O Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens pdf

O objetivo deste trabalho monográfico é estudar as origens e os fundamentos da virtude e da justiça, bem como a função que esses conceitos desempenham no sistema político-filosófico de Jean-Jacques Rousseau. Antes de reconstruirmos a narrativa de Rousseau acerca do pacto de associação ou do ato de constituição do corpo moral e coletivo, percorremos brevemente a trajetória arqueológica da história humana traçada pelo filósofo genebrino em sua obra Segundo discurso, a saber: o estado puro de natureza; a idade de ouro; e o início da sociedade civil. Em seguida, com base no Contrato social, fazemos uma rápida abordagem do sistema político idealizado por Rousseau em relação às exigências morais que a vida social supõe. Essa abordagem é conduzida sob o ponto de vista de um dos conceitos mais axiais de sua obra, a vontade geral. Uma vez compreendido este conceito de vontade geral, o colocamos em relação com as noções de virtude e de justiça, sob a perspectiva do Contrato social. Por último, mas nem por isso menos importante, discutimos sobre os modos de adesão do indivíduo aos preceitos da justiça. A adesão moral do cidadão será discutida com o auxílio da Profissão de Fé do Vigário Saboiano, no capítulo IV do Emílio. Realizada esta etapa, passaremos então às considerações finais sobre as ideias e funções da justiça no sistema político-filosófico de Rousseau.

ads:

O Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens pdf

DISCURSO

SOBRE ESTA QUESTÃO PROPOSTA PELA ACADEMIA DE DIJON:

QUAL É A ORIGEM DA DESIGUALDADE ENTRE OS HOMENS, E SE É AUTORIZADA

PELA LEI NATURAL

Jean-Jacques Rousseau

ÍNDICE

APRESENTAÇÃO

BIOGRAFIA DO AUTOR

DEDICATÓRIA

À Repúlica de Genebra

PREFÁCIO

Discurso sobre a origem da desigualdade

file:///C|/site/livros_gratis/origem_desigualdades.htm (1 of 64) [11/10/2001 19:05:32]

ads:

O Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens pdf

Livros Grátis

http://www.livrosgratis.com.br

Milhares de livros grátis para download.

O Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens pdf

DISCURSO SOBRE A DESIGUALDADE

PRIMEIRA PARTE

SEGUNDA PARTE

ADVERTÊNCIA SOBRE AS NOTAS

NOTAS

APRESENTAÇÃO

Nélson Jahr Garcia

Rousseau, com os seus companheiros enciclopedistas e da maçonaria, nos ensinou a respeitar o ser

humano, amar a natureza e a sentir paixão pela liberdade. Foi devido a essa influência, pelo menos em

parte, que lutamos contra o jugo português, proclamamos a República, enfrentamos a ditadura do Estado

Novo e o regime militar. Aprendemos também a defender as florestas, os animais, a vida enfim.

Em "Sobre a origem da desigualdade", Rousseau mostra o caminho histórico percorrido pelo ser

humano, passando do estado de natureza para o estado civilizado. Discute as contradições e

antagonismos que permearam esse processo e defende a volta ao estado natural, sob novas formas.

Suas concepções sobre o Direito Natural, no Prefácio, são brilhantes.

A conclusão final nos leva a pensar e, espero, a agir um dia:

"Essa distinção determina suficientemente o que se deve pensar, nesse sentido, da espécie de

desigualdade que reina entre todos os povos policiados, pois é manifestamente contra a lei da natureza,

de qualquer maneira que a definamos, que uma criança mande num velho, que um imbecil conduza um

homem sábio, ou que um punhado de pessoas nade no supérfluo, enquanto à multidão esfomeada falta o

necessário".

Liberdade também se aprende, com Rousseau o caminho é mais breve.

BIOGRAFIA DO AUTOR

ean-Jacques Rousseau nasceu em Genebra no ano de 1712 e morreu no de 1778.

