Por que mesmo com o crescimento da produção agrícola no agronegócio a fome aumenta no Brasil?

Sob qualquer ponto de vista, as eleições parlamentares de 2018 são um marco para a periodização da história do Brasil e também para a discussão do presente artigo. Desde então, sob o governo do presidente Jair Bolsonaro verdadeiras atrocidades estão sendo impostas à toda sociedade, com o apoio de parcela expressiva das “elites” econômica, política, jurídica e dos militares das Forças Armadas.

Paralelamente a um aparelhamento do Estado sem precedentes no país, temos o desmonte de inúmeras instituições e políticas públicas que de alguma maneira protegiam categorias sociais mais vulnerabilizadas, tais como as políticas de incentivo à agricultura familiar, à reforma agrária, ao combate à fome e à insegurança alimentar.

Tudo isso vem acompanhado do acirramento da crise econômica, do avanço do desemprego e da precarização das condições gerais de trabalho, da dilapidação do poder de compra da população com o aumento da inflação e o crescimento exponencial do preço da cesta básica de alimentos.

Se não bastasse todos os colapsos supracitados, desde o começo de 2020, vivemos a pandemia de Covid-19. Para um país como o Brasil, com um grupo de negacionistas à frente do executivo federal, que rejeitam preceitos científicos mundialmente solidificados, as consequências são ainda mais nefastas e inimagináveis na sua totalidade. Isso se dá pela ausência de uma política sanitária federal, o total descaso com a vacinação em massa da população, tal e qual com as medidas sanitárias básicas recomendadas por todos os especialistas da área.

Entendemos que teremos alguns anos muito difíceis pela frente, com o aumento da pobreza e da desigualdade socioespacial. A fome já cresceu de forma bastante acelerada desde o marco que serve para a periodização utilizada neste artigo, sendo uma das mazelas que precisarão ser enfrentadas com muito vigor.

Infelizmente, a fome é uma cicatriz profunda e histórica da sociedade brasileira. Com o intuito de mudar a triste realidade da fome no país, foi apresentada no Senado Federal, em 2003, uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC), que em 2010 introduziu o direito humano à alimentação na carta magna como um direito social e dever do Estado. Desde esse momento, um conjunto de ações de combate à fome foram implementadas, sendo o Programa Fome Zero um dos mais bem sucedidos.

No entanto, muitas dessas ações e políticas públicas estão agora sendo destruídas, extintas ou exercendo papel puramente figurativo. A lista é grande e não seria possível abarcar todas essas ações no espaço deste artigo, mas citamos como exemplo a extinção do Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA), do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), o estrangulamento de recursos para o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) e o Programa de Cisternas, a venda de parte dos armazéns da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab). As consequências são devastadoras, conforme mostram as pesquisas sobre os números da fome no país.

A opção de privilegiar o agronegócio em detrimento da agricultura familiar é outro pilar da fome e, não por coincidência, tal opção foi realizada em outro momento nefasto da história brasileira, o da ditadura militar (1964-1985). Os agentes do agronegócio estão entre os que ajudaram a eleger e que apoiam o atual mandatário do país e boa parte dos desmontes das políticas públicas inerentes à agricultura familiar, ao meio ambiente, à segurança alimentar fazem parte do pagamento das promissórias da dívida acumulada com o setor.

 

Pressupostos do agronegócio

Mesmo que brevemente, é importante destacar alguns dos principais pressupostos do agronegócio. Até mesmo porque embora hoje a palavra agronegócio seja utilizada de forma indiscriminada, somente há pouco mais de duas décadas passou a ter uso corrente no Brasil. Mas, apesar da sua pouca idade, já assume caráter polissêmico, carregada de ideologias e mitos. Isso reforça a necessidade de apresentarmos elementos de argumentação para a busca de uma visão crítica sobre o tema.

