e prescrevia referendo popular para resolver disputas entre o Presidente do Imp�rio e o Parlamento (arts. 43, 73, 74 e 76); firmava a independ�ncia, vitaliciedade e inamovibilidade dos magistrados (arts. 102 e 104) e proibia a cria��o de tribunais de exce��o (art. 105). Vinha, em seguida, a Parte II da Constitui��o, intitulada "Direitos e Deveres Fundamentais dos Alem�es", que tinha cinco se��es. A se��o I, que cuidava "Do indiv�duo", fixava a igualdade perante a lei, alguns direitos civis e liberdades individuais, seguindo a tradi��o liberal. A Se��o II, que tratava "Da vida social", dava passos � frente, assegurando a igualdade de direitos entre os c�njuges, a responsabilidade do Estado no amparo � maternidade, � sa�de e ao desenvolvimento social das fam�lias (art. 119); a igualdade de condi��es de desenvolvimento entre filhos leg�timos e ileg�timos (art. 121); a assist�ncia � juventude (art. 12); os direitos de reuni�o (art. 123), de associa��o (art. 124), de peti��o (art. 126) e de acesso ao servi�o p�blico, inclusive para mulheres (art. 128); os artigos 129 e 130 previam garantias aos funcion�rios p�blicos (vitaliciedade, previd�ncia, direitos adquiridos, irredutibilidade de vencimentos, direito de defesa disciplinar, liberdade de express�o e de associa��o). A Se��o III - "Da religi�o e das igrejas" - garantia liberdade religiosa e delineava a separa��o entre igreja e Estado. A Se��o IV, intitulada "Da educa��o e ensino" era, para a �poca, muito abrangente: contemplava, no artigo 142, a liberdade art�stica, cient�fica e de ensino; assegurava a escolaridade obrigat�ria, p�blica e gratuita at� os dezoito anos de idade (art. 145), com ensino planejado e atento � diversidade de voca��es, prevendo ainda aux�lio estatal aos pais de alunos pobres "dignos de ascenderem ao ensino secund�rio e superior" (art. 146); curiosamente, o mesmo artigo 146 previa a cria��o de escolas p�blicas confessionais quando os pais o solicitassem; permitia o funcionamento de escolas privadas, como suplemento das p�blicas, desde que oferecessem qualidade de ensino equivalente, n�o incentivassem a discrimina��o econ�mica entre os alunos, e assegurassem a "situa��o econ�mica e jur�dica do pessoal docente" (art. 147); indicava quais eram os objetivos do ensino, respeitando-se "opini�es diferentes" (art. 148); e o artigo 149 tornava optativo, para alunos e professores, o ensino e pr�ticas de religi�o nas escolas. A Se��o V, �ltima da Parte II da Constitui��o de Weimar, intitulava-se "Da Vida Econ�mica" e come�ava indicando que a organiza��o da economia deve ter em vista "assegurar a todos uma exist�ncia conforme a dignidade humana", ficando a liberdade econ�mica individual dentro desses limites (art. 151); garantia a propriedade, condicionada ao cumprimento de fun��o social (art. 154); responsabilizava o Estado pela regulamenta��o do uso e parcelamento do solo para fins habitacionais (art. 155); autorizava, sob certas condi��es, ampla interven��o do Estado na atividade econ�mica privada (art. 156); previa a futura institui��o de um "direito do trabalho uniforme" (art. 157) e de um "sistema geral" de previd�ncia social e de prote��o � sa�de (art. 161); assegurava a liberdade de associa��o trabalhista (art. 159); anunciava que procuraria obter uma regulamenta��o internacional para assegurar "ao conjunto da classe oper�ria da humanidade um m�nimo de direitos sociais" (art. 162); reconhecia o direito ao trabalho e, na sua falta, o direito � assist�ncia social (art. 163). Por fim, o artigo 165, �ltimo da Parte II, talvez fosse o que, melhor que qualquer outro, sintetizasse o esp�rito geral da Constitui��o de Weimar: conclamava empregados e patr�es a colaborarem, "em p� de igualdade", na regulamenta��o de assuntos trabalhistas e econ�micos, reconhecia os acordos que celebrassem entre si, e constitu�a representa��es de trabalhadores, chamadas "conselhos oper�rios" (a linguagem vinha da R�ssia, mas a semelhan�a com os sovietes terminava a�), para se reunirem com delegados patronais em "conselhos econ�micos" de fun��o opinativa ou propositiva em rela��o a projetos de lei sobre pol�tica econ�mica e social(183). Desse modo, na Constitui��o de Weimar, "os direitos sociais e econ�micos, dentro do regime capitalista, est�o reconhecidos e garantidos ao lado dos direitos individuais, como na Constitui��o mexicana, que � mais avan�ada do que aquela. Mas foi a de Weimar que exercera maior influ�ncia no constitucionalismo de ap�s a Primeira Guerra Mundial, inclusive na brasileira de 1934"(184). Al�m de revolu��es e de Constitui��es renovadoras, algumas mudan�as importantes tamb�m aconteciam fora do M�xico, R�ssia e Rep�blica de Weimar. A renovada press�o reinvidicat�ria popular, assim como o desencanto com a pol�tica internacional que conduzira � guerra inter-imperialista, instalaram um clima geral prop�cio a transforma��es. Ap�s dois s�culos de resist�ncia, a velha Inglaterra aprovou, em 1918, lei instituindo o sufr�gio universal, no que foi seguida, da� por diante, por muitos pa�ses do ocidente. O voto feminino, embora com maiores resist�ncias(185), come�ou a ser incorporado aos ordenamentos jur�dicos. Mesmo nos pa�ses da "periferia", lutas sociais massivas (por exemplo, a greve geral paulista de junho de 1917 e a greve nacional ocorrida no Brasil em 1918) for�avam as elites a fazer concess�es. At� no plano das rela��es entre os pa�ses surgiam novidades. Pelo Tratado de Versalhes, de 28 de junho de 1919, foi criada a Liga das Na��es, com a inten��o de evitar que a disputa entre as pot�ncias imperialistas pela conquista de mercados conduzisse novamente a guerras mundiais. A Liga das Na��es logo patrocinaria a celebra��o de alguns tratados internacionais relativos aos direitos de certas minorias nacionais, bem como promoveria a cria��o da Organiza��o Internacional do Trabalho, institui��o que sobreviveria �s intemp�ries do resto do s�culo e desempenharia papel certamente mais relevante do que imaginaram seus criadores. Enfim, esses todos transes e transi��es que o r�dio e o tel�grafo sem fio transmitiam de um lado a outro do planeta, suscitavam de tudo: assombro, euforia, impreca��es, indecis�o - dependia do interesse contemplado ou prejudicado, da vis�o de mundo que cada um tivesse, ou da compreens�o, muitas vezes dif�cil, desses acontecimentos. Mas, naqueles anos, quem tivesse acesso a informa��es e se sentisse de alguma forma explorado ou oprimido, ou fosse um intelectual n�o-conformista (como se dizia � �poca), tinha boas raz�es para acreditar que - malgrado uma certa vertigem de tantas novidades e umas tantas nuvens escuras que permaneciam na linha do horizonte - a Humanidade poderia muito bem estar adentrando umbrais de uma era que a libertaria das guerras e da imemorial explora��o do homem pelo homem e a resgataria de todas as formas de opress�o individual, social, nacional, racial e de g�nero, superando intoler�ncia, preconceitos e divis�es irracionais entre os seres humanos.

Segunda Crise Geral dos Direitos Humanos N�o tardaria muito para que os acontecimentos come�assem a frustrar essas esperan�as imensas. A Revolu��o Mexicana foi contida em patamar muito aqu�m do que prometia seu avan�ado programa de reformas sociais. Pouco a pouco, for�as conservadoras moderariam o processo revolucion�rio at� esgot�-lo nos anos quarenta. Combinando repress�o com sistem�tica coopta��o institucional de lideran�as populares, o estrato populista da burguesia obteve hegemonia, fomentou reformas parciais e localizadas e instituiu um aparelho estatal de liturgia formalmente democr�tica (elei��es peri�dicas, aparentemente livres) que, pelo vasto controle instaurado sobre a sociedade, manteve o regime pol�tico mais imperme�vel a mudan�as da Am�rica Latina at� o t�rmino do s�culo XX. Os direitos sociais inscritos na Constitui��o mexicana de janeiro de 1917 - pioneiramente contemplados com tanta amplitude - caminhariam naquele pa�s, na pr�tica, em passo de marcha lenta, bem mais lenta do que a dos trabalhadores europeus. A R�ssia, ap�s imensos custos econ�micos e sociais de uma sucess�o de tormentas - guerra mundial, guerra civil, invas�es militares estrangeiras - viu-se, na d�cada de vinte, diante de uma vit�ria de pirro: era o pa�s mais atrasado da Europa, estava destru�do e completamente isolado(186). Cindido por lutas internas, imp�s-se o projeto de um impens�vel "socialismo num s� pa�s" (nem mesmo os ut�picos de cem anos antes chegariam a imaginar isso). O poder direto dos Sovietes perdeu terreno para uma burocracia centralizada no Estado, que centralizou todos os poderes em nome da defesa contra a restaura��o. Em vez de um Robespierre para comandar a vit�ria e sair de cena, emergiu St�lin, administrador feroz do sonho oper�rio rompido. Toda cr�tica transformou-se em sin�nimo de trai��o, o que impossibilitou definitivamente a corre��o de rumos e tornou curto o caminho para a repress�o massiva a todas as diverg�ncias (inclusive de esquerda), como nos soturnos "processos de Moscou" do final da d�cada de trinta. O que, no in�cio da Revolu��o, poderia ser tomado como distor��es de um processo, consolidou-se como um processo de distor��es. Quanto � Rep�blica de Weimar, fracassou rotundamente na tentativa de conciliar as contradi��es sociais da Alemanha. Quando, no final da d�cada de vinte, parecia que as turbul�ncias (hiperinfla��o, fal�ncias, desemprego em massa) do p�s-guerra estavam em vias de supera��o, precipitou-se no planeta a maior crise econ�mica j� experimentada pelo capitalismo - o crash de 1929, seguido de dez anos de depress�o - que trouxe de volta pobreza, desespero e luta social aguda � Alemanha. Na entrada dos anos trinta, configurava-se no pa�s um quadro pol�tico de virtual equil�brio de for�as entre projetos sociais opostos de esquerda e direita para sair da crise, com divis�es internas em ambos os campos. A grande burguesia alem�, desde a derrota na guerra, havia, aparentemente, convertido-se � democracia da Constitui��o de Weimar. Mas, ante o impasse que punha em risco seus interesses, n�o demorou para desvencilhar-se dos princ�pios de que h� pouco fazia profiss�o de f�. Reposicionou finan�as e meios de comunica��o em favor daquele emergente e outrora bizarro movimento de extrema direita que conseguia mobilizar a inseguran�a da classe m�dia e o terror dos desempregados de retornarem � mis�ria, exigindo vingan�a nacional, captura de "espa�o vital" para a Alemanha e unidade germ�nica contra ra�as "inferiores" e os bolchevistas. De outro lado, o sectarismo e a miopia pol�tica das esquerdas alem�s n�o as permitiu unirem-se para barrar a vit�ria eleitoral do Partido Nazista em 1933. Hitler chegou ao poder pelas vias formais de uma democracia parlamentarista, demonizou a oposi��o mediante a manipula��o do inc�ndio do Reichstag, promoveu a reforma da Constitui��o e, assim, mediante outorga parlamentar, obteve hipertrofia de poderes. Muitas variantes de movimentos fascistas, que j� vinham tomando f�lego desde meados da d�cada de vinte (na It�lia, Portugal, Jap�o etc.), disseminaram-se ent�o pela Europa: a "Guarda de Ferro" romena, a "Cruz em Seta" h�ngara, a "Falange" espanhola, a Croix de Feu francesa, a "Uni�o de Fascistas" brit�nica, etc., para n�o falar de cong�neres menos "respeit�veis" na Am�rica Latina. A jovem Rep�blica espanhola, nascida em 1931, foi esmagada na Guerra Civil (1936-1939) vencida pela coaliz�o direitista comandada pelo general Francisco Franco, proporcionando uma antevis�o do que seria a segunda Guerra Mundial que, � claro, a tr�pega Liga das Na��es n�o conseguiu evitar. O mundo, a partir da d�cada de trinta, havia se tornado desolador, e a desola��o s� iria aumentar at� 1945. O nazismo e os demais fascismos legislaram e agiram contra a Humanidade, praticaram pol�ticas racistas, xen�fobas e imperialistas, dividiram pessoas e popula��es entre as que deveriam viver e as que precisariam ser abolidas, tentaram o exterm�nio, por m�todos industriais, de povos inteiros, e levaram sessenta milh�es de seres humanos a morrerem durante a guerra que deflagraram. Esse per�odo produziu, com brutalidade nunca antes imaginada, a segunda grande crise dos Direitos Humanos, desde a Restaura��o europ�ia de 1815-1830, e teve, como se sabe, resultados muito mais funestos que ela. N�o porque esses Direitos estivessem, at� ent�o, sendo respeitados - a pr�pria luta hist�rica por sua conquista demonstra o contr�rio. � apropriado, contudo, falar-se numa grande crise dos Direitos Humanos nessa �poca, tanto pela extens�o, intensidade e atrocidade das viola��es ocorridas, como pela afirma��o de uma postura de negar validade � postula��o de titularidade dos Direitos Humanos para todos os seres humanos. Isso afastava tanto a no��o de que todas as pessoas s�o naturalmente titulares de direitos (vis�o jusnaturalista), como as v�rias concep��es que consideram essa titularidade como resultado do processo hist�rico de conquistas sociais. Negado isso, quaisquer atentados aos Direitos Humanos podem ser perpetrados sem subterf�gios. Esta express�o - sem subterf�gios - talvez d� uma das chaves para a compreens�o da natureza espec�fica daquela crise dos Direitos Humanos. N�o h� mais necessidade de "justificar" viola��es mediante recursos da racionalidade, ainda que racionalidade de fancaria, como era o padr�o anterior. Todos os que, real ou supostamente, se interpuserem ao objetivo eleito - salva��o da ra�a, reden��o da p�tria etc. - tornam-se simplesmente obst�culos a serem removidos. N�o s�o humanos ou, se o forem, s�o de uma esp�cie inferior. Na hip�tese mais ben�fica, s�o inassimil�veis. S�o, em todo caso, pouco mais (ou pouco menos) que animais - portanto, descart�veis: judeus, comunistas, social-democratas, sindicalistas, dissidentes cat�licos e protestantes, ciganos, deficientes mentais, eslavos, balc�nicos e hel�nicos n�o-colaboracionistas, etc.. Esse irracionalismo foi adequadamente simbolizado pela c�lebre exclama��o necr�fila criada pelo general Mill�n Astray, que se tornou divisa dos fascistas espanh�is: Abajo la inteligencia! Viva la muerte! A proximidade dos fatos hist�ricos pode tornar a narra��o redundante. Contudo, h� o registro: a barb�rie teve benefici�rios. Em dezembro de 1997, a dire��o do sindicato de metal�rgicos da empresa alem� IG METAL denunciou que a DAIMLER-BENZ AG, maior companhia industrial do pa�s, e a BOSCH, fabricante de componentes eletr�nicos e automobil�sticos, tiveram lucros com a utiliza��o de m�o de obra escrava durante a Segunda Guerra Mundial. Segundo o sindicato, no final do conflito a DAIMLER tinha 25.000 trabalhadores escravos. A SIEMENS AG, outra grande empresa alem�, tamb�m � acusada de beneficiar-se de trabalho escravo naquele tempo. No primeiro semestre de 1998, ap�s anos de press�es internacionais, os bancos su��os reconheceram que, valendo-se da neutralidade desse pa�s na guerra, participaram de opera��es sigilosas para receberem dep�sitos nazistas de valores confiscados de prisioneiros, principalmente judeus, mortos em campos de exterm�nio. Mais uma not�cia: em 7 de julho de 1998, a ind�stria automobil�stica VOLKSWAGEN, ap�s amea�ada de processo por judeus h�ngaros, anunciou por seu porta-voz, senhor Bernd Graef, que criaria um fundo para indenizar a m�o de obra escrava que utilizou em sua principal unidade durante a Segunda Guerra Mundial, � �poca instalada em Wolfsburg. Os escravos eram adolescentes retirados do campo de concentra��o de Auschwitz, na Pol�nia, transportados para aquela empresa. Ao tornar p�blico o an�ncio, o senhor Graef explicou que a Volkswagen foi uma das doze mil empresas alem�s que usaram trabalho escravo durante aquela �poca(187).