Dotado de excepcionais qualidades de inteligência e imaginação, foi ele um dos

maiores escritores e filósofos do seu tempo. Em suas obras, defende a idéia da volta à

natureza, a excelência natural do homem, a necessidade do contrato social para garantir os

direitos da coletividade. Seu estilo, apaixonado e eloqüente, tornou-se um dos mais

poderosos instrumentos de agitação e propaganda das idéias que haviam de constituir,

mais tarde, o imenso cabedal teórico da Grande Revolução de 1789-93. Ao lado de Diderot, D'Alembert

Discurso sobre a origem da desigualdade

file:///C|/site/livros_gratis/origem_desigualdades.htm (2 of 64) [11/10/2001 19:05:32]

ads:

O Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens pdf

e tantos outros nomes insignes que elevaram, naquela época, o pensamento científico e literário da

França, foi Rousseau um dos mais preciosos colaboradores do movimento enciclopedista. Das suas

numerosas obras, podem citar-se, dentre as mais notáveis: Júlia ou A Nova Heloísa (1761), romance

epistolar, cheio de grande sentimentalidade e amor à natureza; O Contrato Social (1762), onde a vida

social é considerada sobre a base de um contrato em que cada contratante condiciona sua liberdade ao

bem da comunidade, procurando proceder sempre de acordo com as aspirações da maioria; Emílio ou Da

Educação (1762), romance filosófico, no qual, partindo do princípio de que "o homem é naturalmente

bom" e má a educação dada pela sociedade, preconiza "uma educação negativa como a melhor, ou antes,

como a única boa"; As Confissões, obra publicada após a morte do autor (1781-1788), e que é uma

autobiografia sob todos os pontos-de-vista notável.

Quanto ao Discurso, aqui editado, composto em 1753 para responder à questão proposta pela

Academia de Dijon, isto é: A Origem da Desigualdade entre os Homens, era a obra de Rousseau, como

ele próprio informa nas suas Confissões, que o seu genial contemporâneo Diderot mais apreciava. Eis aí

o melhor elogio que se poderia fazer da presente edição.

DISCURSO

SOBRE ESTA QUESTÃO PROPOSTA PELA ACADEMIA DE DIJON:

QUAL É A ORIGEM DA DESIGUALDADE ENTRE OS HOMENS, E SE É AUTORIZADA

PELA LEI NATURAL

DEDICATÓRIA

À República de Genebra

AGNIFICOS, MUITO HONRADOS E SOBERANOS SENHORES,(1)

Convencido de que só ao cidadão virtuoso cabe dar à sua pátria as honras que ela

possa reconhecer, há trinta anos que trabalho para ter o mérito de vos oferecer uma

homenagem pública; e essa feliz ocasião suprindo em parte o que meus esforços não

puderam fazer, acreditei que me seria permitido consultar aqui o zelo que me anima, mais do que o

direito que deveria autorizar-me. Tendo tido a felicidade de nascer entre vós, como poderia eu meditar

sobre a igualdade que a natureza pôs entre os homens e sobre a desigualdade que eles instituíram, sem

pensar na profunda sabedoria com a qual uma e outra, felizmente combinadas nesse Estado, concorrem,

da maneira mais próxima da lei natural e mais favorável à sociedade, para a manutenção da ordem

pública e para a felicidade dos particulares? Procurando as melhores máximas que o bom senso possa

ditar sobre a constituição de um governo, fiquei tão impressionado ao vê-las todas em execução no

vosso, que, mesmo sem ter nascido dentro dos vossos muros, achei que não poderia dispensar-me de

oferecer este quadro da sociedade humana àquele de todos os povos que me parece possuir as maiores

vantagens delas e ter melhor prevenido os seus abusos.