Como a própria palavra deixa explícito (agro + negócio), entre seus maiores objetivos está a obtenção de lucro e renda da terra, com a produção de muitas novas mercadorias voltadas ao mercado, nacional e internacional, em especial de alimentos processados e ultraprocessados, de commodities e de agrocombustíveis.

Por que mesmo com o crescimento da produção agrícola no agronegócio a fome aumenta no Brasil?
(Foto: Camila Domingues/ Palácio Piratini)

O agronegócio é regulado por relações de produção, distribuição e consumo globalizadas calcadas em corporações transnacionais, assim como mobiliza grandes volumes de créditos estatais e um conjunto de outras políticas públicas. Da mesma forma, articula um conjunto portentoso de interesses econômicos e políticos, como prova o tamanho e o poder da “Bancada Ruralista” no Congresso Nacional, que soma cerca de 250 parlamentares.

De maneira geral, o agronegócio se caracteriza por ser espacialmente seletivo, socialmente excludente, economicamente concentrador e ambientalmente e culturalmente devastador. Da mesma forma, sua difusão tem aumentado os níveis de riqueza, cada vez mais concentrados, e os níveis de pobreza, cada vez mais difundidos; além de criar muitas novas e complexas desigualdades socioespaciais, com o aumento dos conflitos e da violência no campo e nas cidades.

No modelo de produção do agronegócio temos o predomínio do alimento tratado não como um direito de todos, mas como uma mercadoria, ou seja, um bem econômico cujo propósito maior é auferir lucro, característica central do capitalismo. Esse é, indubitavelmente, um dos pilares da fome no Brasil. Com o objetivo de destacar o nosso argumento, utilizaremos o termo alimento-mercadoria a partir deste parágrafo.

 

A concentração econômica na produção e na distribuição dos ultraprocessados

Entre os resultados da difusão do agronegócio temos uma metamorfose radical dos padrões de produção e consumo de alimentos, assim como dos hábitos alimentares. Ainda na década de 1960, o Brasil tinha um consumo alimentar predominantemente baseado em alimentos in natura ou minimamente processados. Mas, a partir das décadas de 1980 e 1990 de forma definitiva, os alimentos processados e ultraprocessados alcançaram um papel central na alimentação dos brasileiros.

De maneira geral, os ultraprocessados são fruto das novas formas de produção e consumo inerentes ao mercado de alimentação imposto pelos agentes do agronegócio e estão entre os signos maiores do alimento-mercadoria. Com a difusão dos ultraprocessados há uma extrema estandardização e empobrecimento nutricional dos alimentos.

Isto posto, a indústria de transformação é primordial na difusão das novas formas de produção e de consumo no padrão alimentar hoje reinante, notadamente a agroindústria. Por agroindústria temos toda atividade industrial de beneficiamento, processamento ou de transformação que tem como matéria-prima produtos originados da agropecuária. No presente artigo nos interessa destacar as agroindústrias alimentares, que somam um conjunto grande de subgrupos.

As agroindústrias destacam-se não só na economia industrial, mas dominam cada vez mais as atividades agropecuárias, uma vez que alguns segmentos delas se encontram monopolizados pelo capital agroindustrial, como ocorre, por exemplo, na avicultura, na pecuária leiteira, na produção de coco e de castanha de caju, entre outros, evidenciando que a expansão do capitalismo monopolista se dá também através da sujeição da agricultura às agroindústrias.

Por outro lado, a formação de corporações é um processo próprio do capitalismo no período histórico atual, denominado de técnico-científico-informacional pelo geógrafo Milton Santos (1993). Assim sendo, as transformações do sistema alimentar se deram simultaneamente a concentração econômica nos segmentos de produção dos alimentos processados e ultraprocessados. Naturalmente, isso só é bom para as corporações.

O Brasil é um dos países onde a concentração na agroindústria alimentar está entre as maiores no mundo, uma vez que entre 60 a 70% das compras de uma família são produzidas por somente 10 corporações. O resultado é desastroso: um pequeno número de corporações transnacionais determina o que comemos no país desde os anos 1990.