Reconstru��o, Amplia��o e Contradi��es dos Direitos Humanos Terminada a guerra, foi criada, em 26 de junho de 1945, pela Carta de S�o Francisco, a Organiza��o das Na��es Unidas, retomando o caminho interrompido da extinta Liga das Na��es, agora com mais amplitude. Desde o nascimento, a ONU n�o � um organismo democr�tico: ficou assegurado ao pequeno grupo de Estados com assento permanente no Conselho de Seguran�a o controle das decis�es pelo exerc�cio do direito de veto. Por�m, ante o balan�o aterrorizante que os vencedores da guerra fizeram das atrocidades dos vencidos, imp�s-se � comunidade internacional o resgate das no��es de Direitos Humanos que haviam sido pisoteadas at� recentemente. A Carta de S�o Francisco, logo no seu artigo 1�, colocou como preceitos, dentre outros, os seguintes: "Desenvolver rela��es entre as na��es, baseadas no respeito ao principio da igualdade de direitos e da autodetermina��o dos povos, e tomar outras medidas apropriadas ao fortalecimento da paz universal; conseguir uma coopera��o internacional para resolver os problemas internacionais de car�ter econ�mico, social, cultural ou humanit�rio, e para promover e estimular o respeito aos direitos humanos e �s liberdades fundamentais para todos, sem distin��o de ra�a, sexo, l�ngua ou religi�o...". Iniciaram-se, ent�o, os trabalhos que redundaram na "Declara��o Universal dos Direitos do Homem", adotada e proclamada pela Resolu��o n�mero 217 da Assembl�ia Geral das Na��es Unidas, em 10 de dezembro de 1948. N�o cabe a este trabalho analisar essa "Declara��o", pois ela e outros importantes instrumentos constituem, precisamente, o objeto de estudo dos demais cap�tulos deste livro. Vai, apenas, o seguinte registro geral: � considerado que, no plano internacional, a "Declara��o de 1948" inaugurou uma concep��o contempor�nea de Direitos Humanos, na medida em que integrou os direitos civis e pol�ticos, que vinham se desenvolvendo desde o s�culo XVIII, especialmente ap�s a "Declara��o" francesa de 1789, aos direitos econ�micos, sociais e culturais, demandados nos s�culos XIX e XX pelo movimento oper�rio, que foram valorizados particularmente ap�s a "Declara��o" russa de 1918. O cerne dessa nova concep��o consiste no reconhecimento de que comp�em o �mbito dos Direitos Humanos todas as dimens�es que disserem respeito � vida com dignidade - portanto, em Direito, deixou de fazer sentido qualquer contradi��o, ou hierarquia, ou "sucess�o" cronol�gica entre os valores da liberdade e da igualdade. Os Direitos Humanos conformam uma unidade universal, indivis�vel, interdependente e interrelacionada, id�ia reiterada na "Declara��o e Programa de A��o de Viena", de 25 de junho de 1993, com apoio do Brasil. Na medida em que s�o tomados como universais, isto �, inerentes a todas as pessoas, os Direitos Humanos exigem duas consequ�ncias. De um lado, apontam para a gradativa revis�o da no��o tradicional de soberania absoluta de cada pa�s: sendo os Direitos Humanos tema de leg�timo interesse de todas as nac�es, que n�o se circunscreve � jurisdi��o interna de cada Estado, o Direito preocupa-se com as hip�teses em que podem ser admitidas interven��es supranacionais no plano interno de cada pa�s nesta mat�ria. No dizer de PEDRO NIKKEN(188): "Se os direitos humanos limitam o exerc�cio do poder, n�o se pode invocar a atua��o soberana do governo para viol�-los ou impedir sua prote��o internacional. Os direitos humanos est�o acima do Estado e de sua soberania, e n�o pode ser considerado viola��o ao princ�pio da n�o-interven��o quando se p�em em movimento os mecanismos organizados pela comunidade internacional para sua promo��o e prote��o". De outro lado, similarmente, desenvolve-se a id�ia de que o indiv�duo, como sujeito de direitos, deve ter os seus Direitos Humanos protegidos tamb�m na esfera internacional. Desde o p�s-guerra j� foram adotados cerca de uma centena de instrumentos internacionais de prote��o dos Direitos Humanos, entre Declara��es e Tratados(189). Multiplicaram-se, tamb�m, as institui��es e mecanismos internacionais de prote��o dos Direitos Humanos, quase sempre criados por tratados internacionais. Atualmente j� s�o mais de quarenta. Merecem destaque, por sua import�ncia, a Corte europ�ia e a Corte Interamericana de Direitos Humanos, esta �ltima criada pelo Pacto de San Jos� da Costa Rica, de 22 de novembro de 1969, ratificado pelo Brasil em 25 de setembro de 1992. Ao mesmo tempo em que foram resgatados e integrados, alguns Direitos Humanos - por sinal, muito antigos - foram tamb�m, pela primeira vez, levados a s�rio. J� na �poca da cria��o da ONU e, com mais �nfase nas d�cadas de cinquenta e sessenta, vigorosas lutas de liberta��o nacional obrigaram a que o velho direito � autodetermina��o dos povos, t�o proclamado quanto violentado com arrog�ncia pelas pot�ncias colonialistas, passasse, finalmente, da teoria � pr�tica. N�o por d�diva da comunidade internacional - que o digam, dentre outros, os povos da �ndia, Indochina, Arg�lia, Congo, Eti�pia, Angola, Mo�ambique, Guin� Bissau, Zimb�bue e, ainda neste final de s�culo, de Timor Oriental. Mesmo ap�s subscreverem a Carta de S�o Francisco e a "Declara��o" de 1948, as velhas metr�poles colonialistas continuaram remetendo tropas e armas para tentar esmagar essas lutas e, em praticamente todos os casos, s� se retiraram ap�s derrotadas por esses povos. Ademais, nas �ltimas d�cadas vem se desenvolvendo o que se convencionou chamar de direitos da solidariedade ou direitos difusos da Humanidade inteira, tais como o direito ao desenvolvimento, direito � paz, direito ao meio ambiente sadio e equilibrado etc.. Tamb�m neste caso n�o seria necess�ria uma pesquisa muito longa para evidenciar que o processo social tendente a alcan�ar a vig�ncia real destes direitos est� longe de ser como um piquenique numa ensolarada manh� de domingo. Embora digam respeito a temas que os modismos trataram de introduzir em todos os sal�es, interesses econ�micos poderos�ssimos op�em-se a eles. Ao longo da segunda metade do s�culo XX, a grande maioria dos pa�ses aderiu aos instrumentos internacionais do sistema global de prote��o dos Direitos Humanos, al�m de celebrarem pactos e conven��es regionais (Europa, �frica, Am�ricas, etc.) com o mesmo prop�sito. Quase todos os pa�ses do planeta incorporaram �s suas Constitui��es e disposi��es infra-constitucionais normas na mesma dire��o. Isto poderia ser um retrato a cores do melhor dos mundos, se o direito positivo fosse o retrato fiel do mundo. Se, no plano jur�dico, a antiga contradi��o entre a liberdade (individualista) e a demanda de igualdade real encontrou caminhos para ser conceitualmente superada, � f�cil constatar que nem mesmo no plano jur�dico essa "supera��o" foi incorporada - basta olhar para os comp�ndios de doutrina que insistem em qualificar os direitos sociais como meramente "program�ticos" (n�o exig�veis...), ou para as normas legais que os tratam efetivamente dessa maneira ou, ainda, para os tribunais que, quase sem exce��es, acatam esse entendimento. N�o � sem motivos que aquela contradi��o, malgrado superada conceitualmente, persiste com tanta for�a no interior do pr�prio Direito: � que ela n�o foi ainda superada no terreno mais palp�vel e mais sens�vel da vida. Aquela contradi��o persiste na sociedade. A solu��o jur�dico-conceitual concebida n�o corresponde � sua efetividade social. O problema n�o reside no conceito, reside na realidade. Configura-se uma situa��o em que, entre dispor formalmente de instrumentos jur�dicos para a prote��o dos Direitos Humanos e efetivamente lev�-los � pr�tica, medeia, com cansativa freq��ncia, uma dist�ncia tr�gica - que se nutre de vis�es conservadoras de mundo, "raz�es de Estado", interesses de classe e de grupos, preconceitos irracionais persistentes, ou "resigna��o" objetivamente c�mplice. Na medida em que a contradi��o n�o for tamb�m superada na pr�pria sociedade em que vivem as pessoas reais, ser� preciso atentar com cuidado se aquela f�rmula conceitual unificadora, t�o placidamente aquiescida hoje por todos os Estados, n�o se converter� em novo estratagema de ilus�o social ou em mecanismo de auto-ilus�o. Isto j� aconteceu outras vezes no passado, n�o chegaria a ser propriamente novo na hist�ria do Direito. N�o se trata de hip�tese especulativa. A din�mica da economia mundial nas �ltimas d�cadas tornou inquietante o futuro dos Direitos Humanos. Longe de reduzir a desigualdade social, manteve-a e tende a aument�-la, repondo a contradi��o entre uma "igualdade" (meramente jur�dica) reservada aos de baixo e a liberdade econ�mica (esta, real) das elites. A ci�ncia, aplicada intensivamente � produ��o (inform�tica, robotiza��o, microeletr�nica, qu�mica fina, novos materiais, etc.) aumentou a produtividade do trabalho. Mas, por falta de apropria��o social desse processo, em vez de ampliar as horas de lazer para desfrute humano, ampliou o desemprego - agravado pela crise econ�mica. Em 1996 j� existia, no planeta azul a que chamamos Terra, UM BILH�O de desempregados ou subempregados - cerca de 30 % da for�a de trabalho mundial(190) . No lugar do antigo desemprego c�clico, que acompanhava as crises c�clicas, surgiu a categoria do desemprego estrutural, isto �, permanente. Aumentou a liberdade do capital, agora � "global". E diminuiu a liberdade dos trabalhadores: para protelar o desemprego, submetem-se a condi��es deplor�veis de sal�rio e trabalho - o que, por sua vez, aumenta mais a liberdade do capital para "flexibilizar" a bel-prazer ("precarizar") as rela��es de trabalho. Com m�os desembara�adas, organiza o ataque a direitos que j� se pensava consolidados h� muito tempo: primeiro, os direitos sociais retrocederam a uma situa��o de risco, em muitos casos retrocederam mesmo de fato, e agora come�am a retroceder na legisla��o. Nesse caso, � apropriado dizer que o movimento do Direito "retrata" o movimento da realidade. Quais Direitos Humanos restar�o para multid�es descartadas da economia, do consumo e do mercado? Continuamos convivendo com a velha contradi��o dos tempos da primeira Revolu��o Industrial: nunca a ci�ncia, a t�cnica e os meios produtivos dispuseram de tantas e t�o concretas possibilidades para colocar um fim a velhos males (fome e subnutri��o, mol�stias infeciosas antigas, car�ncia de habita��o, distribui��o desigual da educa��o, etc.), mas a triunfante l�gica da produ��o para o mercado e para o lucro privado impede que se libere o uso social dessas possibilidades extraordin�rias. Socializar preju�zos, privatizar lucros - a velha f�rmula voltou a impor-se com f�lego renovado na crise capitalista mundial que fechou o s�culo XX. O "neoliberalismo" assemelha-se cada vez mais ao liberalismo ortodoxo dos primeiros tempos. Os direitos civis tamb�m n�o est�o a salvo. Apesar de avan�os em alguns pa�ses em rela��o � igualdade de g�neros ou aos direitos de certas minorias mais organizadas, � certo que as garantias dos direitos individuais n�o s�o as mesmas para todos, ou o s�o nas leis, mas � de realidade que importa falar. Quem s�o as v�timas mais usuais de agress�o policial, deten��o arbitr�ria, tortura, aprisionamento al�m da pena, preconceito, discrimina��o no emprego, no acesso � educa��o, na representa��o pol�tica, e assim por diante? As mesmas de duzentos anos atr�s. Fortalece-se, por toda parte, o cinismo de elites tendente a qualificar os trabalhadores - principalmente os exclu�dos do mercado e do consumo - mais ou menos como categoria inferior de humanos. �s vezes, isso manifesta-se de modo dissimulado. Outras vezes, extravasa como nostalgia de solu��es fascistas contra os que s�o encarnados como amea�a: migrantes, desempregados, grupos �tnicos ou regionais, presidi�rios, crian�as de rua, miser�veis em geral etc.. A �rea decisiva das rela��es humanas no mercado vem minando as bases de exist�ncia dos Direitos Humanos. E, no plano ideol�gico, enquanto os porta-vozes mais toscos do "pensamento �nico" neoliberal investem abertamente contra os Direitos Humanos, os arautos mais sofisticados do neoliberalismo dedicam-lhes condescend�ncia apropriada a romantismos fora de moda. � como se tivessem conclu�do que n�o h� mais necessidade de combater os Direitos Humanos nas inst�ncias da racionalidade e dos valores, pois tornou-se mais eficiente "acat�-los" para melhor desacat�-los. Mas a Hist�ria n�o chegou ao fim. Se o discurso dos Direitos Humanos mantiver-se como cr�tica da sociedade, cumprir� papel transformador. O fala do conformismo, malgrado sua for�a alienadora, tem limites na pr�pria realidade que busca conservar. Os que, em todas as �pocas, combateram pelos Direitos Humanos nunca deixaram de saber qu�o �rdua e sempre inacabada foi sua conquista. Far� bem aumentar a consci�ncia dos obst�culos a superar. Isso sempre conduziu a que caminhos novos fossem iluminados e a que florescessem for�as que estavam guardadas no fundo do peito. Por qu� seria agora diferente?

