Onde fica rio pardo - rs

Tranqueira Invicta

A fortaleza cultural da cidade de Rio Pardo

Clarissa de Baumont & Pedro Argenti
Reportagem realizada em Setembro de 2007

A colonização do Rio Grande do Sul teve início posterior à brasileira; o pouco interesse dos europeus fez o lugar ficar conhecido como “terra de ninguém”. Rio Pardo, inicialmente território dos índios Tapes, começou a se formar por volta de 1750. Após a assinatura do Tratado de Madri, estabelecendo que a Colônia de Sacramento pertenceria à Espanha e os Sete Povos das Missões a Portugal, houve necessidade de se proteger os limites das terras que os colonizadores consideravam suas. Um depósito de provisões para os soldados portugueses foi construído próximo da foz do rio Pardo. Transcorridos alguns anos, o acampamento foi transformado em Fortaleza e recebeu o nome de Jesus Maria José, instalando-se ali um Regimento de Dragões. “Os dragões de Rio Pardo vieram para defender dos espanhóis a fronteira para Portugal”, conta-nos Andréa Maas Severo, coordenadora geral do Núcleo de Pesquisa em Educação Patrimonial do Centro Regional de Cultura de Rio Pardo. .

A cidade de Rio Pardo formou-se em torno dessa Fortaleza. As disputas de terra entre espanhóis e portugueses permearam o início da história rio-pardense. As vitórias sucessivas dos portugueses fizeram com que passassem a chamar a Fortaleza de Tranqueira Invicta. “Os espanhóis vinham com indígenas para enfrentar e não conseguiam tomar posse. Foram vários combates e os portugueses sempre venceram.. Estava trancado, ninguém conseguia entrar. Tranqueira porque está trancado, porque ninguém ultrapassa”, explica Andréa.

Tranqueira Invicta tornou-se lema da cidade. Detentora de relevância histórica por suas peculiaridades culturais herdadas do povo açoriano, Rio Pardo conheceu o esplendor e a decadência. Um dos primeiros municípios do RS, chegou a ocupar três quartos do território gaúcho. Era centro econômico-comercial da região. Todas as mercadorias dos municípios arredores passavam pelo porto de Rio Pardo. O deslocamento do sistema de transportes fluvial para ferroviário desmembrou parte da cidade em vários outros municípios menores, já que as estradas de ferro permitiam autonomia comercial por não dependerem da presença de um rio. Após a extinção das estradas de ferro e surgimento das rodovias, Rio Pardo declinou ainda mais. Sua decadência faz surgir uma nova conotação ao termo Tranqueira Invicta. “Então Rio Pardo vai diminuindo sua extensão. E sofre um pouco de estagnação comercial, já que antes era o centro. Aí que aparece o mito vulgar dessa tranqueira invicta como trancado, sem desenvolvimento”, conta Andréa. “Mas o real sentido surgiu na época de 1750”, complementa.

De uma das principais vilas do interior gaúcho a uma cidadela esquecida pelo tempo, pelo resto do Estado e por muitos de seus conterrâneos. Rio Pardo é uma cidade de especial riqueza cultural. Arquitetônica, artística, culinária. Rio Pardo possui uma história de luta e resistência desde seu surgimento. Mitos, lendas, histórias que percorrem gerações, atravessam os anos e encantam aqueles que as ouvem. Visitar Rio Pardo é conhecer uma parte do Rio Grande do Sul que tem fortemente presentes os traços açorianos. A valorização da cultura tem sido uma questão central de preocupação da cidade nos últimos anos. Rio Pardo revela as marcas do contraste entre a preservação de um legado e a possibilidade de desenvolvimento e renovação.

A luta pelo Patrimônio Cultural

Ao chegarmos à pequena cidade de Rio Pardo, deparamo-nos com um evento cultural: ocorria uma feira do livro na cidade. Crianças de uma escola dirigiam-se à feira, onde um palhaço faria uma apresentação. Logo descobriríamos que, além da cultura petrificada dos prédios açorianos, Rio Pardo tinha forte presença cultural nas ações de sua gente.