Discurso sobre a origem da desigualdade

file:///C|/site/livros_gratis/origem_desigualdades.htm (3 of 64) [11/10/2001 19:05:32]

Se eu tivesse de escolher o lugar do meu nascimento, teria escolhido uma sociedade de grandeza

limitada pela extensão das faculdades humanas, isto é, pela possibilidade de ser bem governada, e onde,

bastando-se cada qual ao seu mister, ninguém fosse constrangido a atribuir a outros as funções de que

estivesse encarregado; um Estado em que, todos os particulares se conhecendo entre si, nem as manobras

obscuras do vício, nem a modéstia da virtude pudessem subtrair-se aos olhares e ao julgamento do

público, e em que esse doce hábito de se ver e de se conhecer fizesse do amor da pátria o amor dos

cidadãos, em vez do da terra.

Eu quisera nascer num país em que o soberano e o povo só pudessem ter um único e mesmo interesse,

a fim de que todos os movimentos da máquina tendessem sempre unicamente à felicidade comum; como

isso só poderia ser feito se o povo e o soberano fossem a mesma pessoa, resulta que eu quisera nascer sob

um governo democrático, sabiamente moderado.

Eu quisera viver e morrer livre, isto é, de tal modo submetido às leis que nem eu nem ninguém

pudesse sacudir o honroso jugo, esse jugo salutar e doce, que as cabeças mais altivas carregam tanto mais

docilmente quanto são feitas para não carregar nenhum outro.

Eu quisera, pois, que ninguém, no Estado, pudesse dizer-se acima da lei, e que ninguém, fora dele,

pudesse impor alguma que o Estado fosse obrigado a reconhecer; de fato, qualquer que possa ser a

constituição de um governo, se neste se encontra um só homem que não esteja submetido à lei, todos os

outros ficam necessariamente à discrição deste último: e, havendo um chefe nacional e outro estrangeiro,

qualquer que seja a partilha da autoridade que possam fazer, é impossível que ambos sejam bem

obedecidos e o Estado bem governado.

Eu não quisera habitar uma república de nova instituição, por muito boas que fossem as leis que

pudesse ter, de medo de que, constituído o governo de outra maneira, talvez, que não a exigida pelo

momento, não convindo aos novos cidadãos, ou os cidadãos ao novo governo, ficasse o Estado sujeito a

ser abalado e destruído quase desde o seu nascimento; porque a liberdade é como esses alimentos sólidos

e suculentos, ou esses vinhos generosos, próprios para nutrir e fortificar os temperamentos robustos a

eles habituados, mas que inutilizam, arruinam, embriagam os fracos e delicados, que a ele não estão

afeitos. Os povos, uma vez acostumados a senhores, não podem mais passar sem eles. Se tentam sacudir

o jugo, afastam-se tanto mais da liberdade quanto, tomando por ela uma licença desenfreada que lhe é

oposta, suas revoluções os entregam quase sempre a sedutores que só fazem agravar as suas cadeias. O

próprio povo romano, modelo de todos os povos livres, não foi capaz de se governar ao sair da opressão

dos Tarquínios. Aviltado pela escravidão e os trabalhos ignominiosos que lhe foram impostos, não

passava, primeiro, de uma estúpida populaça que foi preciso conduzir e governar com a maior sabedoria,

a fim de que, acostumando-se pouco a pouco a respirar o ar salutar da liberdade, as almas enervadas, ou

antes, embrutecidas pela tirania, adquirissem gradativamente a severidade de costumes e a altivez de

coragem que as tornaram, finalmente, o mais respeitável dos povos. Eu teria, pois, procurado, como

pátria, uma feliz e tranqüila república cuja antigüidade se perdesse de certo modo na noite dos tempos,

que não tivesse experimentado senão golpes próprios para manifestar e consolidar nos seus habitantes a

coragem e o amor da pátria, e onde os cidadãos, acostumados de longa data a uma sábia independência,

fossem não somente livres, mas dignos de o ser.