____________ (1) N�o � o caso de se discutir aqui os modos de exist�ncia assumidos pelo feudalismo na �sia. (2) As periodiza��es s�o imprecisas, h� diverg�ncias entre os historiadores e varia��es de pa�s para pa�s. Mas parece haver certo consenso no sentido de que, na maior parte da Europa ocidental, o feudalismo iniciou seu muito prolongado decl�nio em torno do s�culo XII. (3) "O senhor de terras caracter�stico das �reas de servid�o era assim um nobre propriet�rio e cultivador ou um explorador de enormes fazendas. A vastid�o desses latif�ndios era espantosa: Catarina, a Grande, deu entre 40 e 50 mil servos aos seus favoritos; os Radziwill da Pol�nia tinham fazendas t�o grandes quanto metade da Irlanda; Potocki possu�a tr�s milh�es de acres na Ucr�nia ; os Esterhazy h�ngaros (patronos de Haydn) possu�am em certa �poca sete milh�es de acres. Eram comuns as fazendas de v�rias centenas de milhares de acres. Embora muitas vezes descuidadas, primitivas e improdutivas, elas forneciam rendimentos principescos. O grande nobre espanhol podia, conforme observou um visitante franc�s sobre as desoladas fazendas Medina Sidonia, ' reinar como um le�o na selva e espantar com seu urro tudo que dele se aproximasse', mas nunca estava sem dinheiro, mesmo pelos padr�es dos milordes brit�nicos'." (Eric J. Hobsbawm, A Era das Revolu��es - 1789/1848. 9. ed., S�o Paulo, Paz e Terra, 1996, p. 31-32) (4) "Corv�ia": designa��o atribu�da aos dias de trabalho gratuito que os servos deviam ao senhor da terra. (5) Direito de "pernada" ou "jus primae noctis": direito dos senhores de manterem rela��o sexual com as jovens alde�s de seu feudo na noite em que elas se casassem. (6) "Qu� adianta ao homem ganhar o mundo inteiro, mas perder a sua alma ?" (Mateus, 16-26). "Se voc� quer ser perfeito, venda tudo o que tem, d� o dinheiro aos pobres, e voc� ter� um tesouro no c�u (idem, 19-21)."E digo ainda: � mais f�cil um camelo entrar pelo buraco de uma agulha do que um rico entrar no Reino de Deus" (ibidem, 19-24). (7) Robert Heilbroner, Hist�ria do Pensamento Econ�mico, S�o Paulo, Nova Cultural, 1996, p. 25. (8) "Floren�a, a cidade que Bocaccio menciona, perdeu 100.000 habitantes; Londres cerca de 200 por dia, e Paris, 800 por dia. Na Fran�a, Inglaterra, Pa�ses Baixos e Alemanha, entre um ter�o e metade da popula��o foi dizimada !...T�o grande foi a mortandade que uma nota de desespero pouco comum se insinua nos escritos de um monge irland�s da �poca: ' A fim de que meus escritos n�o pere�am juntamente com o autor, e este trabalho n�o seja destru�do...deixo meu pergaminho para ser continuado, caso algum dos membros da ra�a de Ad�o possa sobreviver � morte e queira continuar o trabalho por mim iniciado'". (Leo Huberman, Hist�ria da Riqueza do Homem, 21. ed., Rio de Janeiro, LTC-Livros T�cnicos e Cient�ficos, p. 49) (9) Leo Huberman, obra citada, p. 49-50. (10) Cf. Era da Calamidade, s�rie Hist�ria em Revista, v�rios autores, Rio de Janeiro, Abril Livros, p. 39. (11) Na Fran�a do s�culo XVIII, os termos bourgeois e citoyen j� refletiam essa diferen�a. (12) Leo Huberman, obra citada, p. 51-52. (13) Idem, p. 147. (14) Michel Miaille, Introdu��o Cr�tica ao Direito, 2. ed., Lisboa, Editorial Estampa, 1994, p. 264. (15) "A palavra 'urbano' � certamente amb�gua. Ela inclui as duas cidades europ�ias que, por volta de 1789, podem ser chamadas de genuinamente grandes segundo os nossos padr�es - Londres, com cerca de um milh�o de habitantes, e Paris, com cerca de meio milh�o - e umas 20 outras com uma popula��o de 100 mil ou mais: duas na Fran�a, duas na Alemanha, talvez quatro na Espanha, talvez cinco na It�lia (o Mediterr�neo era tradicionalmente o ber�o das cidades), duas na R�ssia, e apenas uma em Portugal, na Pol�nia, na Holanda, na �ustria, na Irlanda, na Esc�cia e na Turquia europ�ia. Mas o termo 'urbano' inclui tamb�m a multid�o de pequenas cidades de prov�ncia , onde se encontrava realmente a maioria dos habitantes urbanos." (Eric J. Hobsbawm, obra citada, , p. 27) (16) Jean Tulard, Hist�ria da Revolu��o Francesa, S�o Paulo, Paz e Terra, 1990 (edi��o com apoio do Minist�rio da Cultura da Fran�a), p. 36. (17) Eric J. Hobsbawm, obra citada, p. 74-75. (18) Alexis de Tocqueville, cf. Cambridge Modern History, v. VII, p. 72, reproduzido por Leo Huberman, obra citada, p. 146. (19) Georges Lefebvre, em seu cl�ssico 1789-O Surgimento da Revolu��o Francesa, (S�o Paulo, Paz e Terra, 1989), registra que, nessa �poca, todos os bispos j� s�o nobres (p. 43). Refere ainda (p. 37) que as propriedades fundi�rias do clero ainda englobavam provavelmente uma d�cima parte do reino. (20) George Lefebvre, obra citada, p. 38. (21) Idem, p. 39-40: "Outro tipo de nobreza se justap�s � nobreza de espada, � velha, ou supostamente tal, nobreza. O rei pode enobrecer e sempre recompensou dessa forma os seus servidores; nos s�culos XVI e XVII, tendo adquirido o costume, para obter dinheiro, de vender as fun��es p�blicas - sobretudo as judiciais, mas tamb�m as financeiras, militares, administrativas e municipais - ocorreu-lhe a id�ia de enobrecer alguns desses cargos ou 'offices', para elevar seu pre�o. A nobreza heredit�ria passou a ser outorgada a membros dos tribunais judiciais parisienses - Parlamento, Tribunal de Contas, Tribunal de Ajudas, Grande Conselho, Magistratura, Tribunal da Moeda - e a membros de alguns tribunais de prov�ncia; nos outros, a nobreza concedida a t�tulo pessoal tornava-se transmiss�vel ap�s certo tempo de exerc�cio da fun��o: era a nobreza de toga". (22) "No campo, predomina um proletariado de criados, jornaleiros (diaristas), debulhadores e vinhateiros que conta apenas com o sal�rio para se sustentar e representa, pelo menos, 40% da popula��o rural. � o primeiro setor atingido pela crise". (Jean Tulard, obra citada, p. 35). (23) Jos� II (�ustria), Frederico II (Pr�ssia), Catarina II (R�ssia), Marqu�s de Pombal (Portugal) etc.. (24) Albert Soboul, A Revolu��o Francesa, 7. ed., Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 1989, p. 13. (25) Eric J. Hobsbawm, obra citada, p. 73. (26) Emmanuel Joseph Siey�s, in: Qu� � o Terceiro Estado? (A Constituinte Burguesa), 2. tiragem, Rio de Janeiro, Liber Juris, 1988, p. 63-69, 89-93, 103-104, 113, 132-133 e 135. (27) Divergiam, por exemplo, quanto � fun��o social, melhor dizendo, quanto � valora��o moral que atribu�am � propriedade privada. Outro exemplo: Hobbes, Locke e Rousseau referem-se a um contrato social, mas concebendo-o, cada um deles, de modo significativamente diverso. (28) Eric J. Hobsbawm, obra citada, p. 36. (29) "Direito" e "Justo" podem expressar-se por uma mesma palavra grega: "Dikaion". (30) Jean Tulard, obra citada, p. 24. (31) Montesquieu, por exemplo, indica que as leis n�o surgem da mera vontade humana, mas decorrem de condi��es sociais, pol�ticas, clim�ticas etc. - em suma, de um direito natural mais pr�ximo do sentido que lhe atribu�a Arist�teles; ao passo que Rousseau distancia-se dessa no��o, enfatizando a natureza especificamente humana e o acordo entre os indiv�duos (o contrato social) que funda a sociedade. (32) Michel Miaille, Introdu��o Cr�tica ao Direito, 2. ed., Lisboa, Editorial Estampa, 1994, p. 265. (33) Paulo Sandroni (consultoria), Dicion�rio de Economia, S�o Paulo, Nova Cultural, 1985, p. 173. (34) Cf. Eric Hobsbawm, Ecos da Marselhesa. 9. ed., S�o Paulo, Schwarcz, 1996, p. 27. Hobsbawm ainda registra (p. 38 da mesma obra) que o pr�prio abade Siey�s era "um paladino de Adam Smith". Tamb�m Jos� Ribas Vieira, no estudo de pref�cio � edi��o brasileira j� mencionada de "Qu� � o Terceiro Estado? ", anota (p. 38) a influ�ncia do pensamento econ�mico de Adam Smith sobre o abade Siey�s. (35) S�ntese a partir de: Adam Smith, A Riqueza das Na��es, S�o Paulo, Nova Cultural, 1996; Paulo Sandroni, obra citada; Robert Heilbroner, Hist�ria do Pensamento Econ�mico, mesma editora, 1996, p. 43-72; e Eric J. Hobsbawm, A Era das Revolu��es, p. 259. (36) Georges Lefebvre, 1789-O Surgimento da Revolu��o Francesa, S�o Paulo, Paz e Terra, 1989, p. 71. (37) Albert Soboul, A Revolu��o Francesa, 7. ed., Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 1989, p. 9. (38) O Parlamento aristocr�tico de Paris (suprimido por Lu�s XV, mas imprudentemente restabelecido por Lu�s XVI), recusou-se a registrar, em mar�o de 1776, os editos do rei que visavam abolir as corpora��es de of�cios e a corv�ia real e instituir um imposto territorial a ser cobrado de todos os propriet�rios, pequenos ou grandes. Eis o indignado protesto desse �rg�o de privilegiados: "Todo sistema que, sob uma apar�ncia de humanidade e benevol�ncia, tendesse, numa monarquia bem ordenada, a estabelecer entre os homens uma igualdade de deveres e a destruir as distin��es necess�rias, levaria em breve � desordem, seq�ela inevit�vel da igualdade absoluta, e acarretaria a derrocada da sociedade...Quais n�o seriam ent�o os perigos de um projeto produzido por um sistema inadmiss�vel de igualdade, o primeiro efeito do qual � confundir todas as Ordens do Estado ao lhes impor o jugo uniforme do imposto territorial ! (...) O servi�o individual do clero � desempenhar todas as fun��es relativas � instru��o, ao culto religioso e ajudar a aliviar o sofrimento dos infelizes por meio de esmolas. O nobre dedica seu sangue � defesa do Estado e assiste com seus conselhos ao soberano. A �ltima classe da na��o, que n�o pode prestar ao Estado servi�os t�o elevados, cumpre seu dever para com ele atrav�s dos tributos, da ind�stria e dos trabalhos bra�ais." (Cf. Jean Tulard, obra citada, p. 28-29) (39) As "cartas r�gias" (lettres de cachet ) eram mandados expedidos diretamente pelo rei para autorizar cobran�as ou determinar a pris�o sum�ria de pessoas. (40) Georges Lefebvre, obra citada, p. 69. (41) H� imprecis�o de cifras entre os historiadores, pois as estat�sticas eram prec�rias na Fran�a setecentista. Mas os n�meros dispon�veis indicam que os nobres e seus familiares somavam, no m�ximo, 2,5 % de uma popula��o entre 23 e 25 milh�es de habitantes; e o conjunto do clero n�o devia chegar a 2%. (42) Cf. Jean Tulard, obra citada, p. 44-45; e Georges Lefebvre, obra citada, p. 84. Este �ltimo autor registra que o Terceiro Estado chegou a eleger como seus representantes, al�m da esmagadora maioria burguesa, alguns nobres e padres desprezados por suas ordens de origem, como o abade Siey�s. (43) Cf. Albert Soboul, obra citada, p. 41. (44) Taine, citado por Jean Tulard, obra indicada, p. 44. (45) "Jeu de Paume": era a sala do "jogo de pela" do H�tel des Menus, onde reuniram-se naquele dia os deputados burgueses. Prestaram o "...juramento solene de n�o se separarem jamais e de se reunirem sempre que as circunst�ncias o exigirem, at� que a Constitui��o do reino seja estabelecida..." (46) Cf. Georges Lefebvre, obra citada, p. 105. (47) Esta cifra sofre varia��es m�nimas nos relatos. Tulard (obra citada, p. 57) indica 30.000 fuzis e Lefebvre (obra citada, p. 127) refere-se a 32 mil. Seja como for, � bastante: moravam em Paris cerca de 500 mil pessoas em 1789. Atualizando-se essa propor��o, por exemplo, para a cidade de S�o Paulo nos dias de hoje (10 milh�es de habitantes) isso eq�ivaleria a 600.000 fuzis. N�o se trata, evidentemente de isolar e superestimar o fato. Mas, considerando uma popula��o mobilizada e enfurecida com os governantes, podemos avaliar o quanto essa apreens�o de armas significou de impulso para a Revolu��o. (48) Cf. Segundo Eric Hobsbawm (obra