O Centro Regional de Cultura Rio Pardo, antiga Escola Militar – que foi a primeira do Rio Grande do Sul – levou quatro anos para ser restaurado. Foi inaugurado recentemente, em 2006. Após muita luta de seus cidadãos. O prédio foi construído em 1848 pela Irmandade do Senhor Bom Jesus dos Passos para servir de Casa de Caridade (Hospital). ”Levou 34 anos para ficar pronto não chegou a ser hospital de fato”, conta Andréa Severo. Em 1885, começou a funcionar ali a primeira Escola Militar da Província. Pela escola, passaram nomes como Gaspar Dutra, Mascarenhas de Moraes, Plácido de Castro, Góes Monteiro e outros nomes importantes. Getúlio Vargas é o mais famoso deles, sobretudo por ter sido expulso da escola por sua rebeldia. Anos mais tarde, a escola militar transferiu-se para Porto Alegre e ali passou a funcionar o Ginásio Auxiliadora. Atualmente, é o Centro Regional de Cultura.A restauração do prédio foi possível graças ao trabalho do movimento de restauração denominado UNEAMA – União dos Ex-alunos Amigos da Auxiliadora. “Tem até um trocadilho: 'quem ama une'. O trabalho deles permitiu o desenvolvimento cultural”, destaca Andréa. A arquiteta Helga Hennemann, de Porto Alegre, uma das condutoras da restauração do prédio, conversou conosco no café do Centro de Cultura rio-pardense sobre o estado da edificação: “o prédio estava em condições muito precárias. A estrutura de madeira estava afetada pela umidade. Tinha prospecções em certos lugares e ai se encontraram as pinturas originais; havia camadas e camadas de tinta. O restauro dos detalhes foi trabalhoso. Os trabalhos de madeira do prédio já existiam; só que estavam com camadas de pintura também. Então se tirou isso e restaurou. Praticamente tudo tinha como se recuperar e achar como é era, através de fotos”.

O Centro Regional de Cultura proporciona o contato dos moradores locais com as artes plásticas, a música, a dança, o teatro e a literatura. Há aulas de ballet, jazz, danças folclóricas; aulas de piano e de pintura; aulas de artesanato. O comércio de artesanato das senhoras de Rio Pardo é bem sucedido, segundo Andréa, até fora do município.

A administração não é municipal; funciona como uma ONG e se mantém através de doações e campanhas de sócios, apesar de também contar com funcionários cedidos pelo município. “O bacana é que eles estão conseguindo fazer a coisa funcionar agora. Porque muitas vezes o prédio é restaurado, e inauguram, e ninguém sabe o que fazer porque não tem como manter. Porque custa dinheiro, tem que pagar luz, água, limpeza, qualquer coisa que aconteça dentro, mas a ONG responsável está fazendo o Centro Cultural funcionar”, ressalta a arquiteta Helga.

Encontramos, no prédio, além das salas de música, atelier de pintura, sala de dança, salas de exposições, biblioteca, um auditório para apresentações. Lá ocorrem palestras, shows musicais, peças de teatro. “Ontem tinha teatro de bonecos”, conta Andréa. No auditório, como não era possível modificar a inclinação do chão para não ferir o patrimônio original, estruturas de ferro foram instaladas para sustentar cadeiras em fileiras elevadas para facilitar a visão do público.

Numa das salas, um pedaço da parede deixa à mostra sua estrutura: “Parede: feita com madeira de lei; fibra de coqueiro, palmeira. No meio é resto de entulho – tijolo, telha, com terra, cal e óleo de baleia. Na época não havia cimento, então o óleo de baleia era usado para dar liga na massa. Colocam tudo assim no segundo piso nas divisórias internas para não sobrecarregar o peso da pedra e provocar fissuras embaixo”, explica Andréa. Nas paredes, ornamentos pintados foram restaurados. Numa delas, contudo, vê-se o esboço do que parece ser uma frase que não foi restaurada. Isso porque os frisos entraram no orçamento, mas a frase, que não se sabia da existência, não. E como o custo extrapolou o que se esperava, ela continua ali, semivisível. Andréia diz o que foi escrito na época dos militares a nós: “uma geração passa, outra lhe sucede, e a pátria permanece imutável. Trabalhemos pelo seu engrandecimento”.