Eu quisera escolher para mim uma pátria desviada, por uma feliz impossibilidade, do feroz amor das

conquistas e preservada, por uma posição ainda mais feliz, do temor de tornar-se a conquista de outro

Discurso sobre a origem da desigualdade

file:///C|/site/livros_gratis/origem_desigualdades.htm (4 of 64) [11/10/2001 19:05:32]

Estado; uma cidade livre, colocada entre muitos povos, nenhum dos quais tivesse interesse em invadi-la e

cada um dos quais tivesse interesse em impedir que outros a invadissem; uma república, em uma palavra,

que não fosse tentada pela ambição dos seus vizinhos e pudesse razoavelmente contar com o socorro

destes quando necessário. Conclui-se daí que, em posição tão feliz, ela não teria que temer senão a si

mesma, e que, se os seus cidadãos fossem exercitados nas armas, seria antes para entreter entre eles o

ardor guerreiro e a altivez de coragem, que ficam tão bem à liberdade e que nutrem o gosto dela, do que

pela necessidade de assegurar a própria defesa.

Eu teria procurado um país no qual o direito de legislação fosse comum a todos os cidadãos; porque,

quem melhor do que eles pode saber sob que condições lhes convém viver juntos em uma mesma

sociedade? Mas, eu não aprovaria plebiscitos semelhantes aos de Roma, em que os chefes de Estado e os

mais interessados na sua conservação eram excluídos das deliberações, das quais muitas vezes dependia

sua salvação, e onde, por uma absurda inconseqüência, os magistrados eram privados dos direitos de que

gozavam simples cidadãos.

Ao contrário, eu quisera que, para suspender os projetos interesseiros e mal concebidos e as inovações

perigosas que acabaram perdendo os atenienses, cada qual não tivesse o poder de propor novas leis

segundo a sua fantasia; que esse direito coubesse apenas aos magistrados; que estes usassem dele com

tanta circunspecção, o povo, por sua vez, fosse tão reservado em dar o seu consentimento a essas leis, e a

sua promulgação só pudesse ser feita com tanta solenidade que, antes da constituição ser abalada, todos

tivessem tempo para se convencer de que é sobretudo a grande antigüidade das leis que as torna santas e

veneráveis, pois que o povo logo despreza as que vê mudar todos os dias e, pelo hábito de negligenciar

os antigos usos, sob o pretexto de fazer melhores, são introduzidos muitas vezes grandes males para

corrigir menores.

Eu teria fugido principalmente de uma república na qual um povo, como necessariamente mal

governado, acreditando poder passar sem magistrados ou lhes deixar apenas uma autoridade precária,

imprudentemente se tivesse reservado a administração dos negócios civis e a execução de suas próprias

leis: assim, deve ter sido a grosseira constituição dos primeiros governos ao saírem imediatamente do

estado de natureza; e tal foi ainda um dos vícios que perderam a república de Atenas.

Mas, eu teria escolhido aquela na qual os particulares, contentando-se em dar sanção às leis e em

decidir pessoalmente, com o testemunho dos chefes, os mais importantes negócios públicos,

estabelecessem tribunais respeitados, distinguissem cuidadosamente os seus diversos departamentos,

elegessem todos os anos os mais capazes e os mais íntegros dentre os seus concidadãos para administrar

a justiça e governar o Estado, e na qual, sendo a virtude dos magistrados testemunho da sabedoria do

povo, uns e outros se honrassem mutuamente. De sorte que, se jamais funestos mal entendidos viessem

perturbar a concórdia pública, até tempos de cegueira e de erros fossem marcados por testemunhos de

moderação, de estima recíproca e de comum respeito às leis, presságios e garantias de reconciliação

sincera e perpétua

Tais são, MAGNÍFICOS, MUITO HONRADOS E SOBERANOS SENHORES, as vantagens que eu

teria procurado na pátria que tivesse escolhido. E, se a Providência a isso tivesse acrescentado ainda uma

situação encantadora, um clima temperado, um país fértil e o aspecto mais delicioso que há sob o céu, eu

não teria desejado, para cumular a minha felicidade, senão gozar de todos esses bens no seio dessa pátria

feliz, vivendo pacificamente em uma doce sociedade com os meus concidadãos, exercendo para com