indicada, p. 83), 300.000 franceses emigraram entre 1789 e 1795. (49) Seu recolhimento duraria pouco. Como a carestia continuasse a galope, uma passeata de 20.000 pessoas, composta principalmente de mulheres famintas, marchou em 5 de outubro de Paris para Versalhes e for�ou alguns deputados a acompanharem-nas para pedir p�o ao rei. A tradi��o oral cunhou que a rainha Maria Antonieta teria respondido: "N�o h� p�o? Que comam brioches". Ao raiar do dia 6, o cord�o de manifestantes, j� muito exaltado, invadiu o pal�cio, chocou-se com os guarda-costas (alguns foram mortos) e arrombou a entrada dos aposentos da rainha, que refugiou-se nos aposentos do rei. Do balc�o dourado do p�tio de m�rmore, Lu�s XVI acalmou os manifestantes, assentindo aos apelos da multid�o para que se transferisse com a fam�lia real para Paris, para "cuidar" do povo. Na mesma tarde, com charretes transportando todo o trigo e farinha estocados no pal�cio, e cercado pela multid�o, o rei mudou-se para Paris - como se sabe, para sempre... (50) S�ntese e excertos do texto integral da "Declara��o" a partir da tradu��o de Jorge Miranda in Textos Hist�ricos do Direito Constitucional, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1990, p. 57-59. (51) Norberto Bobbio, A Era dos Direitos, Rio de Janeiro, Campus, 1992, p. 93. (52) Ou: "imprescrit�veis", conforme a tradu��o que consta nas obras mencionadas de Lefebvre e Bobbio. (53) Silva, Jos� Afonso da, Curso de Direito Constitucional Positivo, 3. ed., S�o Paulo, Revista dos Tribunais, 1985, p. 265-266. (54) Cf. Georges Lefebvre, obra indicada, p. 177-178. (55) Georges Lefebvre, obra citada, p. 182. (56) Albert Soboul, obra citada, p. 48. (57) Albert Soboul, obra citada, p. 44-45. (58) Silva, Jos� Afonso da, Curso de Direito Constitucional Positivo, 3. ed., S�o Paulo, Revista dos Tribunais, 1985, p. 265. (59) Eric J. Hobsbawm, A Era das Revolu��es, 9. ed., S�o Paulo, Paz e Terra, 1996, p. 77. (60) Jean Tulard, obra citada, p. 83-84. (61) Albert Soboul, obra indicada, p. 46. (62) Jean Tulard, obra mencionada, p. 112. (63) Albert Soboul, obra citada, p. 35. (64) Albert Soboul, idem p. 43. (65) Jean Tulard, obra citada, p. 365. (66) Idem, p. 106. (67) Ibidem, p. 108. (68) Eric J. Hobsbawm, obra citada, p. 83. (69) Literalmente, os que n�o vestiam os "culottes" (cal��es com meias altas usados pelos ricos). Eram um movimento popular socialmente heterog�neo, formado principalmente por artes�os, pequenos lojistas e profissionais de classe m�dia. Traziam consigo os trabalhadores assalariados (que, na �poca, ainda n�o dispunham de perspectiva pol�tica independente). Unificava-os o �dio comum � nobreza e aos burgueses ricos e a�ambarcadores. O ideal social dos "sans culottes" enraizava-se na defesa da pequena propriedade artesanal e comercial, no patriotismo e no exerc�cio da soberania popular. Desconfiavam da democracia representativa, reclamavam o controle dos mandatos e sua revogabilidade pelos eleitores. A partir de meados de 1793, desenvolveram nas "sections" de Paris formas muito ativas de democracia direta. (70) Mesmo nunca tendo sido at�ia, a postura laica e liberal da Revolu��o jogou desde o in�cio a Igreja Cat�lica contra ela. Para n�o perder sua posi��o de religi�o dominante, a Igreja Cat�lica op�s-se � liberdade religiosa proclamada na Declara��o dos Direitos do Homem de agosto de 1789, Declara��o essa que foi condenada pelo Papa como "�mpia". A oposi��o da Igreja � Revolu��o radicalizou-se ap�s estas quatro outras medidas adotadas pela Assembl�ia Constituinte: a) nacionaliza��o (novembro de 1789) e posterior venda p�blica da maioria dos imensos bens do clero, numa tentativa de resolver o enorme d�ficit p�blico; b) aboli��o, em nome da liberdade individual, dos votos de clausura que as congrega��es mon�sticas impunham a seus membros (janeiro de 1790); c) institui��o de uma Constitui��o Civil para o clero secular (julho de 1790) que, embora mantendo a primazia espiritual do Papa, retirava-lhe a jurisdi��o sobre a Igreja na Fran�a ao obrigar bispos e p�rocos a serem eleitos; d) determina��o (novembro de 1790) no sentido de que bispos e padres deveriam fazer um juramento p�blico de fidelidade � na��o e �s leis do pa�s. O Papa, pelas proclama��es pontif�cias ("breves") de 11 de mar�o e de 13 de abril de 1791, condenou solenemente os princ�pios da Revolu��o. Sobreveio ent�o um cisma na Igreja francesa entre "juramentados" e "n�o-juramentados" (ou "refrat�rios"). Os "n�o-juramentados", que foram maioria, passaram � milit�ncia contra-revolucion�ria. E os revolucion�rios lan�aram-se a uma campanha de "descristianiza��o": substitui��o de nomes crist�os por nomes laicos, culto � Raz�o, fechamento de igrejas "n�o-juramentadas" etc.. Houve ocasi�es que essa campanha degenerou em vandalismo contra objetos religiosos, igrejas e bispos. (cf. Albert Soboul, obra citada, p. 46-48; e Jean Tulard, obra citada, p. 96-100, 170, 213 e 222). (71) Eric J. Hobsbawm, obra citada, p. 86. (72) O conte�do pol�tico das express�es "esquerda" e "direita" �, evidentemente, relativo ao contexto da �poca. Esses termos come�aram a ser usados em 1789, nos debates da Assembl�ia Nacional Constituinte, quando os deputados favor�veis � manuten��o do poder absoluto do rei de vetar leis sentaram-se � direita do presidente da sess�o e os partid�rios da limita��o desse poder pela vontade popular sentaram-se � esquerda. Essa topon�mica pol�tica inicial logo evoluiu para designar os que queriam moderar o processo revolucion�rio, ou mesmo d�-lo por encerrado ("direita"); e os que entendiam ser inevit�vel sua amplia��o ou aceleramento, sob pena de retorno do Antigo Regime ("esquerda"). Nas sucessivas fases do processo alguns personagens e correntes revolucion�rias transitaram de posi��o. Por exemplo: os Girondinos, que expressavam principalmente os interesses da alta burguesia comercial, formaram inicialmente � esquerda mas, com a ascens�o do movimento dos "sans culottes", deslocaram-se para a direita. Os Jacobinos (Robespierre, Marat, Saint-Just etc.), que constitu�ram o maior de todos os clubes pol�ticos, eram rousseaunianos ardorosos, apoiavam-se principalmente na m�dia burguesia, em alian�a com as classes populares, e mantiveram-se quase sempre � esquerda, embora tivessem sofrido dissid�ncias (� direita e � esquerda). Danton, que antes da Revolu��o fora advogado do Conselho do Rei, tornou-se em seguida jacobino destacado (inspirou, inclusive, a cria��o do Tribunal Revolucion�rio do per�odo do "Terror"), inclinou-se para a direita em 1794, foi acusado de corrup��o e terminou condenado � guilhotina. Surgiram, ainda, correntes minorit�rias que - para o contexto - eram "extrema-esquerda": baseadas principalmente na "sans-culotterie" e portando reivindica��es democr�tico-populares (H�bert, Jacques Roux) ou antecipadoras do socialismo moderno (Gracchus Babeuf), aliaram-se v�rias vezes aos Jacobinos contra a direita - o que n�o impediu os Jacobinos de tamb�m massacr�-los quando tentaram andar com as pr�prias pernas. Por fim, durante o per�odo de radicaliza��o revolucion�ria ("Terror") houve um setor de deputados conhecido como Marais (P�ntano) que preferiu manter-se em posi��es discretas e pouco definidas (Boissy d'Anglas, o abade Siey�s etc.) e que terminou depois por unir-se com a direita para derrotar a "rep�blica jacobina" em julho de 1794 e articular o golpe de Estado de Napole�o Bonaparte em 1799. Estes exemplos, � claro, n�o esgotam o complicado leque de tend�ncias que foram se formando, fundindo ou dissolvendo durante os anos da Revolu��o. (73) No esfor�o de "descristianiza��o", a Conven��o Nacional havia repudiado o calend�rio crist�o. Adotou um novo calend�rio, em que o "Ano I" da Revolu��o come�ava em 22 de setembro de 1792, o "Ano II" em 22.09.1793, e assim por diante. Os meses, contados tamb�m a partir de setembro, receberam nomes ligados � natureza: Vindim�rio (m�s das vindimas), Brum�rio (m�s de neblinas), Frim�rio (m�s de geadas), Nivoso (de neves), Pluvioso (de chuvas), Ventoso (de ventos), Germinal (germina��o das sementes), Floreal (m�s das flores), Pradial (m�s das pradarias), Messidor (m�s das colheitas), Termidor (m�s do calor) e Frutidor (m�s das frutas). (74) S�ntese e excertos dos textos das Constitui��es francesas de 1791 e 1793 a partir da tradu��o de Jorge Miranda, Textos Hist�ricos do Direito Constitucional, Lisboa, Impresa Nacional-Casa da Moeda, 1990, p. 61-91. (75) Eric J. Hobsbawm, obra citada, p. 87-88. (76) Cf. Jean Tulard, obra citada, p. 196. (77) Cf. Albert Soboul, obra citada, p. 57. (78) Emmanuel Joseph Siey�s, obra citada, p. 82. (79) Cf. Jean Tulard, obra citada, p. 207-215. (80) Albert Soboul, obra citada, p. 68. (81) Idem, p. 73. (82) Jean Tulard, obra indicada, p. 211. (83) Cf. Jean Tulard, obra mencionada, p. 246. (84) Jean Tulard, obra citada, p. 249. (85) Remanescentes dos jacobinos, cuja bancada ficava na parte mais alta ("Montanha") do anfiteatro da Conven��o. (86) Cf. Jean Tulard, obra citada, p. 255. (87) Cf. Jean Tulard, obra citada, p. 251. (88) S�ntese, excertos e refer�ncias � Constitui��o de 1795 conforme Jean Tulard, obra citada, p. 255-259; e Albert Soboul, obra indicada, p. 83-84. (89) Cf. Jean Tulard, obra citada, p. 256. (90) Esta e as demais cita��es relativas � "Revolta dos Iguais" foram extra�das da obra mencionada de Jean Tulard, p. 278-282. (91) "Povo da Fran�a! Durante quinze s�culos viveste escravo e, por conseguinte, infeliz. H� seis anos mal respiras, na expectativa da independ�ncia, da felicidade e da igualdade. A igualdade, primeira necessidade do homem e principal la�o de toda associa��o leg�tima! Infeliz daquele que opuser resist�ncia a um anseio t�o forte! A Revolu��o Francesa � apenas o prel�dio de outra revolu��o muito maior, mais solene e que ser� a �ltima. O povo passou por cima do corpo dos reis e dos padres coligados contra ele; far� o mesmo aos novos tiranos, aos novos tartufos pol�ticos sentados no lugar dos antigos... Precisamos da igualdade n�o apenas registrada na Declara��o dos Direitos do Homem e do Cidad�o, a queremos no meio de n�s, sob o teto de nossas casas. Sacrificamos tudo por ela, at� fazemos t�bula rasa para nos atermos apenas a ela. Que pere�am, se preciso for, todas as artes, desde que nos reste a igualdade real. A reforma agr�ria ou a partilha das terras foi o anseio instant�neo de alguns soldados sem princ�pios, de alguns povoados movidos pelo instinto, mais que pela raz�o. Queremos algo mais sublime e mais equitativo, o bem comum ou a comunidade dos bens! N�o mais propriedade individual da terra, a terra n�o � de ningu�m, os frutos s�o de todos... Desapare�am. finalmente, as revoltantes distin��es entre ricos e pobres, grandes e pequenos, senhores e criados, governantes e governados ! Povo da Fran�a, abra os olhos e o cora��o � plenitude da felicidade: reconhe�a e proclame conosco a Rep�blica dos Iguais!" (92) Eric J. Hobsbawm, obra citada, p. 92. (93) T. H. Marshall, Cidadania, Classe Social e Status, Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1967, p. 70. (94) Cf. Jean Tulard, obra citada, p. 224. (95) Procurados pelas pol�cias pol�ticas de todo o continente, os revolucion�rios europeus uniram-se em sociedades secretas ritualizadas e hierarquizadas internamente, � semelhan�a do modelo de organiza��o da Ma�onaria. Essas irmandades "carbon�rias", que surgiram inicialmente na It�lia, mas rapidamente se espalharam por quase toda a Europa, faziam