Apesar dos sinais de preservação do patrimônio histórico, a contraposição entre conservação e inovação, trazendo consigo as conotações de atraso e progresso, perpassa a trajetória rio-pardense e ainda se manifesta. Eneiva Lima Müller, coordenadora do Centro Cultural, conta-nos sobre sua experiência na preservação patrimonial e como professora de artes: "meus alunos disseram que nós tínhamos que derrubar essas casas velhas e transformar nossa cidade numa cidade moderna, com coisas que as outras cidades possuem. E esse foi meu grande desafio: mostrar para eles que não precisava matar o que era velho, antigo, para ter o novo. E aí eu saí à rua com os alunos a contar a história e a visitar as igrejas e museus, dentro das artes, para termos aulas de pintura, de desenho, dentro desses prédios, para turmas de terceira e quarta séries que eu trabalhava, mostrando os fatos que atraíam a criação da criança. E comecei a trabalhar com outras professoras de artes. Nós fizemos uma primeira manifestação de defesa do patrimônio: foi uma pintura ao redor de todo o campo de futebol da cidade, do estádio, com tintas doadas pela comunidade e por lojas, e a proposta era todinha de defesa do patrimônio, na década de 80. Desde essa época nós estamos discutindo e conscientizando a população para importância do patrimônio”.

Segundo Eneiva, as ações para conservação dos prédios e valorização da cultura local tiveram vários ganhos desde então. “Por exemplo, nós não tínhamos plano diretor até o ano 2000, na cidade. Tudo caía, tudo era derrubado. Então, na década de 90 nós criamos o movimento SOS Rio Pardo, movimento preservacionista de que eu fui vice-presidente. Esse grupo se desfez por causa do não entendimento por parte da administração municipal, na época. Acharam que tinha cunho político. Então nós achamos que se nós nos juntássemos, o grupo, e cada um fosse trabalhar numa área, mas dentro da mesma filosofia, nós teríamos maior ganho. O SOS Rio Pardo batalhou muito. Se estavam mexendo numa casa grande, vinha já minha colega que tinha aluninhos de terceira série para frente da casa, para fazer um ato ali e impedir que demolissem a casa. O que aconteceu foi que a comunidade ficou com medo do SOS Rio Pardo. Então, não mexiam nos casarões com medo da denúncia do SOS. Nós botávamos a boca no trombone. Tinha um colega nosso que corria para a prefeitura, na Secretaria de Obras, e pedia onde estava o alvará de licença para derrubar. Teve um casarão que foram desmanchando na calada da noite para virar um terreno baldio hoje”.

Além da antiga Escola Militar, alguns casarões particulares foram restaurados. “Está começando a consciência. Existem várias famílias que têm casarões antigos que vão conservando à medida do possível. Se pretende conservar 102 cassas. Muita coisa já se perdeu”, afirma Andréa.

A cultura tradicional se manifesta em Rio Pardo nos dias atuais, através da Festa Portuguesa, junto com a qual ocorre a Sonhos de Inverno, em que são elaborados e vendidos os famosos sonhos de origem portuguesa; e da encenação da Paixão de Cristo durante a Semana Santa “A época de maior turismo na cidade é na semana santa. Ano passado, nos três dias de encenação, recebemos em torno de 700 pessoas”, diz Andréa. A riqueza histórica, de mitos e lendas, permanece intacta apesar da decadência territorial e econômica do município. Tranqueira Invicta demonstra também a fortaleza da conservação do patrimônio que não se extinguiu por causa do trabalho de seus cidadãos.

A Visita de D. Pedro II

Em janeiro de 1846, o então imperador D. Pedro II esteve hospedado em Rio Pardo. Era um tempo esplendoroso, o que fez com que, em março do mesmo ano, Rio Pardo fosse elevado à categoria de cidade. O imperador retornou ao município em 1865, na viagem que fez para Uruguaiana em virtude da Guerra do Paraguai, para assistir à rendição das tropas de Solano Lopes. D. Pedro, na primeira visita, ficou hospedado numa casa na esquina da Rua da Ladeira.

