Porque o conhecimento e imprescindível para o pensamento ético de Epicuro

Nesta aula, vamos abordar o epicurismo, uma escola fundamentada nas ideias de Epicuro (341-270 a.C.), e baseada, portanto, no hedonismo.  Tal como disse na última aula, as escolas filosóficas helênicas foram unidas, em larga medida, pela sua dedicação aos fundadores das doutrinas. Então, é imprescindível explorar as ideias do próprio Epicuro, e as principais influências nas suas teorias, para entender o epicurismo propriamente.

O jardineiro da filosofia

Nascido na ilha de Samos – o local de nascimento de Pitágoras - em aproximadamente 341 a.C., Epicuro criou uma filosofia que continuaria viva e intensa mesmo no Imperio Romano. Ele fundou a sua escola em 306 a.C., num jardim fora dos muros de Atenas. Esta localização separada do rebuliço urbano talvez simboliza o desinteresse de Epicuro no envolvimento político, e a vida preferida dos epicuristas, ou seja, uma vida de discussão filosófica tranquila. Pois embora os epicuristas pudessem ser tenazes na discussão e se envolvessem em polêmicas contra outras escolas, Epicuro e os seus discípulos acreditavam que uma vida sem ansiedade ou confrontação permitiria chegar à ataraxia, um estado de calma, isento de ansiedade.

Mas, por que a filosofia de Epicuro foi êxito retumbante? O êxito do epicurismo enquanto entidade social se deve a esta devoção dos seus discípulos. Tanto durante a sua vida quanto depois, esses trataram a Epicuro como um deus, celebrando o seu aniversario cada ano, e inclusive – no caso de Lucrécio, o famoso poeta epicurista romano – dedicando poemas a ele. Na verdade, Diógenes de Enoanda mandou escrever nos muros da cidade os pensamentos de Epicuro para que todos os conhecessem; ato que foi muito caro, mas que logrou difundir a filosofia dele de forma mais extensiva. O êxito do epicurismo como iniciativa filosófica é devido ao estudo duradouro das obras de Epicuro, que começou durante a sua vida, e continuaria durante o Imperio Romano até os dias de hoje, pois muitos historiadores de filosofia contemporâneos dedicam boa parte de seus tempos para analisar aos manuscritos subsistentes de Epicuro. Para seguir os passos dessa tradição, vamos tentar decompor os principais temas do filósofo e destacar as suas afirmações mais importantes.

O empirismo de Epicuro: sensação, preconceção (prolepsis) e conhecimento

A filosofia de Epicuro é fundamentalmente empírica em natureza, baseada na idea de que os sentidos são o suporte e fonte de todo o nosso conhecimento. De fato, Epicro diz que ‘se nós não confiarmos em nossos sentidos, não terermos nenhum parâmetro por meio do qual possamos julgar nossas crenças’. Sua preocupação primária é encontrar o critério – ou a κανών (régua) – do conhecimento; e sua resposta é que todo o conhecimento por fim deriva dos sentidos e deve ser julgado quanto a estes. Mas por que deveríamos confiar nos nosso sentidos? Ora, de acordo com Epicuro, eles não podem estar errados, já que eles são guias infalíveis para o caminho pela qual o mundo externo interage conosco.

Vamos examinar o exemplo que o próprio Epicuro nos dá: aquele da torre quadrada. Um homem olhando para esta torre de certa distância pode pensar que a torre é redondo – mas para Epicuro, isso não significa uma falha dos sentidos; mas sim que a torre de fato é redonda vista daquela distância. Se vocês estiver usando óculos de lentes cor-de-rosa, então seus sentidos não falham quando você vê tudo em cor-de-rosa – a experiência te mostra exatamente aquilo que ela deveria te mostrar, considerando que vocês está usando aqueles óculos. Para Epicuro, se os seus sentidos acabam por estar errados em alguns casos, então não a fim para a incerteza: um exemplo claramente apresentado pela crítica da indução de David Hume e do questionamento dos sentidos de René Descartes. Mesmo quando Descartes tenta rejeitar os dados de seus sentidos (lembre-se: o experimento mental dele consiste sobre a existência de um “gênio maligno” que o engana), ele percebe que não pode alcançar ceticismo ulterior e deve aceitar a confiança nos sentidos, na maioria dos casos. Contudo, onde Descartes permanece desconfiado dos sentidos, e enfim acredita que eles as vezes podem ser enganados, Epicuro acredita  que os sentidos estão sempre corretos e que eles provém a régua final sobre a qual podemos testas todas as nossas crenças.

A última parte desse empirismo é vital – isto é, suas crenças. Para Epicuro, nós podemos descobrir que algumas crenças são falsa – por exemplo, ao andar perto da torre, podemos ver que ela é quadrada e não redonda. No entanto, não podemos jamais descobrir os enganos dos sentidos em si, o que dá origem a crença.