um am�lgama de republicanismo jacobinista com reivindica��es sociais inspiradas em Babeuf, adotavam m�todos radicais de luta contra as monarquias, mas permaneceram quase sempre isoladas do povo. Isso levou ao fracasso as v�rias tentativas insurrecionais de que participaram - N�poles em 1820, Piemonte em 1821, R�ssia (os "dezembristas") em 1825, Em�lia Romagna em 1831 - exceto na Gr�cia, onde a luta pela independ�ncia contra o Imp�rio Otomano granjeou, a partir de 1821, vasto apoio popular. (96) Hobsbawm, Eric J., obra citada. (97) A "Revolu��o Gloriosa" de 1688 foi o coroamento de um longo processo hist�rico de disputas da aristocracia e da burguesia inglesas contra seus reis. J� em 1215, em pleno feudalismo, os bar�es ingleses rebelados impuseram ao rei Jo�o Sem Terra a "Magna Charta Libertatum", documento de restri��es ao poder do soberano que, excetuados os servos, garantia a "todos os homens livres do reino" (nobres, grandes mercadores, eclesi�sticos e burgueses das cidades) v�rias liberdades e garantias - a mais famosa delas, inscrita no artigo 39 daquele texto, foi antecessora do moderno "habeas corpus": proibia que homens livres fossem presos, exilados ou tivessem bens confiscados, "a n�o ser mediante um julgamento regular por seus pares ou conforme a lei do pa�s". A "Magna Charta" foi confirmada dezenas de vezes por outros reis nos s�culos seguintes, embora, ap�s a Guerra das Duas Rosas (1455-1485), Henrique VII tenha recuperado a autoridade real sobre aquelas classes. Outro documento hist�rico no mesmo sentido foi a "Petition of Right", de 7 de junho de 1628, pelo qual, em outra situa��o de confronto, os representantes da aristocracia, da burguesia e da Igreja, requereram ao rei que n�o fossem baixados tributos sem autoriza��o do Parlamento, nem aplicadas penas de morte ou de mutila��o sem o devido processo legal. O contencioso se reacendeu quando o rei Charles I (1625-1649), ap�s desentendimentos sobre religi�o e impostos, dissolveu o Parlamento. Em 1640, os escoceses se revoltaram contra a anexa��o de seu pa�s pela Inglaterra (ocorrida em 1603), e o mesmo rei convocou de novo o Parlamento para votar recursos necess�rios para sufocar a rebeli�o. O Parlamento recusou-se. Deflagrada a guerra civil, as for�as do Parlamento, lideradas por Oliver Cromwell, venceram, proclamaram a rep�blica e executaram Charles I em 1649. Em 1660, houve a restaura��o da monarquia, que tentou reaver poderes absolutos, mas a resist�ncia da burguesia e da aristocracia conduziu ao "Habeas Corpus Amendement Act ", de 1679, pelo qual esse instituto da "common law" tornou-se lei. As tens�es com a monarquia prosseguiram at� que, em 1688, a Revolu��o Gloriosa definiu a correla��o de for�as em favor do bloco burguesia-aristocracia liberal e produziu o "Bill of Right", que reiterou os direitos individuais, firmou a supremacia do Parlamento e instituiu a monarquia constitucional na Inglaterra. (98) N�cleos ou zonas industriais come�aram a surgir em v�rios pontos da Europa continental (com mais atraso, alguns at� na Am�rica do Norte), repetindo, com intensidade menor, o processo ocorrido na Inglaterra. Na �ltima ter�a parte do s�culo dezenove, foram descobertas novas fontes de energia que podiam ser aplicadas � ind�stria e aos transportes (petr�leo e eletricidade), desenvolveram-se as ind�strias qu�mica e de equipamentos de a�o (no lugar do ferro) e generalizou-se o emprego da ci�ncia na produ��o de mercadorias. Ent�o, a industrializa��o intensificou-se aceleradamente na Fran�a, B�lgica, Holanda e Estados Unidos e, logo a seguir, tamb�m na Alemanha, It�lia e Jap�o, configurando o que depois se convencionou chamar de "segunda Revolu��o Industrial" . (99) "Com efeito, o sujeito de direito � sujeito de direitos virtuais, perfeitamente abstratos: animado apenas pela sua vontade, ele tem a possibilidade, a liberdade de se obrigar, designadamente de vender a sua for�a de trabalho a um outro sujeito de direito. Mas este ato n�o � uma ren�ncia a existir, como se ele entrasse na escravatura; � um ato livre, que ele pode revogar em determinadas circunstancias. S� uma 'pessoa' pode ser a sede de uma atitude destas. A no��o de sujeito de direito �, pois, absolutamente indispens�vel ao funcionamento do modo de produ��o capitalista. A troca das mercadorias, que exprime, na realidade, uma rela��o social - a rela��o do propriet�rio do capital com os propriet�rios da for�a de trabalho - vai ser escondida por 'rela��es livres e iguais', provindas aparentemente apenas da 'vontade de indiv�duos independentes'. O modo de produ��o capitalista sup�e, pois, como condi��o do seu funcionamento, a 'atomiza��o', quer dizer, a representa��o ideol�gica da sociedade como um conjunto de indiv�duos separados e livres. No plano jur�dico, esta representa��o toma a forma de uma institui��o: a do sujeito de direito. (...) Com efeito, se, diferentemente do escravo, o servo � um sujeito de direito, ele n�o �, no entanto, um sujeito de direito compar�vel, a fortiori equivalente �quele que o senhor incarna. Esta diferen�a � marcada pelo fato de nem as regras nem os tribunais lhes serem comuns. Plebeus e nobres pertencem a duas ordens diferentes. Que isto fique bem compreendido: a dois universos jur�dicos. Em definitivo, n�o h� medida comum entre estas duas pessoas, ou melhor, n�o h� estatuto jur�dico comum que sirva de equivalente, de medida. N�o h�, pois, 'sujeito de direito' abstrato que possa preencher esta fun��o de denominador comum, de 'norma-medida'. (...)O servo n�o � pois livre de vender a sua for�a de trabalho, visto que ele est� preso � terra e ligado ao senhor. Para que ele se torne assalariado, ser� necess�rio reconhecer-lhe um poder de direito abstrato de dispor da sua vontade e, para fazer isto, � necess�rio quebrar os v�nculos feudais (...). Fica-se, pois, com a no��o de que a categoria jur�dica de sujeito de direito n�o � uma categoria racional em si: ela surge num momento relativamente preciso da hist�ria e desenvolve-se como uma das condi��es da hegemonia de um novo modo de produ��o. (...) � preciso compreender que, ao fazer isso, o novo sistema jur�dico n�o cria ex nihilo uma pessoa nova. Pela categoria de sujeito de direito, ele mostra-se como parte do sistema social global que triunfa nesse momento: o capitalismo. � preciso, pois, recusar todo ponto de vista idealista que tenderia a confundir esta categoria com aquilo que ela � suposta representar (a liberdade real dos indiv�duos). � preciso tom�-la por aquilo que �: uma no��o hist�rica". (Michel Miaille, Introdu��o Cr�tica ao Direito, Lisboa, Editorial Estampa, 1994, p. 118, 119 e 121). (100) As crises agr�colas do feudalismo ou do mundo antigo originavam-se, via de regra, de perturba��es clim�ticas, pestes da lavoura e do gado, ou de outras causas naturais inelut�veis que faziam a produ��o de g�neros despencar. Eram crises, portanto, geradas por s�bita insufici�ncia de produ��o, gerando escassez. Diferentemente, no capitalismo as crises n�o adv�m de falta de capacidade produtiva mas, bem ao contr�rio, de seu peri�dico excesso relativo - relativo ao mercado, � claro. Estas "crises c�clicas" (relativas a ciclos econ�micos de superprodu��o), por mais conjunturais ou espec�ficos que se apresentassem seus detonadores a cada vez, n�o puderam mais ser ignoradas pela Economia Pol�tica. Malgrado todo otimismo apolog�tico liberal, sua recorr�ncia acabou sendo reconhecida (e medida), a partir da segunda metade do s�culo XIX, pelos pr�prios economistas liberais. Ap�s a catastr�fica crise iniciada em 1929, os pa�ses capitalistas, malgrado a resist�ncia de liberais mais ortodoxos, adotaram mecanismos de planejamento e interven��o estatal na economia (boa parte inspirados na social-democracia emergente e nas id�ias de Keynes), que a muitos pareciam capazes de abolir as crises c�clicas. Conseguiram ameniz�-las por certo tempo - at� que a din�mica do mercado, no �ltimo quarto do s�culo XX, retomasse for�as para libertar-se desses embara�os. (101) Eric J. Hobsbawm, obra citada, p. 186-187. (102) T. H. Marshall, Cidadania, Classe Social e Status, Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1967, p. 72. (103) Ver nota n. 97. (104) M. J. Heale, A Revolu��o Norte-Americana, S�o Paulo, �tica, 1991, p. 26. (105) Georges Gusdorf, As Revolu��es da Fran�a e da Am�rica, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1993, p. 169. (106) M. J. Heale, A Revolu��o Norte-Americana, S�o Paulo, �tica, 1991, p. 11. (107) M. J. Heale, obra citada, p. 15 e 16. (108) S�ntese e excertos da "Declara��o de Direitos do Bom Povo de Virg�nia" e da "Declara��o de Independ�ncia dos Estados Unidos da Am�rica" a partir da tradu��o de Jorge Miranda in Textos Hist�ricos do Direito Constitucional, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda,1990, p. 31 a 36. (109) "Consideramos de per si evidentes as verdades seguintes: que todos os homens s�o criaturas iguais; que s�o dotados pelo seu Criador com certos direitos inalien�veis; e que, entre estes, se encontram a vida, a liberdade e a busca da felicidade. Os governos s�o estabelecidos entre os homens para assegurar estes direitos e os seus justos poderes derivam do consentimento dos governados; quando qualquer forma de governo se torna ofensiva destes fins, � direito do povo alter�-la ou aboli-la, e instituir um novo governo, baseando-o nos princ�pios e organizando os seus poderes pela forma que lhe pare�a mais adequada a promover a sua seguran�a e felicidade. A prud�ncia aconselha a n�o mudar governos h� muito estabelecidos em virtude de causas ligeiras e passageiras; e, na verdade, toda a experi�ncia tem demonstrado que os homens est�o mais dispostos a sofrer males suport�veis do que a fazer justi�a a si pr�prios, abolindo as forma a que est�o acostumados. Mas, quando uma longa sucess�o de abusos e usurpa��es, visando invariavelmente o mesmo fim, revela o des�gnio de os submeter ao despotismo absoluto, � seu direito, � seu dever, livrar-se de tal governo e tomar novas provid�ncias para bem da sua seguran�a. Foi este o paciente sofrimento destas col�nias e � agora a necessidade que as constrange a alterar o seu antigo sistema de governo". (110) M. J. Heale, A Revolu��o Norte-Americana, S�o Paulo, �tica, 1991, p. 57. (111) Comparativamente com a Inglaterra, uma propor��o maior de pessoas j� podia votar desde antes da independ�ncia, pois o n�mero de pequenos fazendeiros era muito maior na Am�rica do Norte. As Constitui��es estaduais surgidas ap�s a independ�ncia regularam de modo bastante diversificado essa quest�o. Algumas delas, como as da Pensilv�nia e da Ge�rgia, reduziram muito as barreiras econ�micas para a obten��o do direito de voto a brancos do sexo masculino. (112) M. J. Heale, obra citada, p. 58. (113) Eric J. Hobsbawm, A Era das Revolu��es, edi��o citada, p. 129. (114) Citado por M.J.Heale na obra mencionada, p. 35. (115) M.J.Heale, obra citada, p. 38, fala em "mais de cem mil exemplares" em poucos meses; enquanto Georges Gusdorf, obra citada, p. 182, refere-se a "500 mil exemplares difundidos em um ano". (116) Georges Gusdorf, As Revolu��es da Fran�a e da Am�rica, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1993, p. 192. (117) Alexis de Tocqueville, "L'Ancien R�gime et la R�volution", in "Oevres", cole��o Bouquins, 1986, livro III, cap�tulo 1, p. 1040, conforme reprodu��o de Georges Gusdorf, obra citada, p. 50. (118) Jos� Afonso da Silva, Curso de