A Rua da Ladeira foi a primeira rua calçada do Rio Grande do Sul e foi feita por escravos. É preservada até hoje. Conta-se que a rua foi calçada para a visita de D. Pedro II. A pesquisadora Andréa Severo, contudo, desmente a façanha, mas argumenta em prol da pequena distorção dos fatos: “Foi calçada pelos escravos e continua na cidade, embora uma parte tenha sido removida, mas depois foi tombado pelo seu Biágio Tarantino, primeiro defensor dos patrimônios de Rio Pardo. Na verdade, a rua não foi calçada para a vinda dele, foi um pouco antes por causa do comércio – rua de acesso entre o porto e o centro. Por ser época chuvosa, o barro atrapalhava o tráfego de carroças. Estavam querendo desmanchar toda a rua, e para conseguir o tombamento, seu Biágio enfeita um pouco a história”.

Uma cidade de sonhos e sonhos

Rio Pardo, como toda cidade antiga, é cheia de lendas e contos que são passados pelas suas gerações de habitantes. São histórias míticas ou até reais que ganham a cor dos relatos supersticiosos e oníricos daqueles que as contam, formando uma memória folclórica viva e marcada por traços característicos do Brasil Imperial. Uma das historietas mais representativas é a do escravo guardião, relatada por Ana Maria da Luz, 56 anos, costureira do centro de Rio Pardo. Segundo ela, há quase duzentos anos, havia em Rio Pardo um homem muito rico que adorava contemplar suas moedas de ouro e prata. Mas como não bastasse admirá-las sozinho, o homem destacava o seu escravo de maior confiança para que as lustrasse e, em seguida, os dois saíam de carroça a desfilar pela cidade, exibindo as moedas em um baú a todos os que andavam pelas ruas. Um dia, o homem rico adoeceu e foi desenganado pelo médico, restando-lhe então pouco tempo de vida. Foi aí que ele resolveu mandar que o escravo lustrador enterrasse o seu baú da fortuna em um local do qual ninguém desconfiasse. Terminado o trabalho, o amo matou o escravo e, pouco depois, morreu. Ana Maria conta que o local em que o tesouro havia sido enterrado é hoje onde fica a Praça Barão de Santo Ângelo e que, à noite, pode-se escutar pelas ruas rio-pardenses a alma do escravo perambulando e arrastando o baú cheio ouro e prata.

Um conto que é especialmente figurativo da importância histórica de Rio Pardo é o da passagem do infame corsário Menino Diabo, Antônio Joaquim da Silva, que agia como um pirata pelos rios da região. Em 1836, por ter grande conhecimento da navegação dos rios do Rio Grande do Sul, ele se torna Capitão do Exército Republicano e saqueia a então vila de Rio Pardo, considerada a mais rica de todo o interior do estado, abrindo o caminho para os farrapos. Neste saque, o corsário consegue aumentar ainda mais sua fortuna de jóias e moedas de ouro, acumulando um grande tesouro de fazer inveja a muitos piratas dos mares europeus. No entanto, o domínio farrapo em Rio Pardo cai quando o exército do Coronel Medeiros recupera o controle do vilarejo. Por conta da derrota, o Menino Diabo resolve que não vai deixar suas relíquias para os imperiais e as enterra em um local totalmente incerto. Dizia-se que era nas proximidades do Barro Vermelho ou de alguma lagoa em volta do rio Jacuí. O fato é que, em 1958, uma ponte sobre o Jacuí começou a ser erguida, e os operários que trabalharam na construção instalaram seu acampamento próximo à lagoa do Buff, perto do canteiro de obras. Em um dado momento do verão, a lagoa quase secou e os homens notaram em seu fundo um ataúde atolado no barro, preso por uma grossa corrente que tentaram puxar com toda força. A corrente não cedia e o nível da lagoa voltou a subir, fazendo com que os trabalhadores desistissem de resgatar a misteriosa arca. Muitos crêem que nela estaria o tesouro do Menino Diabo que supostamente continua lá, nas profundezas da lagoa do Buff.