As sensações são também duplamente importantes para Epicuro, dado que também dão origem a algo ainda mais fundamental – pré-concepções, ou prolepsis, como ele as nomeia. Experiência sensorial dá origem a uma variedade de noções brutas que podemos aplicar no mundo – por exemplo, uma girafa é um animal que vive na Savana e tem um longo pescoço: isso seria suficiente para nos ajudar a identificar girafas. Pré-concepções podem formar a base do filosofar e agir como um verificador, quase como um tornassol, nas teorias que desenvolvemos. Isto é, se uma teoria viola nossas pré-concepções do mundo, então isso deve levantar dúvidas quanto a teoria (apesar disso não eliminar completamente sua validade).

Epicuro também discute as ‘concepções comuns", que são pré-concepções que todos compartilham, por exemplo que os deuses são felizes. Todos concordam com elas, uma vez que não são apenas o ponto de partida para filosofia, mas o incontroverso ponto de partida em geral. Até certo ponto, isso responde ao paradoxo levantado no diálogo ‘Meno’ de Platão - a investigação parece impossível, porque ou sabemos o objeto de nossa pesquisa ou não sabemos – se o conhecemos, não faz sentido perguntar nada sobre ele, se não o conhecemos, então como podemos questioná-lo? Epicuro propõe que, lembrando de nossas experiências sensoriais, construamos pré-concepções, as quais sejam boas o suficiente para nos permitir iniciar nossa investigação. Essencialmente, essas pré-concepções são um meio caminho entre conhecimento certo e ignorância - não precisamos começar do nada quando indagamos.

Para Epicuro, queremos acreditar nas coisas que são sustentadas pela sensação e evitar acreditar nas coisas que são contrárias às experiências que já testemunhamos, por exemplo, a torre quadrada que parece redonda à distância. Epicuro não está envolvido no jogo aristotélico ou platônico de buscar certeza - algum grau de suporte e falta de contra-testemunho são suficientes para ele. De fato, ele permite que várias teorias alternativas permaneçam igualmente aceitáveis em contextos cosmológicos. Isso não é por preguiça - certeza quanto à física não é o objetivo da filosofia epicurista, que é ética, buscando a felicidade e a ausência de perturbação.

Atomismo: Demócrito, Parménides e a oposição a Aristóteles  

A teoria atômica de Epicuro é fortemente influenciada por Demócrito. Baseia-se em duas simples razões: primeiro, que existem corpos em movimento e, segundo, nada passa a existir do que não existe (uma formulação que mais tarde será consagrada na lei de conservação de energia). O primeiro ponto é simplesmente um dado de experiência para Epicurus, e o segundo é relativamente comum na filosofia grega. Epicuro concorda com Parmênides que não existe coisa tal como a passagem do ser para o não ser. Se o ser pudesse ser reduzido ao não-ser absoluto, o ser desapareceria pouco a pouco até que tudo acabasse - no entanto, se olharmos em volta, podemos ver claramente que o mundo está todo aqui. Isso leva a sua concordância com Demócrito e outros atomistas de que os elementos básicos do mundo não podem ser destruídos - mas Epicuro insiste - contra Parmênides - que o mundo está mudando.

Como os corpos se movem, deve haver espaço vazio para eles se moverem, e Epicuro chama esse espaço de 'vazio'. Enquanto que Aristóteles rejeitava a ideia de vazio, afirmando que o mundo está cheio e toda vez que nos movemos, devemos tirar algo do nosso caminho, logo não há espaço não preenchido; Epicuro discorda: se o mundo estivesse cheio, não seríamos capazes  de nos mover. Um mundo sem ‘vazio’ seria como o mundo que Parmênides imaginou - estático e imutável. Essas idéias opostas sobre o vazio devem-se em grande parte às diferentes premissas dos pensadores - Epicuro assume que os corpos devem ser inflexíveis - enquanto a concepção de Aristóteles é que o corpo é fluido e pode mudar, Epicuro assume que o corpo deve ser igualmente sólido e resistente, ao contrário do vazio, que é irresistente e tangível. De fato, Aristóteles acreditava que, em teoria, fosse possível dividir qualquer corpo quantas vezes se quisesse - nenhuma parte é pequena demais para ser cortada. No entanto, os atomistas rejeitavam a ideia de que o corpo é contínuo - na verdade, a palavra ‘átomo’ deriva do grego ἄτομον (átomo), que significa ‘não cortável’. Epicuro propõe o seguinte argumento. Se permitirmos que o corpo seja infinitamente divisível, todo corpo será feito de infinitas partes, mas cada parte deve ter algum tamanho - portanto, todo corpo será infinitamente grande. Para evitar essa consequência absurda, Epicuro escolhe abraçar o atomismo - deve haver blocos básicos e imutáveis ​​de matéria para entender o mundo ao nosso redor. Esses corpos simples são átomos - apenas corpos e vazio existem per se (isto é, sem depender da existência de outra coisa), enquanto outras coisas, como cores, tempo e justiça, são explicáveis ​​como atributos dos corpos.