Direito Constitucional Positivo, S�o Paulo, Revista dos Tribunais, 1985, p. 263. (119) Citado T. H. Marshall, Cidadania, Classe Social e Status, Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1967, p. 78. (120) Thomas Robert Malthus, Ensaio Sobre a Popula��o, S�o Paulo, Nova Cultural, 1996, p. 246 e 249. (121) S�ntese a partir de: Thomas Robert Malthus, obra citada, p. 243 e seguintes; Robert Heilbroner, "Hist�ria do Pensamento Econ�mico", mesma editora, 1996, p. 73 e seguintes; e Paulo Sandroni (consultoria), Dicion�rio de Economia", mesma editora, 1985, p. 253. (122) Ernane Galveas, monografia introdut�ria � mencionada edi��o brasileira do Ensaio... de Malthus, p. 7-8. (123) Podemos avaliar seu grau de penetra��o como for�a ideol�gica conservadora se notarmos que, ainda hoje, passados duzentos anos, esses argumentos de Malthus continuam integrando um certo "senso comum" pretensamente "ilustrado". (124) David Ricardo, Princ�pios de Economia e Tributa��o, S�o Paulo, Nova Cultural, 1996, p. 25. (125) Eric J. Hobsbawm, obra citada, p. 263. (126) Poucas d�cadas depois, seria demonstrado o simplismo te�rico do modelo ricardiano de crise capitalista, dentre outras raz�es, por estabelecer uma rela��o mec�nica de causa e efeito entre um limite da natureza (a fertilidade declinante das glebas cultiv�veis, supostamente irremedi�vel) e um fato econ�mico-social (a redu��o da taxa de lucros). Mas essa descoberta n�o consolaria por muito tempo os liberais, pois logo uma cr�tica teoricamente mais consistente identificaria o foco gerador das crises c�clicas nas pr�prias rela��es sociais de produ��o do capitalismo, na medida em que, periodicamente, tornar-se-iam obst�culos � expans�o das for�as produtivas. (127) Eric J. Hobsbawm, obra citada, p. 263. (128) Auguste Comte, Op�sculos Sobre a Filosofia Social, ap�ndice ao 4� volume de seu Sistema de Pol�tica Positiva (in: Comte, sele��o de textos e tradu��o de Evaristo de Moraes Filho, S�o Paulo, �tica, 1983, p. 53). (129) Michael L�wy, As Aventuras de Karl Marx Contra o Bar�o de M�nchhausen, 4. ed., S�o Paulo, Busca Vida, 1990, p. 19-20. (130) Auguste Comte, Curso de Filosofia Positiva, S�o Paulo, Nova Cultural, 1996, p. 41. (131) Auguste Comte, Discurso Preliminar Sobre o Conjunto do Positivismo, idem, p. 73. (132) Idem, p. 82. (133) Auguste Comte, Catecismo Positivista, S�o Paulo, Nova Cultural, 1996, p. 97. (134) Idem, p. 99. (135) Auguste Comte, "Catecismo...", p. 108-109. (136) Idem, p. 111. (137) Auguste Comte, Curso de Filosofia Positiva, volume IV, p. 296 (in: Comte, sele��o de textos e tradu��o de Evaristo de Moraes Filho, S�o Paulo, �tica, 1983, p. 119-120). (138) Lettres d'Auguste Comte � John Stuart Mill (1842), p. 17/18 (in: Comte, sele��o de textos e tradu��o de Evaristo de Moraes Filho, S�o Paulo, �tica, 1983, p. 196-197). (139) Eric J. Hobsbawm, obra citada, p. 219-220. (140) "Luditas": designa��o derivada de King Ludd, um dos l�deres desses movimentos na Inglaterra. (141) Eram as seguintes: 1) sufr�gio universal masculino; 2) voto secreto; 3) distritos eleitorais iguais; 4) aboli��o do censo eleitoral baseado na propriedade; 5) remunera��o para a fun��o parlamentar; 6) parlamentos eleitos anualmente. O movimento "cartista" enfraqueceu-se quando uma revolta oper�ria em Newport foi esmagada e seus l�deres foram deportados para a Austr�lia. (142) Encerramento do Livro III de "A Rep�blica", �ltima parte do di�logo de S�crates com Glauco. In: Plat�o, A Rep�blica, S�o Paulo, Nova Cultural, 1997, p. 113. Nesse "comunismo" aristocr�tico, Plat�o imaginou ainda que entre esses guardi�es da comunidade, haveria igualdade de educa��o e de oportunidades intelectuais entre meninos e meninas, aus�ncia de barreiras sexuais, comunidade de bens, de mulheres, de pais e de filhos, controle eug�nico da procria��o e dos nascimentos (como na cria��o de animais), morte dos rec�m-nascidos imperfeitos e aborto obrigat�rio dos fetos originados de casais que se encontrassem antes ou depois da idade permitida para a procria��o. Para uma an�lise desse "comunismo" de Plat�o, vide Will Durant, A Hist�ria da Filosofia, S�o Paulo, Nova Cultural, 1996, p. 55-60. (143) Jean-Jacques Rousseau, Discurso Sobre a Origem e os Fundamentos da Desigualdade entre os Homens, segunda parte, S�o Paulo, Nova Cultural, 1997, p. 97-98. (144) Cf. Paulo Sandroni (consultoria), Dicion�rio de Economia, S�o Paulo, Nova Cultural, 1985, p. 387 (145) F. Engels, Do Socialismo Ut�pico ao Socialismo Cient�fico, 3. ed., S�o Paulo, Global, 1980, p. 37. (146) F. Engels, obra citada, p. 38. (147) Idem, p. 41. (148) Robert Owen, citado por F. Engels, obra indicada, p. 41. (149) F. Engels, obra citada, p. 43. (150) A participa��o popular, com fei��o mais prolet�ria do que em 1789, foi decisiva para o triunfo da revolu��o de 1830 na Fran�a. O levante firmou o combate de barricadas como principal forma de luta insurrecional e foi imortalizado na c�lebre pintura "A Libertade Guia o Povo", de Eug�ne Delacroix, exposta no museu do Louvre: uma mulher com o barrete fr�gio republicano, seios nus, segurando um fuzil na m�o esquerda e levantando a bandeira tricolor na m�o direita, conclama o povo armado a prosseguir na luta, em meio a combatentes ca�dos. (151) Eric J. Hobsbawm, A Era das Revolu��es - 1789/1848. 9. ed., S�o Paulo, Paz e Terra, 1996, p. 129. (152) A Revolu��o Praieira, deflagrada em Pernambuco em 1848 por liberais radicais, recebeu influ�ncia direta da "Primavera dos Povos". Como suas matrizes europ�ias, desfraldou um programa democr�tico, recebeu ades�o da popula��o pobre e terminou derrotada pelas armas dos conservadores do Segundo Reinado. Como na Europa, marcou tamb�m o esgotamento da vertente democr�tica dos liberais brasileiros. Da� por diante, eles se comporiam politicamente com a oligarquia rural agro-exportadora, preservando o Brasil na posi��o de �ltimo pa�s do hemisf�rico ocidental a abolir a escravatura e de �ltimo pa�s das Am�ricas a proclamar a Rep�blica. (153) "Dos principais grupos sociais envolvidos na revolu��o, a burguesia (...) descobriu que preferia a ordem � oportunidade de p�r em pr�tica seu programa completo, quando confrontada com a amea�a � propriedade. Quando se viram diante da revolu��o "vermelha", os moderados liberais e os conservadores uniram-se (...). Em troca, os regimes conservadores restaurados estavam bem preparados para fazer concess�es ao liberalismo econ�mico, legal e at� cultural dos homens de neg�cios, desde que isso n�o significasse um recuo pol�tico. Como veremos, a reacion�ria d�cada de 1850 viria a ser, em termos econ�micos, um per�odo de liberaliza��o sistem�tica. Em 1848 e 1849 os moderados liberais fizeram assim duas importantes descobertas na Europa ocidental: que a revolu��o era perigosa e que algumas de suas mais substanciais exig�ncias (especialmente nos assuntos econ�micos) poderiam ser atingidas sem ela. A burguesia deixara de ser uma for�a revolucion�ria" (Eric J. Hobsbawm, A Era do Capital, S�o Paulo, Paz e Terra, 1996, p. 41-42). (154) Eric J. Hobsbawm, A Era do Capital, S�o Paulo, Paz e Terra, 1996, p. 38. (155) Esse golpe ficaria conhecido pela denomina��o ir�nica que Karl Marx lhe atribuiria: o "18 Brum�rio de Lu�s Bonaparte". Assim como o golpe de Estado de 2 de dezembro de 1851 contra a segunda Rep�blica n�o passara de uma r�plica med�ocre do golpe desfechado por Napole�o Bonaparte em 9 de novembro (18 Brum�rio) de 1799 contra a primeira Rep�blica, tamb�m o sobrinho golpista era uma caricatura pol�tica do tio famoso, sem sua grandeza hist�rica. Entrou para a hist�ria como "Napole�o, o pequeno". (156) A ca�a ao escalpo foi introduzida na Am�rica do Norte pelos colonos europeus. Consistia em agarrar a v�tima, circundar-lhe a cabe�a com uma incis�o � faca e, em seguida, de um s� pux�o, arrancar sua cabeleira junto com a pele do cr�nio - a frio, naturalmente. Os escalpos abasteciam as ind�strias de perucas para bonecas. Eram mat�ria-prima muito valorizada, pois, afinal de contas, ainda n�o haviam sido inventadas as fibras sint�ticas e, ademais, apreciava-se nas mulheres de ascend�ncia europ�ia o h�bito puritano de conservarem cabelos longos. Com o tempo, as tribos de selvagens norteamericanos assimilaram esse curioso costume e, sempre que a oportunidade lhes favorecia, retiravam escalpos dos civilizadores europeus, n�o para venda, mas como vingan�a ou trof�u de guerra. (157) Cf. Domenico Losurdo, "Marx, a Tradi��o Liberal e a Constru��o Hist�rica do Conceito Universal de Homem", in: Educa��o e Sociedade - Revista Quadrismestral de Ci�ncia da Educa��o, edi��o do CEDES, Campinas, S�o Paulo, 1996, n. 57, p. 687. (158) Publicado em fevereiro de 1848, no �nico n�mero da revista "Anais Franco-Alem�es", fundada em Paris por um grupo de alem�es da "esquerda" hegeliana para escapar da censura � imprensa da monarquia prussiana. (159) Karl Marx, A Quest�o Judaica, 2. ed., S�o Paulo, Moraes, 1991, p. 37-41. (160) Karl Marx, obra citada, p. 25-27. (161) Bernard Bourgeois, "Marx et les Droits de L'homme", in: Droit et Libert� Selon Marx, Presses Universitaires de France, Paris, 1986, p. 10, tradu��o de Bernadete Trindade Camargo Janny. (162) As restantes cita��es deste par�grafo s�o de Karl Marx, A Quest�o Judaica, p. 42-44. (163) Em especial, mas n�o exclusivamente, em certas passagens de "A Ideologia Alem�" e de "A Sagrada Fam�lia". (164) Por exemplo: "Nas minhas pesquisas, cheguei � conclus�o de que as rela��es jur�dicas - assim como as formas de Estado - n�o podem ser compreendidas por si mesmas, nem pela dita evolu��o geral do esp�rito humano, inserindo-se, pelo contr�rio, nas condi��es materiais de exist�ncia de que Hegel, � semelhan�a dos ingleses e franceses do s�culo XVIII, compreende o conjunto pela designa��o de 'sociedade civil'; por seu lado, a anatomia da sociedade civil deve ser procurada na economia pol�tica. (...) A conclus�o geral a que cheguei e que, uma vez adquirida serviu de fio condutor dos meus estudos, pode formular-se resumidamente assim: na produ��o social da sua exist�ncia, os homens estabelecem rela��es determinadas, necess�rias, independentes da sua vontade, rela��es de produ��o que correspondem a um determinado grau de desenvolvimento das for�as produtivas materiais. O conjunto destas rela��es de produ��o constitui a estrutura econ�mica da sociedade, a base concreta sobre a qual se eleva uma superestrutura jur�dica e pol�tica e � qual correspondem determinadas formas de consci�ncia social. O modo de produ��o da vida material condiciona o desenvolvimento da vida social, pol�tica e intelectual em geral. N�o � a consci�ncia dos homens que determina o seu ser; � o seu ser social que, inversamente, determina a sua consci�ncia. Em certo est�gio de desenvolvimento, as for�as produtivas materiais da sociedade entram em contradi��o com as rela��es de produ��o existentes ou, o que � a sua express�o jur�dica, com as rela��es de propriedade no seio das quais se tinham movido at� ent�o. De formas de desenvolvimento das for�as produtivas, estas rela��es transformam-se no seu entrave. Surge ent�o uma �poca de revolu��o social. A transforma��o da base econ�mica altera, mais ou menos rapidamente, toda a imensa superestrutura. Ao considerar tais altera��es, � necess�rio sempre distinguir entre a altera��o material - que se pode comprovar de maneira cientificamente rigorosa - das condi��es econ�micas de produ��o, e as formas jur�dicas, pol�ticas, religiosas, art�sticas