Outra história que é conhecida por toda cidade é a do Monge do Botucaraí que, segundo nos contou Eneiva Lima Müller, coordenadora do Centro Cultural Rio Pardo, realmente aconteceu. Por volta de 1850, um monge que vivia no morro do Botucaraí costumava ir ao adro da Igreja Matriz onde reunia o povo para pregação, reprovando os costumes e modas da época e aconselhando que os preceitos morais católicos fossem seguidos de forma irrestrita. As falas extremadas do monge não agradavam a algumas famílias locais, e dentre elas estava a do Brigadeiro José Joaquim de Andrade Neves, Barão do Triunfo. O brigadeiro chegou a dizer que, se o monge fosse à Igreja dos Passos pronunciar-se, acabaria apanhando uma surra. O religioso resolveu desafiar a advertência e recebeu umas bengaladas do militar, sendo obrigado a deixar a cidade montado em uma mula, com as costas viradas para a frente do eqüino. Foi então que o monge lançou uma praga sobre a cidade, profetizando: “Rio Pardo não verá progresso enquanto por aqui existir algum membro desta família”. Eneiva relata que durante muito tempo associou-se a estagnação de Rio Pardo depois do declínio das atividades comerciais e das linhas ferroviárias à famosa praga rogada pelo monge. “Mas hoje isto já foi superado e a tranqueira foi aberta”, conta ela que também é pesquisadora da história do município e grande ativista na preservação patrimonial, fazendo referência à interpretação que se fazia do lema da cidade. “Estamos livres da praga e os familiares do Andrade Neves continuam por aí”, acrescenta Eneiva.

Mas certamente, a história mais deliciosa de Rio Pardo é a dos sonhos, quitutes de origem luso-açoriana, que fizeram fama pelo Rio Grande do Sul. Conta-se que uma senhora chamada Lucília Lisboa Fischer tinha uma irmã que vivia em Portugal e que tinha o costume de ir até a tranqueira para passar o Natal com seus entes queridos do Brasil. Numa dessas visitas, em torno do ano de 1865, ela trouxe consigo uma receita de sonhos portugueses que eram quitutes especialmente preparados em época de festas natalinas na Europa. Para rememorar as tradições lusitanas, a família então promovia chás em que se saboreavam os nobres sonhos, feitos com muitos ovos e com um processo de fritura lento e bastante detalhado, que fazia com que crescessem e ficassem macios e apetitosos. Logo, tanto o aroma da iguaria quantos os comentários sobre seu sabor surpreendente percorreram toda a Rio Pardo fazendo com que todos quisessem provar o doce, tornando a receita cobiçada por todas as senhoras da cidade. Mais tarde, a família Lisboa Fischer passa a administrar o restaurante da Estação Férrea de Rio Pardo, e lá são comercializados os sonhos especiais para todos os que estavam de passagem. Quando o trem estava por chegar à estação, anunciava-se aos passageiros os famosos “Sonhos de Rio Pardo”, vendidos em latas decoradas que seguiam os mais diversos destinos, indo da fronteira em Uruguaiana até a leal e valerosa Porto Alegre.

A trajetória dos sonhos rio-pardenses prossegue na década de 1960 com a família de Biágio Tarantino, grande conhecedor e defensor da importância histórica da cidade, que passa a servi-los aos jornalistas, repórteres, artistas e outros visitantes que participavam das comemorações da aclamada Semana Santa. Depois, com a fundação da Casa do Turista, os sonhos passaram a ser comercializados durantes todo o ano e hoje ele pode ser encontrado no café do Centro Cultural da cidade, feito dentro de todos os conformes e especificações da receita original, sempre frescos e saborosos, e também no “Sonhos de Inverno”, um evento promovido juntamente com o festival da cultura luso-açoriana, que em sua última edição vendeu cerca de 20 mil sonhos para todos os que compareceram.