Outro pilar fundamental para a difusão do alimento-mercadoria, é a própria disseminação dos supermercados, que se transformaram nos mais importantes centros de comercialização dos alimentos processados e ultraprocessados. Os supermercados hoje são responsáveis por mais da metade do total dos alimentos comercializados nas principais cidades do país, notadamente metrópoles e cidades médias.

Até a década de 1970, no Brasil, a venda dos alimentos no varejo se dava por um conjunto numeroso e diversificado, composto por uma miríade de pequenos comércios (quitandas, mercearias, empórios, feiras livres, açougues), além de vendedores ambulantes que distribuíam um conjunto de alimentos in natura ou minimamente processados (ovos, frutas, pães etc.).

Todos esses comércios vêm sendo crescentemente substituídos pelas lojas das principais corporações de supermercados, que promoveram total renovação no varejo, disseminando a ideia do autosserviço.

Nos anos 1990, aumentou a participação das empresas estrangeiras no segmento da distribuição de alimentos no Brasil, da mesma forma que ocorreu uma crescente concentração do segmento, especialmente através de fusões e aquisições, que continuam acontecendo até hoje. Conforme o Ranking da Associação Brasileira de Supermercados de 2020, maior estudo do segmento no Brasil, cinco redes dominavam o mercado brasileiro.

Mas, como dizia minha avó, “não há nada tão ruim que não possa piorar”. Mais uma fusão no segmento de supermercados ocorreu depois da pesquisa supracitada, com a compra do Big pelo Carrefour. Ou seja, utilizando os dados do ranking da Abras para o ano de 2019, diríamos que a maior rede varejista atuando no Brasil comprou a terceira maior. O Carrefour estima que sua base de clientes se ampliará dos cerca de 45 milhões para mais de 60 milhões com a adição dos cerca dos clientes do Big, cerca 28,5% da população brasileira.

A diminuição do número de empresas atuando no setor permite às corporações varejistas transnacionais o controle quase absoluto sobre os preços, incluso dos alimentos. Assim, o prejuízo é para a sociedade como um todo, mas especialmente aos mais vulnerabilizados pela desigualdade social, que está mais escancarada do que nunca desde o começo da pandemia de Covid-19.

Por que mesmo com o crescimento da produção agrícola no agronegócio a fome aumenta no Brasil?
Capa da edição 166 de Maio de 2021. Acesse aqui os textos da edição, exclusivos para assinantes.

Aumento da produção do alimento-mercadoria e da fome

Uma verdade que precisa cada vez mais ser evidenciada, embora esteja escancarada para todos, é que paralelamente ao aumento da produção e da produtividade do agronegócio brasileiro, assim como da curva ascendente da produção das corporações que dominam a agroindústria alimentar, temos o crescimento do número de pessoas sem acesso à alimentação, em estado de insegurança alimentar leve ou mesmo passando fome.

Não por acaso, o aumento da produção do agronegócio e o crescimento da fome são faces de uma mesma moeda. Portanto, a cada novo recorde da safra de soja, lado a lado aumenta o número de pessoas que acordam de manhã sem saber como farão para se alimentar naquele dia. Essa é uma das maiores perversidades inerentes ao agronegócio brasileiro. E a pandemia escancarou ainda mais essa verdade, pois as corporações de produção e de distribuição do alimento-mercadoria continuam lucrando durante este período, enquanto a fome aumentou de forma exponencial no mesmo intervalo.

Isso indica que a obra de Josué de Castro, Geografia da Fome, mais de meio século depois de escrita, continua atual. Na obra, o autor destacou a fome como um problema social resultante da concentração da riqueza e da terra, da desigualdade e da injustiça, e que não faz sentido relacioná-la à escassez de alimentos, como muitos ainda defendem.

