Uma alegria contagiante pode se transformar em tristeza profunda em um piscar de olhos porque alguém "pisou na bola". O amor intenso vira ódio profundo, porque a atitude foi interpretada como traição; o sentimento sai de controle e se traduz em gritos, palavrões e até socos. E, então, bate uma culpa enorme e o medo de ser abandonado, como sempre. Dá vontade de se cortar, de beber e até de morrer, porque a dor, o vazio e a raiva de si mesmo são insuportáveis. As emoções e comportamentos exaltados podem dar uma ideia do que vive alguém com transtorno de personalidade borderline (ou "limítrofe"). Show
Reconhecido como um dos transtornos mais lesivos, leva a episódios de automutilação, abuso de substâncias e agressões físicas. Além disso, cerca de 10% dos pacientes cometem suicídio. Além da montanha-russa emocional e da dificuldade em controlar os impulsos, o borderline tende a enxergar a si mesmo e aos outros na base do "tudo ou nada", o que torna as relações familiares, amorosas, de amizade e até mesmo a com o médico ou terapeuta extremamente desgastantes. Veja tambémMuitos comportamentos do "border" (apelido usado pelos especialistas) lembram os de um jovem rebelde sem tolerância à frustração. Mas, enquanto um adolescente problemático pode melhorar com o tempo ou depois de uma boa terapia, o adulto com o transtorno parece alguém cujo lado afetivo não amadurece nunca. Ainda que seja inteligente, talentoso e brilhante no que faz, reage como uma criança ao se relacionar com os outros e com as próprias emoções --o que os psicanalistas chamam de "ego imaturo". Em muitos casos, o transtorno fica camuflado entre outros, como o bipolar, a depressão e o uso abusivo de álcool, remédios e drogas ilícitas. O que é o borderline?Reações explosivas fazem parte do cotidiano de um borderline Imagem: iStockDe forma resumida, um transtorno de personalidade pode ser descrito como um jeito de ser, de sentir, se perceber e se relacionar com os outros que foge do padrão considerado "normal" ou saudável. Ou seja, causa sofrimento para a própria pessoa e/ou para os outros. Enquadrar um indivíduo em uma categoria não é fácil --cada pessoa é um universo, com características próprias. Os transtornos de personalidade costumam ser divididos em três principais grupos, ou espectros. Segundo essa classificação, o borderline está no espectro B, que reúne aqueles sujeitos que costumam ser chamados de "complicados", "difíceis", "dramáticos" ou "imprevisíveis". Nesse grupo B estão, ainda, os narcisistas, os histriônicos e os antissociais. No grupo A estão os esquizoides, os esquizotípicos e os paranoides, muitas vezes taxados de "frios", "esquisitões" ou "com mania de perseguição". E no C estão os evitativos, os dependentes e os obsessivo-compulsivos (não confundir com o transtorno psiquiátrico), também vistos como "medrosos ou ansiosos", "frágeis" ou "certinhos demais", respectivamente. O termo "borderline", que em inglês significa "fronteiriço", teve origem na psicanálise: esses pacientes não podiam ser classificados como neuróticos (ansiosos e exagerados),nem como psicóticos (que enxergam a realidade de forma distorcida), mas estariam em um estado intermediário entre esses dois espectros. O primeiro autor a usar o termo foi o psicanalista norte-americano Adolph Stern, em 1938, que descreveu o transtorno como um tipo de "hemorragia psíquica" diante das frustrações. É comum?Não há estatísticas sobre a prevalência do transtorno no Brasil. Na população mundial, é estimada em 2%, embora estudos mostrem que a proporção pode chegar a 5,9% —é que boa parte dos casos deve ficar sem diagnóstico adequado. Nos ambulatórios de psiquiatria, representa em torno de 20% dos pacientes. De 8 a 10% dos indivíduos com esse tipo de transtorno cometem suicídio, segundo a ABP (Associação Brasileira de Psiquiatria). O diagnóstico é bem mais frequente entre as mulheres, mas estudos sugerem que a incidência seja igual em ambos os sexos. O que acontece é que elas tendem a pedir mais socorro, enquanto os homens são mais propensos a se meter em encrencas, ir para a cadeira ou até morrer mais precocemente por causa de comportamentos de risco. Quase sempre o transtorno é identificado em adultos jovens e os sintomas tendem a se tornar atenuados com o passar da idade. Sintomas do borderlineVeja, a seguir, as principais características, também consideradas critérios de diagnóstico para o transtorno, e como eles se traduzem no dia a dia de um borderline:
Como é feito o diagnóstico?Não existem exames de sangue ou de imagem que permitam o diagnóstico. O indivíduo deve ser avaliado por um profissional de saúde mental qualificado, que irá analisar seu histórico e sintomas. É importante saber diferenciar o borderline de outras condições, como transtornos mentais, efeitos de drogas ou mesmo problemas de identidade, comuns na adolescência. Nos pacientes mais jovens, a recomendação é que o diagnóstico só seja fechado após um ano com sintomas estáveis. Comorbidades: duas condições ao mesmo tempoTranstornos de personalidade são diferentes de transtornos mentais (como depressão, ansiedade, transtorno bipolar, psicose etc), embora seja difícil para leigos e desafiante até para especialistas fazer essa distinção, já que sobreposições ou comorbidades (existência de duas ou mais condições ao mesmo tempo) são muito frequentes. Não é raro que o borderline desenvolva transtorno bipolar, depressão, transtornos alimentares (em especial a bulimia), estresse pós-traumático, déficit de atenção/hiperatividade e transtorno por abuso de substâncias, entre outros. Borderline ou transtorno bipolar?Esses dois transtornos podem se sobrepor, mas não é raro que um seja confundido com o outro. Os sintomas do bipolar costumam aparecer em fases: o paciente tem um episódio de depressão grave ou de mania (marcado por euforia, sentimentos de grandeza e comportamentos impulsivos). Há até o chamado "estado misto", mas cada episódio costuma durar algumas semanas. Já no borderline, as oscilações de humor são muito mais rápidas, como estados flutuantes. Se o bipolar pode ter alguns períodos de relativa estabilidade, no borderline as questões relativas à autoimagem e aos relacionamentos, bem as outras características, estão sempre presentes. É importante que o psiquiatra saiba distinguir os transtornos, pois os antidepressivos, que ajudam a aliviar os sintomas do borderline, podem deflagrar um episódio grave de mania no bipolar, de consequências desastrosas. Causas do borderlineAssim como ocorre com outros transtornos de personalidade, não existe uma causa única para o borderline. Os especialistas falam mais em fatores de risco, ou seja, condições que aumentam a vulnerabilidade, mas nem sempre são determinantes para o surgimento do quadro. São eles:
Jovens adultos sofrem maisO paciente borderline sofre os períodos de instabilidade mais intensos no início da vida adulta. Há situações de crise, ou maior descontrole, que podem até resultar em internações porque o paciente coloca sua própria vida ou a dos outros em risco. Por volta dos 40 ou 50 anos, a maioria dos "borders" melhora bastante, probabilidade que aumenta se o paciente se engaja no tratamento. TratamentoSe uma pessoa com transtorno bipolar está num episódio de depressão ou de hipomania (alteração de humor), ela vai voltar ao estado normal com o tratamento adequado. Já em um transtorno de personalidade, os sintomas estão mais arraigados, digamos assim. A personalidade envolve não só aspectos herdados, mas também aprendidos, por isso a melhora é possível, ainda que seja difícil de acreditar no início. Se a psicoterapia é importante para ajudar o bipolar a identificar uma virada e evitar perdas, no transtorno de personalidade ela é o carro-chefe do tratamento. Medicamentos ajudam a aliviar os sintomas depressivos, a agressividade e o perfeccionismo exagerado, e são ainda mais importantes quando existe um transtorno mental associado. Os fármacos mais utilizados são os antidepressivos (flluoxetina, escitalopram, venlafaxina etc), os estabilizadores de humor (lítio, lamotrigina, ácido valproico etc), os antipsicóticos (olanzapina, risperidona, quietiapina etc) e, em situações pontuais, sedativos ou remédios para dormir (clonazepan, diazepan, alprazolan etc). Esses últimos costumam ser até solicitados pelos pacientes, mas devem ser evitados ao máximo, porque podem afrouxar o controle dos impulsos, assim como o álcool, além de causarem dependência. Nas crises, o paciente deve contar com uma equipe multidisciplinar, montada de acordo com cada caso e eventuais comorbidades. Ela pode incluir, além do terapeuta individual e/ou do psiquiatra, profissionais como acompanhante terapêutico, enfermeiro e até nutricionista. Tipos de terapia recomendadas para o tratamento de borderlineConheça algumas terapias que trazem resultados para esse tipo de transtorno, segundo os especialistas consultados e a literatura científica:
AutoboicoteEmbora este não seja um critério diagnóstico, é comum o borderline sabotar a si próprio. Por exemplo, ele abandona a faculdade a poucos meses de se formar, termina o namoro que parecia ter finalmente emplacado, e, claro, abandona o tratamento que podia dar certo. O próprio rótulo de borderline pode ser usado como um limitador. Os casos mais graves envolvem medicação pesada, pelo menos nas fases mais críticas, e os efeitos colaterais são outra razão para fugir do psiquiatra. Fazer o paciente se engajar no tratamento é um dos maiores desafios dos profissionais de saúde que tratam o borderline, uma vez que a culpa pelo sofrimento é atribuída aos outros. É comum o psiquiatra ou psicólogo ter de ir atrás ou pedir ajuda dos familiares para entender o que gerou o problema e tratá-lo durante as consultas ou sessões. Isso quando o próprio profissional não acaba desistindo, porque o paciente falta sem avisar ou é extremamente agressivo. Borderline tem cura?Ainda que o tratamento faça a diferença, não dá para dizer que o transtorno borderline vai desaparecer da vida do paciente, como uma infecção resistente que finalmente é controlada com o antibiótico certo. Se isso acontecer, é provável que o indivíduo não era borderline. Os especialistas preferem falar em "pequenas curas que se somam": as relações ficam mais estáveis, a tolerância à frustração aumenta, a capacidade de reflexão se expande e controlar certos impulsos torna-se possível. A vida fica produtiva e satisfatória. Como ajudar alguém com o transtorno?Incentivar a pessoa a buscar ajuda nem sempre é fácil e, muitas vezes, a família precisa levar o borderline às sessões e participar da terapia, para saber administrar os conflitos. É importante que os familiares e amigos saibam que o tratamento funciona, ainda que leve tempo. E o apoio deles é fundamental durante o processo. Ao sair da crise, estabelecer um trabalho ou atividade também colaboram para a socialização e autoestima do borderline. O que fazer em uma crise de borderline?Algumas crises podem ser contornadas em casa, com remédios e atendimento extra por parte do terapeuta, quando já existe um profissional ou equipe que cuida do borderline. Ter o telefone ou e-mail dessas pessoas é fundamental para saber o que fazer em uma emergência. Já se o paciente não está em tratamento, deve ser levado ao pronto-socorro ou a um ambulatório de psiquiatria. Se houver risco de vida ao paciente ou a outras pessoas, a internação pode ser necessária. Manter a calma e já ter um roteiro discutido com a equipe ajuda muito nesses casos. Fontes: Fernanda Sassi (médica coordenadora do ensino e assistência do ambulatório integrado de transtornos de personalidade e do impulso do Ipq - HC/FMUSP) Erlei Sassi Jr.(psiquiatra, coordenador do ambulatório integrado de transtornos de personalidade e do impulso do Ipq - HC/FMUSP), Luiz Sperry (psiquiatra e psicanalista, autor do Blog do Luiz Sperry) Dan Josua (psicólogo clínico com formação em Terapia Comportamental Dialética pelo The Linehan Institute, nos Estados Unidos, autor do Blog do Dan Josua). Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM 5- Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders); Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde (CID-10); Associação Brasileira de Psiquiatria. Qual a diferença entre depressão e borderline?A depressão é um transtorno de humor, enquanto o transtorno de personalidade borderline está ligado apenas à personalidade. Essa presença de duas ou mais doenças é chamada comorbidade.
Quem tem borderline pode ter depressão?Uma pessoa que sofre com a síndrome de borderline pode vivenciar episódios intensos de raiva, depressão ou ansiedade com duração variável de horas a dias; podendo, inclusive, cometer tentativas de suicídio.
O que pode ser confundido com borderline?Os transtornos de humor mais comumente confundidos com o Transtorno de Personalidade Borderline são a depressão e o Transtorno Afetivo Bipolar (TAB).
Qual a diferença entre borderline e transtorno de personalidade?O transtorno de personalidade borderline, como o próprio nome já indica, não é um transtorno de humor, mas sim de personalidade. Não é a mesma coisa que bipolaridade, em que o problema resulta da desregulação de alguns elementos cerebrais que coordenam as emoções “positivas” e “negativas”.
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