Carnaval, política e futebol

Em busca de informações sobre o cotidiano e as curiosidades próprias do comportamento dos rio-pardenses, fomos até a rádio da cidade, a Rádio Rio Pardo, pertencente ao Grupo Gazeta, conversar com aqueles que trabalham com o dia-a-dia e os acontecimentos da cidade. Círio Cigano, gerente da rádio, e Luis Carlos Figueiró, narrador e apresentador, nos contaram sobre quais são as paixões do povo de Rio Pardo e, dentre elas, a que mais chama a atenção é o Carnaval. Cigano relata que todos os anos a festa mobiliza um grande número de pessoas para preparar os desfiles, os temas, os sambas e por a vibração na Rua Andrade Neves. Os blocos sempre desfilam com muitos componentes e a festa tem atraído cerca de 50 mil pessoas nos últimos anos. Figueiró diz que há uma grande rivalidade entre as escolas de samba e que esta tensão é antiga. “Já teve carnavais em que, quando anunciaram os resultados dos vencedores, os insatisfeitos jogaram marmelada para protestar”, conta o radialista. Outro detalhe importante que eles informam é que, durante o período do Carnaval, a rádio é ouvida em toda a Rua Andrade de Neves, pois os alto-falantes ficam ligados nos postes da rua principal a todo vapor. “É o período em que todos querem anunciar”, fala com entusiasmo o gerente. O carnaval de Rio Pardo entrou, neste ano, para o rol de eventos apoiados pela Lei Federal de Incentivo À Cultura, a Lei Rouanet, com o projeto do 'Carnaval de Bonecos de Rua de Rio Pardo', cujos membros mais ilustres são os bonecos Joaquim do Samba, Manoel do Carnaval e Maria da Folia, ligando a cultura luso-açoriana à brasileira.

E quando o assunto é o orgulho das raízes lusitanas, Cigano e Figueiró afirmam em uníssono que em Rio Pardo as pessoas gostam de ostentar suas origens. Não é para menos, já que a todo lugar que se vá podemos encontrar os galos, símbolos portugueses, e as construções com belas platibandas e azulejos. Perguntamos se não existe uma certa rivalidade com os vizinhos de Santa Cruz do Sul, a cidade economicamente mais importante e influente da região atualmente, cuja maioria dos habitantes é descendente dos imigrantes alemães das levas de colonização do século XIX. “Não há como comparar Santa Cruz com Rio Pardo pois as cidades têm tamanhos diferentes e desenvolvimentos diferentes”, responde Figueiró. “Em Santa Cruz é possível encontrar quase tudo que se queira, já em Rio Pardo não é assim, o que também não significa que a nossa cidade seja tão pequena, pois há municípios muito menores e menos expressivos que o nosso” complementa Cigano.

Em nossa conversa, relembramos a todo o momento o quão importante Rio Pardo já foi no passado do Rio Grande do Sul e como isso foi mudando ao decorrer da história. Eles nos contam que, até a chegada do trem, o centro de tudo era a cidade, pois ali ficava o porto do rio que dá nome à localidade e por ali passavam todas as cargas e pessoas que transitavam de um lado para o outro da fronteira sul do Brasil. Com as ferrovias, Rio Pardo vê surgir várias cidades ao longo da linha do trem e elas começam a prosperar, roubando um pouco do brilho da estrela, antes única, mas que continuava ainda dominante.

Artistas, intelectuais, personalidades de vários locais ainda iam a Rio Pardo, que detinha uma das principais estações férreas do estado. Mas, quando os rumos da política de transportes do país muda e os trens são deixados de lado em prol das rodovias, a cidade começa a decair rapidamente, chegando a um momento de dura estagnação. Questionamos como anda a situação hoje e Cigano nos conta que uma melhoria tecnológica em setores da indústria e uma preocupação cultural maior estão fazendo Rio Pardo alçar um novo vôo que pode fazê-la voltar a ocupar um lugar de destaque. As administrações da cidade têm se preocupado em criar infra-estrutura e dar suporte à iniciativa privada para a implantação de atividades que gerem renda para os habitantes. A renda é outro aspecto interessante no quadro da Rio Pardo dos tempos atuais. A população média da cidade tem um ganho mensal muito baixo comparado ao de outras localidades. Em Santa Cruz do Sul há muito mais riqueza e muito mais oportunidades, por exemplo. Figueiró e Cigano afirmam que é preciso investir na cidade para que haja mais trabalho e mais produção.