ou filos�ficas, em resumo, as formas ideol�gicas pelas quais os homens tomam consci�ncia deste conflito levando-o �s suas �ltimas consequ�ncias. Assim como n�o se julga um indiv�duo pela id�ia que ele faz de si pr�prio, n�o se poder� julgar uma tal �poca de transforma��o pela mesma consci�ncia de si; � preciso, pelo contr�rio, explicar esta consci�ncia pelas contradi��es da vida material, pelo conflito que existe entre as for�as produtivas sociais e as rela��es de produ��o. Uma organiza��o social nunca desaparece antes que se desenvolvam todas as for�as produtivas que ela � capaz de conter; nunca rela��es de produ��o novas e superiores se lhe substituem antes que as condi��es materiais de exist�ncia destas rela��es se produzam no pr�prio seio da velha sociedade. � por isso que a humanidade s� levanta os problemas que � capaz de resolver e, assim, numa observa��o atenta, descobrir-se-� que o pr�prio problema s� surgiu quando as condi��es materiais para o resolver j� existiam ou estavam, pelo menos, em vias de aparecer. Em um car�ter amplo, os modos de produ��o asi�tico, antigo, feudal e burgu�s moderno podem ser qualificados como �pocas progressivas da forma��o econ�mica da sociedade. As rela��es de produ��o burguesas s�o a �ltima forma contradit�ria do processo de produ��o social, contradit�ria n�o no sentido de uma contradi��o individual, mas de uma contradi��o que nasce das condi��es de exist�ncia social dos indiv�duos. No entanto, as for�as produtivas que se desenvolvem no seio da sociedade burguesa, criam ao mesmo tempo as condi��es materiais para resolver esta contradi��o. Com esta organiza��o social termina, assim, a pr�-Hist�ria da sociedade humana". (Karl Marx, pref�cio � Contribui��o � Cr�tica da Economia Pol�tica, 2. ed., S�o Paulo, Martins Fontes, 1983, p. 24-25) (165) Karl Marx e Friedrich Engels, "Manifesto do Partido Comunista", publicado no in�cio de 1848, �s v�speras de iniciar-se a "Primavera dos Povos". Esse texto, que completou 150 anos em 1998, foi escrito a pedido da "Liga dos Comunistas", uma associa��o oper�ria internacional da �poca. H� muitas edi��es em portugu�s. (166) Karl Marx, O Capital, v. I, Livro Primeiro, S�o Paulo, Abril Cultural, 1983, p. 238. (167) Poucos meses ap�s iniciar-se a guerra franco-prussiana de 1870, o ex�rcito franc�s capitulou vergonhosamente e, em 28/01/1871, o governo assinou o armist�cio. A Guarda Nacional e a popula��o de Paris denunciaram a rendi��o como trai��o. O governo, retirado em Versalhes, mandou tropas para impor sua autoridade, mas elas confraternizaram com os resistentes no dia 18 de mar�o. Emergiu, ent�o, uma democracia popular em Paris. Foi eleito um Conselho Comunal de 85 membros (Comuna de Paris), com participa��o de artes�os, oper�rios, intelectuais e soldados, que adotou medidas avan�adas para a �poca: dentre outras, cria��o de cooperativas de produ��o, separa��o entre Igreja e Estado, reforma educacional, congelamento de alugu�is, fim do trabalho noturno dos padeiros, aboli��o de ex�rcito permanente, armamento dos cidad�os, liberdade de imprensa e sindical. A Comuna popular sobreviveu pouco mais de dois meses. Apoiado por for�as alem�s, o governo de Versalhes invadiu Paris com 130.000 soldados e, ap�s resist�ncia her�ica dos "communardes", aniquilou a Comuna no dia 27 de maio de 1871. Mais de 20.000 parisienses morreram combatendo, talvez 100.000 foram presos, centenas fuzilados imediatamente e 13.400 condenados (268 � morte, os demais � deporta��o ou � pris�o com trabalhos for�ados). A Comuna de Paris foi a primeira experi�ncia dos tempos modernos de constru��o de poder popular contra o Estado. Seu estudo tornou-se refer�ncia para o movimento oper�rio e para te�ricos do socialismo. (168) Eric J. Hobsbawm, A Era do Capital, 5. ed., S�o Paulo, Paz e Terra, 1996, p. 75-76. (169) Vide notas n. 171 e 172. (170) "Em 1911, um milh�o de mulheres se manifestaram na Europa nesse dia (8 de mar�o) e 45 com�cios foram realizados somente na cidade de Berlim. Em 1913, as mulheres organizaram na R�ssia, e em particular em S�o Petersburgo, numerosos encontros clandestinos. Em 1915, em Oslo, as mulheres defenderam seus direitos e reclamaram a paz mundial, apesar dos violentos incidentes. Em 1917, na R�ssia, elas sa�ram �s ruas contrariando o governo socialista menchevique e o Partido Comunista Bolchevique." (In: 8 de Mar�o, Dia Internacional da Mulher, publicado pelo Conselho Estadual da Condi��o Feminina, S�o Paulo, 1996, p. 5, impresso na IMESP) (171) "Em 8 de mar�o de 1857 a cidade de Nova Iorque � palco da primeira greve de mulheres oper�rias de que se tem conhecimento. 129 tecel�s pararam seu trabalho exigindo redu��o da jornada de trabalho, ent�o de 14 horas, melhores condi��es no local de trabalho e sal�rios maiores. O movimento terminou em trag�dia. A policia cercou o pr�dio e, de acordo com os propriet�rios, incendiou-o para obrig�-las a sair. Mais de cinq�enta anos depois, de 26 a 27 de agosto de 1910, realizou-se em Copenhague a II Confer�ncia Internacional de Mulheres Socialistas, que antecedeu a abertura do Congresso Internacional Socialista. Na ocasi�o, Clara Zetkin, jornalista alem�, dirigente do jornal Die Gleidhheit, apresentou e conseguiu aprovar uma resolu��o propondo que as mulheres socialistas de todos os pa�ses dedicassem o dia 8 de mar�o em homenagem �s oper�rias novaiorquinas, � luta pelo direito do voto feminino. A partir da�, a celebra��o foi ampliada � luta pelos direitos em geral, alcan�ando dimens�o internacional, embora haja quem questione a escolha da data como homenagem �s oper�rias americanas." (In: 8 de Mar�o, Dia Internacional da Mulher, folheto publicado pelo Conselho Estadual da Condi��o Feminina, S�o Paulo, 1996, p. 5, impresso na IMESP) (172) No dia 1� de maio de 1886, a Federa��o dos Gr�mios e Uni�es Organizados dos Estados Unidos e Canad�, antecessora da Federa��o Norte-Americana do Trabalho, iniciou uma greve nacional em luta pela jornada de oito horas de trabalho. A repress�o foi violenta em quase todo o pa�s, especialmente em Louisville, Baltimore, Filad�lfia, St. Louis e Milwaukee - onde a pol�cia matou nove oper�rios. No dia 3 de maio, em Chicago, a pol�cia privada ("pinkertons") da ind�stria madeireira McCormick, ao proteger alguns fura-greve, matou seis oper�rios e feriu outros cinq�enta. No dia 4, ao t�rmino de uma manifesta��o de protesto (autorizada pelo prefeito Carter H. Harrison, que compareceu) a pol�cia lan�ou-se sobre os grevistas remanescentes na pra�a. No tumulto, explodiu uma bomba (nunca foi estabelecida sua autoria). Os policiais abriram fogo, mataram alguns manifestantes e feriram duzentos. A repress�o alastrou-se, em uma semana greve reflu�a. Os meses seguinte foram de terror: estado de s�tio, centenas de pris�es, toque de recolher, fechamento dos jornais oper�rios, invas�es de casas. Em meio � histeria da imprensa contra os grevistas, oito l�deres anarquistas (um ingl�s, cinco alem�es e dois norte-americanos) foram acusados de sedi��o e submetidos a um processo r�pido e cheio de v�cios jur�dicos: manipula��o e intimida��o de testemunhas, cerceamento de defesa, escolha direcionada do j�ri por um oficial de justi�a que manobrou para evitar sorteio (um dos jurados era parente de um dos feridos pela bomba), parcialidade escancarada do juiz contra os acusados em todo o procedimento. Mesmo com tantas distor��es, a acusa��o n�o conseguiu produzir provas inequ�vocas. Mas a dignidade dos acusados - assumiram sua ideologia e reiteraram a disposi��o de luta pelos direitos dos trabalhadores - irritou os jornais e as autoridades. No dia 28 de agosto de 1.886, veio a senten�a: sete condenados � forca e um a quinze anos de pris�o. Recursos sucessivos aos tribunais superiores deram em nada. No ano seguinte, proliferam protestos contra a farsa processual. O governador Oglesby s� cede num ponto: comuta, para pris�o perp�tua, a pena de dois dos condenados � morte que haviam pedido clem�ncia. No dia 10 de novembro de 1887, a pol�cia divulgou esta not�cia incr�vel: apesar da intensa vigil�ncia dos guardas carcer�rios, um dos cinco condenados � morte havia "conseguido" uma banana de dinamite e "suicidara-se" na cela com uma explos�o na boca que destro�ou sua cabe�a ... No dia 11, os outros quatro foram enforcados. O mart�rio n�o foi em v�o: a indigna��o foi fermento para a r�pida reorganiza��o do movimento oper�rio norte-americano, a press�o de massas retornou e, no dia 1� de maio de 1890, o Congresso americano aprovou a lei que instituiu em todo o pa�s a jornada de oito horas de trabalho. Em 1894, ap�s receber uma peti��o com 60.000 assinaturas, o novo governador do Estado de Illinois concedeu perd�o e libertou os tr�s �ltimos presos. O 1� de maio passou a ser comemorado pelos trabalhadores de todo o mundo como o dia-s�mbolo de suas lutas. (S�ntese a partir de: La�s Tapaj�s, "Os Oito de Chicago", Movimento, S�o Paulo, 25/04/1977, p. 10 -11) (173) Paulo Bonavides, Do Estado Liberal ao Estado Social, 6. ed., S�o Paulo, Malheiros, 1996, p. 177. (174) Acusado, sem provas, de haver passado documentos militares � Alemanha, o capit�o Alfred Dreyfus, judeu franc�s, foi preso em outubro de 1894, condenado � pris�o perp�tua e � degrada��o militar, e deportado para os calabou�os da Ilha do Diabo (Guiana Francesa), em meio a uma onda de anti-semitismo hist�rico. O verdadeiro culpado do vazamento de documentos foi logo descoberto - mas absolvido em janeiro de 1898 por um conselho de guerra. O grande romancista �mile Zola publicou ent�o, no dia 13 desse m�s, a famosa carta aberta "J'accuse", denunciando ao Presidente Faure o Estado-Maior e o processo tendencioso da condena��o daquele oficial. Resposta: Zola foi condenado a um ano de pris�o. O caso galvanizou a opini�o p�blica francesa, que dividiu-se entre a esquerda ("dreyfusards"), mobilizada na Liga dos Direitos Humanos, e a direita anti-semita ("antidreyfusards"), aglutinada na Liga da P�tria Francesa. Surgindo a comprova��o de que a principal pe�a do processo condenat�rio havia sido forjada, o tribunal militar concordou em "rever" o processo: em setembro de 1899, reduziu a pena de Dreyfus para "apenas" dez anos de pris�o... Mas, a essa altura, a press�o da esquerda j� havia levantado no pa�s uma vaga de indigna��o contra a farsa processual, e o novo Presidente, Loubet, indultou e libertou Dreyfus - que s� em 1.906 conseguiu sua reabilita��o e reintegra��o ao Ex�rcito (s�ntese a partir de: Bredin, Jean-Denis, O Caso Dreyfus, S�o Paulo, Scritta, 1995). (175) A sufocante ditadura de Porfirio D�az mantinha-se no poder desde 1876, ora pela for�a escancarada, ora mediante elei��es fraudulentas, e sustentava-se num bloco social integrado por latifundi�rios, grandes exportadores de min�rios e de produtos agr�colas, uma Igreja Cat�lica aferradamente anti-liberal e o capital estrangeiro instalado em v�rios setores da economia. Confiscou a quase totalidade das terras tradicionalmente comunit�rias dos camponeses �ndios, massacrou dois levantes oper�rios (Cananea, 1906; Rio Blanco, 1907) e inseriu o pa�s de modo semi-colonial na divis�o internacional do trabalho. Em 1910, um setor das classes dominantes liderado por Francisco Madero, portando um programa de t�midas reformas liberais, foi derrotado em nova fraude eleitoral (o ditador "obteve" quase todos os votos...) e lan�ou-se � insurrei��o armada em alian�a com os camponeses. A resist�ncia do bloco dominante acarretou uma