Discurso sobre a origem da desigualdade

file:///C|/site/livros_gratis/origem_desigualdades.htm (5 of 64) [11/10/2001 19:05:32]

eles, a seu exemplo, a humanidade, a amizade e todas as virtudes, e deixando, depois da minha morte, a

memória de um homem de bem e de um honesto e virtuoso patriota.

Se, menos feliz ou sábio tarde demais, fosse reduzido a acabar em outros climas uma doentia e abatida

carreira, lastimando inutilmente o repouso e a paz das quais uma mocidade imprudente me tivesse

privado, eu teria pelo menos nutrido em minha alma esses mesmos sentimentos de que não teria podido

fazer uso em meu país; e, penetrado de uma afeição terna e desinteressada por meus concidadãos

longínquos, eu lhes teria dirigido do fundo do coração, pouco mais ou menos o seguinte discurso:

Meus queridos concidadãos, ou antes, meus irmãos, pois que os laços do sangue, assim como as leis,

nos unem a quase todos, é-me agradável não pensar em vós sem pensar ao mesmo tempo em todos os

bens de que gozais e cujo preço talvez nenhum de vós avalie tão bem como eu que os perdi. Quanto mais

reflito sobre a vossa situação política e civil, menos posso imaginar que a natureza das coisas humanas

possa comportar melhor. Em todos os outros governos, quando se trata de assegurar o maior bem do

Estado, tudo se limita sempre a projetos em idéias e, quando muito, a simples possibilidades: quanto a

vós, vossa felicidade está feita, é só gozá-la; e não tendes mais necessidade, para vos tornardes

perfeitamente felizes, senão de saber vos contentar em o ser. Vossa soberania, adquirida ou

reconquistada a ponta de espada, e conservada durante dois séculos à força de valor e de sabedoria, está

enfim plena e universalmente reconhecida. Tratados honrosos fixam os vossos limites, asseguram os

vossos direitos e solidificam o vosso repouso. Vossa constituição é excelente, ditada pela mais sublime

razão e garantida por potências amigas e respeitáveis; vosso Estado é tranqüilo; não tendes guerras nem

conquistadores que temer; não tendes outros senhores além das sábias leis que fizestes, administradas por

íntegros magistrados da vossa escolha; não sois nem bastante ricos para vos enervardes pelo ócio e

perderdes em vãs delícias o gesto da verdadeira felicidade e das sólidas virtudes, nem bastante pobres

para terdes necessidade ainda de socorro estrangeiro que não vo-lo proporcione a vossa indústria; e essa

liberdade preciosa, só mantida nas grandes nações à custa de impostos exorbitantes, quase nada vos custa

conservar.

Possa durar sempre, para a felicidade dos seus cidadãos e o exemplo dos povos, uma república tão

sabiamente e com tanta felicidade constituída! Eis o único voto que vos resta fazer, e o único cuidado

que vos resta tomar. Cabe-vos, doravante, não fazer a vossa felicidade, porque vossos ancestrais vos

evitaram esse trabalho, mas torná-la durável pela sabedoria de bem aproveitá-la. É da vossa união

perpétua, da vossa obediência às leis, do vosso respeito aos seus ministros que depende a vossa

conservação. Se resta, entre vós, o menor germe de azedume ou de desconfiança, apressai-vos em

destruí-lo, como fermento funesto de onde resultariam, cedo ou tarde, as vossas desgraças e a ruína do