Passando para um assunto mais ameno, começamos a falar sobre futebol. Perguntamos para quais times torcem os rio-pardenses e a resposta é simples: Grêmio e Inter. Cigano conta que em dias de Grenal os ânimos se agitam na cidade, que é apaixonada pelos grandes clubes porto-alegrenses, e que a cobertura da rádio não perde uma notícia sobre os dois times, ainda que tanto ele quanto o Figueiró sejam gremistas de coração. Queremos saber se por acaso não há quem torça para outros times como o Juventude ou o Caxias, mas Cigano logo rebate que “aqui não se torce para time da serra, a menos um e outro que são de lá mas vivem por aqui”. Figueiró explica que, como não há times expressivos na cidade principalmente pela questão da falta de verba, os torcedores vivenciam o futebol através dos clubes da capital, mas ainda assim, existem algumas equipes que fazem o campeonato local como o Cometa. Mas geralmente os times rio-pardenses não passam da segunda divisão, como ocorreu com o Náutico e o Operário. Nem por isso, a cidade desanima com o esporte já que há muita vibração, sobretudo quando há jogos da seleção em tempos de Copa do Mundo.

Um dia em Rio Pardo

Passar um dia na pequena cidade histórica pode ser um programa excelente para quem quer conhecer mais sobre a história do Rio Grande do Sul e ver a influência portuguesa na formação da cultura do estado. Além disso, é extremamente agradável andar pelas ruas da pacata Rio Pardo, cujo trânsito nunca é frenético e a única sinaleira que há no município dá conta de regular algum eventual encontro de carros no cruzamento mais movimentado da cidade. Fazer um piquenique em uma das praças, visitar os prédios históricos e conferir um comércio que faz uma pausa na hora do meio-dia, costume já perdido há muito tempo nas grandes cidades, é uma experiência atípica que pode ser muito prazerosa, já que Rio Pardo não é apenas uma cidade pequena, é também muito charmosa e cheia de monumentos que convidam a uma viagem imaginária num tempo em que o Brasil ainda tinha rei e que as melhores fazendas, assim como as receitas dos melhores quitutes, vinham de além-mar.

Saindo de Porto Alegre, pode-se pegar a BR-290 e entrar, depois de Pântano Grande, na direção norte da RS-471. A saída para Rio Pardo fica em um trevo cerca de 30 quilômetros antes de Santa Cruz do Sul e é fácil de identificar. Uma vez no trevo, não há erro: é só seguir em frente que se chega à Rua Andrade Neves, a principal da cidade. É prático deixar o carro estacionado em alguma rua perpendicular à principal e fazer o passeio a pé. Também é possível chegar a Rio Pardo com os ônibus intermunicipais que partem das rodoviárias de várias localidades do estado.

É fascinante caminhar pela rua principal de Rio Pardo e conferir as fachadas tipicamente luso-açorianas. Ao decorrer do passeio, é possível identificar os diversos prédios históricos que abrigaram personagens importantes como Dom Pedro II, o Conde D'Eu e a Princesa Isabel. Nesta rua estão os principais estabelecimentos comerciais e serviços públicos, e é aqui que se pode ver o cotidiano dos rio-pardenses, identificando costumes e hábitos. Uma das manias de quem é de lá é aproveitar para tomar um sorvete na rua principal, então faça como eles e tente passar por um luso-descendente local.

O Museu Zoológico é uma pérola encontrada na própria rua principal. Sua importância começa no prédio construído em 1829, que foi uma das primeiras câmaras municipais do Brasil, e resguarda tanto em sua fachada quanto em seu interior as características originais da arquitetura luso-açoriana. Hoje, o espaço abriga uma coleção de animais empalhados provenientes de diversas partes do mundo. A orientadora das visitas, Luciana Margarete de Oliveira, nos explicou que há exemplares raros como araras típicas da região amazônica, pássaros europeus, répteis da região e, é claro, o galo português. Trata-se de uma coleção antiga de cerca de 400 peças que pertenciam a Áureo Muller, Tenente da Força Expedicionária Brasileira, que foi adquirida por um valor simbólico pela prefeitura municipal para compor o acervo do museu. As empalhações foram feitas quando a taxidermia ainda podia ser feita no país com animais que não haviam morrido de causas naturais. Recentemente, o museu enviou um projeto à Petrobrás buscando apoio para fazer a restauração das peças. Prestigie o museu e deixa sua assinatura no livro de visitas, manifestando o apoio e juntando-se à lista internacional de visitantes provenientes de outros países latino-americanos e europeus.