guerra civil que durou dez anos, com um milh�o de mortos. Massivas guerrilhas camponesas, reivindicando reforma agr�ria, liberdades e direitos sociais, formaram-se no sul (Ex�rcito Libertador do Sul, organizado pelo l�der campon�s Emiliano Zapata) e no norte do pa�s (Divis�o do Norte, criada pelo ex-"bandido social" Pancho Villa) e estiveram prestes a tomar o poder. Surgiu uma f�rtil intelectualidade revolucion�ria e desabrochou uma rica cultura de resgate da identidade nacional-popular. Mas, em seguida, sobreveio longo e tumultuado percurso pol�tico - que incluiu nova ditadura, interven��o militar norteamericana, violenta rea��o conservadora �s reivindica��es camponesas, divis�o, derrota e dispers�o dos ex�rcitos populares, assassinato de Zapata (1919) e de Villa (1923), novas revoltas camponesas (em 1923, 1927 e 1929), e repress�o terrorista burguesa combinada com sistem�tica coopta��o institucional de lideran�as populares, at� o esgotamento completo da revolu��o na d�cada de quarenta. ( S�ntese a partir de: Marco Antonio Villa, A Revolu��o Mexicana, S�o Paulo, �tica, 1993) (176) Esta �ltima medida decorria do contexto: como na Fran�a de 1789, a Igreja Cat�lica mexicana detinha vastos latif�ndios, era �ntima da ditadura de Porfirio D�az, e havia se oposto ferozmente � revolu��o. (177) Jornada diurna de oito horas e noturna de sete; normas de prote��o ao menor e � mulher, licen�a-maternidade e intervalos para amamenta��o; repouso semanal remunerado, sal�rio m�nimo, isonomia salarial, impenhorabilidade do sal�rio, remunera��o adicional de 100% pelas horas extras de trabalho (limitadas a tr�s por dia, no m�ximo durante tr�s dias consecutivos); participa��o dos trabalhadores nos lucros das empresas; encargo patronal pelo fornecimento de habita��o, escolas, enfermarias e outros servi�os a seus empregados; responsabilidade patronal pela higiene, salubridade e preven��o de acidentes de trabalho, com indeniza��o aos empregados vitimados por mol�stias profissionais e acidentes, mesmo quando recrutados por intermedi�rios; liberdade sindical e direito de greve pac�fica (com o fim de "harmonizar os direitos do trabalho com os do capital"), inclusive em servi�os p�blicos (neste caso, exceto em tempos de guerra); cria��o de Juntas de Concilia��o e Arbitragem para tratar dos diss�dios trabalhistas; indeniza��o ao empregado por despedimento sem justa causa; pagamento preferencial dos cr�ditos trabalhistas na fal�ncia da empresa; responsabilidade limitada � pessoa do empregado por d�vidas contra�das com o empregador e inexigibilidade dessas d�vidas quando superiores ao sal�rio mensal; nulidade das cl�usulas contratuais contr�rias aos direitos sociais dos trabalhadores; previs�o de leis instituindo seguros sociais; al�m de disposi��es equivalentes para os servidores p�blicos (inclusive, neste caso, direito de f�rias anuais de vinte dias). (178) S�ntese e excertos da Constitui��o mexicana de janeiro de 1917 a partir da tradu��o de Jorge Miranda in Textos Hist�ricos do Direito Constitucional, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda,1990, p. 249-269. (179) Na revolu��o democr�tico-burguesa de 27 de fevereiro de 1917 (dia 12 de mar�o, pelo calend�rio atual), o "trabalho pesado" dos combates havia sido feito pelas massas populares - como, ali�s, em todas as revolu��es burguesas ocorridas desde o s�culo XVIII. E, tamb�m como nas revolu��es anteriores, assim que os oper�rios e camponeses apearam do poder a velha disnastia dos Romanov, assumiu o comando do pa�s um bloco de for�as composto, principalmente, pela burguesia liberal em alian�a com sociais-democratas moderados, sob a lideran�a de Alexander Kerenski, ex-deputado da Duma (parlamento czarista). O prop�sito desse governo provis�rio parecia ser reeditar naquele vasto pa�s algo parecido com uma vers�o eslava e moderna da Revolu��o Francesa: substituir a monarquia por uma rep�blica sob controle da burguesia, remover resqu�cios feudais que embara�avam o pleno desenvolvimento do capitalismo e fazer algo - sem exageros ! - pelas "camadas menos favorecidas" (como se diz at� hoje...). Pronto: o povo j� poderia ser mandado embora para casa. Mas, como se sabe, a partir de outubro o roteiro seguido pelos oper�rios terminou sendo outro. (180) Novamente, o contexto se impunha: como na Fran�a de 1789 e no M�xico de 1910, a Igreja Ortodoxa Russa - czarista, anti-liberal, anti-socialista e grande propriet�ria - opusera tenaz resist�ncia �s duas revolu��es russas de 1917. (181) O pa�s, literalmente, desmoronava: esmagado nas frentes de batalha da Primeira Guerra Mundial, a que fora arrastado pela nobreza czarista e pela burguesia local, sua economia estava destru�da e uma fome horrorosa alastrava-se por toda parte, a ponto de for�ar o recente governo revolucion�rio socialista a curvar-se � exig�ncia alem� de ceder quase um ter�o de todo o territ�rio e da popula� �o do pa�s em troca da paz (Tratado de Brest-Litovsk, mar�o de 1918). N�o adiantou: a burguesia e a nobreza russas, armadas sem perda de tempo pelas pot�ncias que venceram a Primeira Guerra Mundial, arrastaram imediatamente o pa�s para o mergulho prolongado numa guerra civil devastadora. A R�ssia revolucion�ria viu-se colhida em cerco internacional (econ�mico, financeiro, diplom�tico etc.) e, sem pausa para respirar, logo seria tamb�m invadida militarmente por catorze ex�rcitos estrangeiros (da Inglaterra, Fran�a, Jap�o, Estados Unidos, Alemanha, �ustria etc.) decididos a impedir que a revolu��o se consolidasse. (182) S�ntese e excertos da "Declara��o dos Direitos do Povo Trabalhador e Explorado" (janeiro de 1918) e da Constitui��o russa de julho de 1918, a partir da tradu��o de Jorge Miranda in Textos Hist�ricos do Direito Constitucional, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1990, p. 297-299 e 301-317. (183) S�ntese e excertos da Constitui��o do Imp�rio Alem�o (Rep�blica de Weimar) de 11 de agosto de 1919, a partir da tradu��o de Jorge Miranda in Textos Hist�ricos do Direito Constitucional, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1990, p. 271-292. (184) Jos� Afonso da Silva, Curso de Direito Constitucional Positivo, 3. ed., , S�o Paulo, Revista dos Tribunais, 1985, p. 267. (185) Na Su��a, pa�s tantas vezes lembrado como modelo de democracia do primeiro mundo, um plebiscito realizado em 1959 rejeitou a extens�o do direito de voto �s mulheres, que s� acabou sendo adotado em 1971. (186) A Fran�a de 1789, juntamente com a Inglaterra, eram os pa�ses mais fortes do mundo - econ�mica, cultural e militarmente. Durante vinte e cinco anos de vit�rias (at� a queda de Napole�o em 1815), a Fran�a havia conseguido espalhar sua revolu��o pela maioria da Europa continental, quebrar o que restava de feudalismo em quase todos os pa�ses conquistados e consolidar o capitalismo a um ponto de n�o-retorno, que n�o seria minimamente afetado pelo retrocesso pol�tico do per�odo da Restaura��o. Com a R�ssia de 1917, deu-se o contr�rio: era o pa�s mais atrasado da Europa e n�o aconteceram (ou foram rapidamente reprimidas) revolu��es em outros pa�ses europeus. Como seria esper�vel, o torniquete econ�mico do capitalismo fechou-se, as ind�strias dependentes de tecnologia externa paralisaram-se, uma parte grande de sua pequena classe oper�ria dispersou-se para, simplesmente, sobreviver no campo, outra parte foi al�ada a fun��es administrativas em substitui��o aos profissionais que abandonaram o pa�s ap�s a revolu��o. A R�ssia retrocedeu a n�veis produtivos do final do s�culo anterior e por muito tempo s� restaria mis�ria para socializar. (187) Folha de S. Paulo, 8/7/1998, caderno "Mundo", p. 12. (188) "El Concepto de Derechos Humanos", in "Estudios Basicos en Derechos Humanos", tomo I, Instituto Interamericano de Derechos Humanos. (189) Os mais abrangentes tratados e declara��es subscritos por nosso pa�s foram reunidos pela Procuradoria Geral do Estado de S�o Paulo na obra intitulada Instrumentos Internacionais de Prote��o dos Direitos Humanos, publicada em 1997. Desde 1945, o Brasil vinha subscrevendo e ratificando muitos desses instrumentos, processo interrompido durante a ditadura militar de 1964-1985. Mas, ap�s o t�rmino da ditadura, j� subscreveu e ratificou mais estes: Conven��o Sobre a Elimina��o de Todas as Formas de Discrimina��o Contra a Mulher, adotada pela Resolu��o n. 34/180 da Assembl�ia Geral das Na��es Unidas em 18.12.79, ratificada pelo Brasil em 1�.2.84; Conven��o Contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cru�is, Desumanos ou Degradantes, adotada pela Resolu��o 39/46 da Assembl�ia Geral das Na��es Unidas em 10.12.84, ratificada pelo Brasil em 28.9.89; Conven��o Interamericana Para Prevenir e Punir a Tortura, adotada pela Assembl�ia Geral da Organiza��o dos Estados Americanos em 9.12.85, ratificada pelo Brasil em 20.7.89; Conven��o Sobre os Direitos da Crian�a, adotada pela Resolu��o "L.44" (XLIV) da Assembl�ia Geral das Na��es Unidas em 20.11.89, ratificada pelo Brasil em 24.9.90; Pacto Internacional dos Direitos Civis e Pol�ticos, que, embora tivesse sido adotado pela Resolu��o n. 2.200-A (XXI) da Assembl�ia Geral das Na��es Unidas em 16.12.66, s� foi ratificado pelo Brasil em 24.1.92, ap�s o t�rmino do regime autorit�rio; Pacto Internacional dos Direitos Sociais, Econ�micos e Culturais, tamb�m adotado pela Resolu��o 2.200-A (XXI) da Assembl�ia Geral das Na��es Unidas em 16.12.66, tamb�m s� foi ratificado pelo Brasil em 24.1.92; Conven��o Americana de Direitos Humanos ("Pacto de San Jos� da Costa Rica), adotada e aberta � assinatura na Confer�ncia Especializada Interamericana Sobre Direitos Humanos, em San Jos� da Costa Rica, em 22.11.69 - mas, pela mesma raz�o, s� ratificada pelo Brasil em 25.9.92; Conven��o Interamericana Para Prevenir, Punir e Erradicar a Viol�ncia Contra a Mulher, adotada pela Assembl�ia Geral da Organiza��o dos Estados Americanos em 6.6.94, ratificada pelo Brasil em 27.11.95. (190) Cf: "O Emprego no Mundo", estudo realizado pela Organiza��o Internacional do Trabalho divulgado em novembro de 1996. No estudo, os especialistas da OIT alertaram que acentuava-se cada vez mais uma "tend�ncia � desigualdade nos sal�rios" e qualificaram como "sombria" a situa��o do mercado mundial de trabalho.

Jos� Dami�o de Lima Trindade * Procurador do Estado de S�o Paulo, membro do Grupo de Trabalho de Direitos Humanos da Procuradoria Geral do Estado de S�o Paulo.

Porque a nobreza feudal concordou facilmente com a centralização política?

Isso porque submetia os burgueses aos impostos cobrados pelos senhores e dificultava a atividade comercial pela ausência de moeda comum e de pesos e medidas padronizados.

O que foi a centralização do poder político?

Centralização de poder foi o processo no qual o poder político passou de uma monarquia feudal para o modelo de Estados-Nacionais. Isso ocorreu no final da Idade Média, tendo, assim, o poder passado de um grupo maior para um grupo menor. Tal processo ocorreu, no entanto, de maneira gradativa.

O que favoreceu a centralização do poder político?

Resposta: A aliança da emergente burguesia com os reis.

Como funciona a nobreza feudal?

A nobreza, formada pelos donos dos feudos ou senhores feudais, era a classe mais alta do feudalismo. Dona das grandes propriedades rurais, ela exercia poder absoluto sobre as demais classes. Dessa forma, a classe se dividia em suseranos, que eram os donos da terra, e vassalos, que eram os servos trabalhadores.