O atomismo de Epicuro se beneficia ao ser capaz de responder a uma crítica anti-atomista, ou seja, como um átomo pode ser indivisível se quiser se mover? Se um átomo cruza uma linha, a parte frontal do átomo cruza a linha e a parte traseira não passa da linha - sugerindo que um átomo pode ser dividido no final das contas. Epicuro responde a esses exemplos afirmando que os átomos não são conceitualmente indivisíveis, mas fisicamente indivisíveis - os próprios átomos são feitos de partes, mas essas partes não podem ser fisicamente separadas umas das outras. Epicuro chama essas partes de minima, ie. peças mínimas. Essas partes subatômicas são do menor tamanho que existe e não se pode conceber nada menor. Quando o átomo se move, pelo menos uma parte mínima terá se movido completamente - nunca haverá uma parte mínima a meio caminho de uma linha - ela estará completamente, ou nem um pouco. Assim como uma minúscula partícula de poeira não possui partes visíveis e, ainda assim, um número suficiente de partículas de poeira se reúna em uma pilha de poeira, o mesmo ocorre com os mínimos - eles não têm lados, nem sub-partes, mas se juntam para formar átomos inteiros.

Para Epicuro, os átomos têm um número de formas e tamanhos inconcebivelmente vasto - ele não admite que os átomos sejam grandes o suficiente para se ver, como Demócrito, mas há um número infinito deles, que se juntam para formar corpos maiores quando colidem em aglomerados e se movem no vazio. Corpos complexos se reúnem para formar todo o cosmos, composto de mundos incomensuráveis espalhados pelo vazio, que se difundem em diferentes direções. No universo de Epicuro, então, existem vazios inconcebivelmente grandes, tempo infinito, infinitos átomos, movendo-se e colidindo, formando corpos e sistemas cósmicos inteiros, espalhados por um vazio sem fim.

Ao contrário de seus antecessores, Epicuro também era meticuloso em relação às objeções extraídas dos sentidos. Por exemplo, quando soltamos alguma coisa, por que ela cai? Aristóteles teorizou que elementos pesados (terra e água) naturalmente buscam um lugar em direção ao centro do universo. Epicuro responde a isso e até aperfeiçoa a teoria de Demócrito, afirmando que todos os átomos têm peso e, quando são deixados à própria sorte, caem: o universo tem um ‘cima’ e ‘baixo’, ainda que não tenha um centro.

- Aula escrita por Etta Selim

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Porque o conhecimento é imprescindível para o pensamento ético de Epicuro?

Assim, o conhecimento seguro dos desejos permite direcionar toda escolha e toda recusa para a saúde do corpo e para a serenidade do espírito, uma vez que esta é a razão de se ter uma vida feliz e de se praticar toda e qualquer ação, afastar-se da dor e do medo.

Qual é o pensamento ético dos epicuristas?

Em Epicuro, encontramos uma ética voltada para ensinar a evitar ou a suportar a dor, o medo e o sofri- mento que estão sempre à espreita. Epicuro, na Carta a Meneceu, abor- da a questão da moral, da maneira como o homem deve encarar a vida e da busca da felicidade.

Como pode ser resumido o comportamento ético para Epicuro?

A ética epicurista significa essencialmente que “o prazer é o princípio e o fim da vida feliz”, onde o prazer é critério de escolha e aversão – pois tende-se a ele para fugir da dor – e o critério com o qual avaliamos todos os bens.

Qual era a importância do prazer na ética epicurista?

O fim supremo da vida é o prazer sensível; critério único de moralidade é o sentimento. O único bem é o prazer, como o único mal é a dor; nenhum prazer deve ser recusado, a não ser por causa de conseqüências dolorosas, e nenhum sofrimento deve ser aceito, a não ser em vista de um prazer, ou de nenhum sofrimento menor.

O que podemos destacar de importante acerca da filosofia de Epicuro?

Epicuro de Samos (341/270 a.C) foi um importante pensador grego que deu origem à uma doutrina filosófica denominada epicurismo, que sugere que o homem vive sempre em busca da felicidade, que as ações do homem o levam sempre em busca do prazer, tentando privar-se da dor.

Por que a ética de Epicuro e uma ética hedonista?

O hedonismo epicurista era complexo e fazia uma divisão de tipos de prazer: havia os prazeres naturais e os prazeres não naturais. Para Epicuro, o ser humano deveria buscar os prazeres naturais, pois eles seriam os únicos que o levariam verdadeiramente à felicidade.