Estado. Conjuro-vos a penetrar todos no fundo do vosso coração e a consultar a voz secreta da vossa

consciência. Alguém dentre vós conhece, no universo, corpo mais íntegro, mais esclarecido, mais

respeitável do que o da vossa magistratura? Todos os seus membros não vos dão o exemplo da

moderação, da simplicidade de costumes, do respeito às leis e da mais sincera reconciliação? Depositai,

pois, sem reservas, em tão sábios chefes essa confiança salutar que a razão deve à virtude; pensai que

eles são da vossa escolha, que a justificam, e que as honras devidas aos que constituístes em dignidade

recaem necessariamente sobre vós mesmos. Nenhum de vós é tão pouco esclarecido para ignorar que

onde cessam o vigor das leis e a autoridade dos seus defensores, não pode haver segurança nem liberdade

para ninguém. De que se trata, pois, entre vós, se não de fazer de boa vontade e com justa confiança o

que seríeis sempre obrigados a fazer por verdadeiro interesse, por dever e pela razão? Que uma culpável

e funesta indiferença pela manutenção da constituição não vos faça jamais negligenciar, quando

Discurso sobre a origem da desigualdade

file:///C|/site/livros_gratis/origem_desigualdades.htm (6 of 64) [11/10/2001 19:05:32]

necessários, os sábios conselhos dos mais esclarecidos e dos mais zelosos dentre vós; mas, que a

equidade, a moderação, a mais respeitosa firmeza continuem a regular todos os vossos passos, e a

mostrar em vós, a todo o universo, o exemplo de um povo altivo e modesto, tão cioso da sua glória como

da sua liberdade. Tende cuidado, principalmente, e este será meu último conselho, em não ouvir jamais

interpretações sinistras e discursos envenenados, cujos motivos secretos são, muitas vezes, mais

perigosos do que as ações que são o seu objeto. Toda uma casa desperta e se conserva em alarma aos

primeiros gritos de um bom e fiel guarda que só late quando se aproximam os ladrões; mas, ninguém

gosta da importunação desses animais barulhentos que perturbam sem cessar o repouso público e cujas

advertências contínuas e fora de propósito não se fazem ouvir no momento em que são necessárias E vós,

MAGNÍFICOS E MUITO HONRADOS SENHORES, vós, dignos e respeitáveis magistrados de um

povo livre, permiti-me que vos ofereça, em particular, as minhas homenagens e os meus deveres. Se há

no mundo uma ordem própria para ilustrar os que a ocupam, é sem dúvida aquela que dão os talentos e a

virtude, aquela da qual vos tomastes dignos e à qual os vossos concidadãos vos elevaram. O seu próprio

mérito acrescenta ainda ao vosso um novo brilho; e, escolhidos por homens capazes de governar para

governá-los também, eu vos acho tão acima dos outros magistrados quanto um povo livre, e

principalmente o que tendes a honra de conduzir, está, por suas luzes e por sua razão, acima da populaça

dos outros Estados.

Que me seja permitido citar um exemplo do qual deveriam ficar melhores traços e que estará sempre

presente no meu coração. É com a mais doce emoção que me vem sempre a lembrança do virtuoso

cidadão de quem recebi a vida e que muitas vezes me entreteve a infância no respeito que vos era devido.

Vejo-o ainda vivendo do trabalho de suas mãos e nutrindo sua alma com as verdades mais sublimes.

Vejo Tácito, Plutarco, e Grotius, misturados diante dele com os instrumentos do seu ofício. Vejo ao seu

lado um filho querido, recebendo com muito poucos frutos as ternas instruções do melhor dos pais. Mas,

se os desregramentos de uma louca juventude me fizeram esquecer durante algum tempo tão sábias

lições, tenho a felicidade de experimentar enfim que, se alguma tendência se tem para o vício, é difícil

que uma educação na qual entra o coração seja perdida para sempre.