Em contrapartida, a difusão do alimento-mercadoria, sobretudo dos ultraprocessados, viola um conjunto de saberes e fazeres historicamente construídos de populações que têm em práticas agrícolas e culinárias aspectos basilares de identidade cultural e da própria estrutura social, preservados e transmitidas há décadas e mesmo séculos. Dessa maneira, são muitas identidades locais e regionais que vêm sendo drasticamente impactadas com a difusão do agronegócio e a imposição do alimento-mercadoria.

Muitas práticas alimentares se associam diretamente às especificidades dos diferentes biomas, isso sem falar do uso ancestral das plantas com fins medicinais. Não nos esqueçamos que o Brasil tem uma das mais ricas biodiversidades do planeta, a qual vem sendo rapidamente devastada nas últimas décadas e de forma ainda mais acelerada desde 2019.

Julgamos que tais aspectos representam entraves ao direito humano à alimentação, um dos direitos básicos de nossa constituição, e que o alimento deve ser tratado como patrimônio intangível de um povo e não como uma mercadoria. O que as corporações associadas ao agronegócio têm feito é exatamente o contrário, o que inviabiliza a eliminação da fome.

Outra verdade que precisa ser discutida é a de que os alimentos ultraprocessados são um desastre para a saúde humana, pois favorecem o desenvolvimento de uma série de doenças crônicas não transmissíveis. Algumas dessas doenças já se constituem em grandes problemas de saúde pública em vários países, incluindo o Brasil, tais como o diabetes, a obesidade, a hipertensão, as doenças cardiovasculares, o acidente vascular cerebral, alguns tipos de câncer, para citar as mais conhecidas.

Não por coincidência, pacientes com doenças crônicas não transmissíveis estão entre os acometidos com formas mais graves da Covid-19 e não raro entre os mortos por complicações da doença. Assim sendo, discutir o agronegócio diz respeito a questões estruturais que hoje estão colocando em xeque-mate algumas das bases da sociedade na qual vivemos.

Hoje, mais do que nunca, estamos com muitas saudades do futuro, um futuro sem alimentos com veneno, sem comida sintética, sem concentração econômica, sem latifúndio, sem grilagem, sem desigualdades socioespaciais, sem retrocessos políticos e sem fome. Por isso, no Brasil, país de tantas contradições e desigualdades, não temos só fome de comida, mas principalmente fome de mudanças.

 

O presente artigo é uma síntese de artigo recentemente publicado no Boletim Goiano de Geografia.

 

Denise Elias é geógrafa e doutora em Geografia Humana pela USP. Professora e pesquisadora do Programa de Pós-Graduação em Geografia da UECE. Pesquisadora do CNPq.

Por que mesmo com o aumento da produção agropecuária ainda há fome no mundo?

Esse problema é conseqüência do “desvio” da produção, ou seja, os alimentos produzidos em países subdesenvolvidos não atendem, em muitos casos, o mercado interno e sim o mercado externo, direcionando para países desenvolvidos. Outro fator determinante é a produção de grãos usados para alimentar animais.

O que o agronegócio tem haver com a fome no Brasil?

Embora o aumento da fome tenha relação direta com os efeitos econômicos da pandemia, a situação já vinha se agravando nos últimos anos, onde a insegurança alimentar nos lares dos brasileiros das classes menos favorecidas já era sentido.

O que o agronegócio tem a ver com a fome?

“Com o empobrecimento da população, os preços dos alimentos no mercado interno se tornaram pouco atrativos para o produtor e aí vem o segundo momento, como há um desestímulo para a produção interna”, resume o pesquisador da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Penssan) Mauro ...

Porque o Brasil produz tanto e ainda tem gente passando fome?

Um problema tão complexo não tem uma resposta tão simples. Segundo especialistas, há fatores mais conjunturais, como a pandemia de covid-19, os conflitos geopolíticos, como a guerra na Ucrânia, e a inflação que atinge todos os países de uma economia globalizada.