A Secretaria da Cultura é o local certo para pedir informações sobre a cidade. Fomos extremamente bem recebidos por José Alberto Moreira da Silva, o Betinho, que vai poder encaminhar os visitantes aos lugares mais adequados aos seus interesses. Pegue alguns impressos sobre a cidade que contêm lindas fotografias e textos muito bem elaborados. Lá também se encontram os bonecos de pano lusitanos, sobre as escrivaninhas do recinto, carregando sorridentes bandeiras de Rio Pardo e de Portugal.

O ponto mais alto da visita a Rio Pardo é a Rua da Ladeira, a primeira a ser calçada no Rio Grande do Sul. Construída em 1813 pelos escravos, a rua foi idealizada conforme a Via Appia Romana, com escoamento no centro. Seu calçamento facilitava a subida das cargas chegadas pelo Rio Pardo ao centro da cidade. Ela foi tombada como patrimônio histórico nacional em 1954. Caminhar por esta rua é como viajar para o período colonial, sentindo a emoção de voltar na história do Brasil.

A Igreja Matriz Nossa Senhora do Rosário é uma das poucas igrejas do Rio Grande do Sul que preserva com tanta dignidade os elementos da arquitetura barroca, típica do período colonial. Inaugurada em 1801, ela possui as célebres sacadas onde a elite se sentava para não se misturar com o povo e conta com uma imagem original do Senhor Morto, em tamanho natural. Era em frente a esta igreja que o monge da lenda da praga sobre Rio Pardo fazia suas pregações. Descendo até às margens do Rio Pardo é que se conhece o rio que dá nome à cidade, pelo qual transitavam todas as pessoas e mercadorias que atravessavam a fronteira sul do país. O nível das águas costuma ser alto e se pode observar a correnteza. Recentemente, a prefeitura municipal instalou uma imagem da Virgem Maria próxima ao leito, local em que muitos fiéis católicos fazem preces.

Termine o dia visitando o Centro Cultural, também chamado por lá de Casa de Cultura. Ele se encontra no prédio que abrigava a Escola Militar da cidade e foi recentemente recuperado por um esmerado trabalho em conjunto da comunidade. Veja a exposição cativa no andar inferior com as fardas dos Dragões e os objetos utilizados pelos militares. A equipe do Centro está sempre desenvolvendo uma exposição diferente no salão superior, geralmente retratando algum célebre rio-pardense. Confira a programação de eventos teatrais e palestras, pois há muita coisa ocorrendo no Centro. Desça ao café e aproveite para experimentar o verdadeiro sonho de Rio Pardo assistindo pelas grandes vidraças ao trabalho das senhoras que fazem aulas de pintura promovidas no salão ao lado. As obras produzidas são delicadas e encantadoras. Ao sair, não esqueça de fazer uma foto do vitral acima da porta de entrada, tipicamente lusitano recuperado com extrema maestria, uma característica marcante deste prédio que é capaz de sintetizar o colorido e a simpatia da tranqueira invicta.

Qual a cidade mais próxima do Rio Pardo?

MUNICÍPIOS LIMÍTROFES: Montezuma, Vargem Grande do Rio Pardo, Indaiabira, Taiobeiras, Salinas, Novorizonte, Fruta de Leite, Serranópolis de Minas e Mato Verde.

Em que região fica Rio Pardo RS?

RIO PARDO é um município do RIO GRANDE DO SUL, pertencendo à MESORREGIÃO GEOGRÁFICA DO CENTRO ORIENTAL RIO-GRANDENSE, que é composta por 54 municípios, agrupada em três microrregiões.

Para que lado fica Rio Pardo?

O rio Pardo é um rio brasileiro afluente de margem esquerda do rio Grande, que banha os estados de Minas Gerais e São Paulo. Sua nascente localiza-se no município de Ipuiúna, sul de Minas Gerais, passando pelos municípios de Santa Rita de Caldas, Caldas, Campestre, Bandeira do Sul, Poços de Caldas e Botelhos.

Quais os municípios que fazem parte do Vale do Rio Pardo?

Os vinte e três municípios que atualmente constituem o Corede do Vale do Rio Pardo são os seguintes: Arroio do Tigre, Boqueirão do Leão, Candelária, Encruzilhada do Sul, Estrela Velha, General Câmara, Herveiras, Ibarama, Lagoa Bonita do Sul, Mato Leitão, Pantano Grande, Passa Sete, Passo do Sobrado, Rio Pardo, Santa ...