Tais são, MAGNÍFICOS E MUITO HONRADOS SENHORES, os cidadãos e mesmo os simples

habitantes nascidos no Estado que governais; tais são esses homens instruídos e sensatos, dos quais, sob

o nome de operários e de povo, se fazem nas outras nações idéias tão baixas e tão falsas. Meu pai,

confesso-o com alegria, não era distinguido entres os seus concidadãos: não era senão o que são todos; e,

tal como era, não há província onde a sua sociedade não fosse procurada, cultivada, e mesmo com

resultados, pela gente de bem. Não me compete, e, graças aos céus, não é necessário falar-vos das

deferências que podem esperar de vós homens dessa têmpera, vossos iguais por educação assim como

por direitos de natureza e de nascimento; vossos inferiores por vontade, pela preferência que devem ao

vosso mérito, que lhe outorgaram, e pela qual lhes deveis, por vossa vez, uma espécie de

reconhecimento. Soube com viva satisfação quanta doçura e condescendência combinais com a

gravidade conveniente aos ministros das leis; quanto lhes retribuís em estima e atenção o que vos devem

de obediência e respeito; conduta cheia de justiça e de sabedoria, própria para afastar cada vez mais a

memória dos acontecimentos infelizes que é preciso esquecer para não mais os rever; conduta tanto mais

judiciosa, quanto esse povo eqüitativo e generoso transforma em prazer o seu dever, quanto gosta

naturalmente de vos honrar e quanto os mais ardentes em sustentar os seus direitos são os mais

inclinados a respeitar os vossos.

Não é de admirar que os chefes de uma sociedade civil amem a glória e a felicidade; mas, bem

Discurso sobre a origem da desigualdade

file:///C|/site/livros_gratis/origem_desigualdades.htm (7 of 64) [11/10/2001 19:05:32]

admirável é, para o repouso dos homens, que os que se consideram magistrados, ou antes, senhores de

uma pátria mais santa e mais sublime testemunhem algum amor à pátria terrestre que os nutre. Quanto

me é doce poder fazer em nosso favor uma exceção tão rara, e colocar na ordem dos nossos melhores

cidadãos esses zelosos depositários dos dogmas sagrados autorizados pelas leis, esses veneráveis pastores

das almas, cuja viva e doce eloquência leva tanto mais aos corações as máximas do Evangelho quanto

começam sempre por praticá-las eles próprios! Toda a gente sabe com que sucesso a grande arte do

púlpito é cultivada em Genebra. Mas, muito acostumados a ouvir falar de uma maneira e a fazer de outra,

poucos sabem até que ponto o espírito do cristianismo, a santidade dos costumes, a severidade para

consigo mesmo e a doçura para com os outros reinam no corpo dos nossos ministros. É possível que

somente à cidade de Genebra seja dado patentear o exemplo edificante de tão perfeita união entre uma

sociedade de teólogos e de homens de letras; é em grande, parte sobre a sua sabedoria e a sua moderação

reconhecidas, sobre o seu zelo pela prosperidade do Estado, que eu fundo a esperança da sua eterna

tranqüilidade; e noto, com um prazer misturado de espanto e respeito, o seu horror às máximas

execráveis desses homens sagrados e bárbaros cuja história fornece mais de um exemplo e que, para

sustentar os pretensos direitos de Deus, isto é, os seus interesses, eram tanto mais ávidos de sangue

humano quanto, se gabavam de que o seu seria sempre respeitado.

Poderia eu esquecer essa preciosa metade da república que faz a felicidade da outra, e cuja doçura e

sabedoria aí mantêm a paz e os bons costumes? Amáveis e virtuosas cidadãs, a sorte do vosso sexo será

sempre governar o nosso. Feliz quando o vosso casto pode; exercido apenas na união conjugal, só se

fizer sentir para a glória do Estado e a felicidade pública! Assim é que as mulheres mandavam em

Esparta, e assim é que mereceis mandar em Genebra.

Que homem bárbaro poderia resistir à voz da honra e da razão na boca de uma terna esposa? e quem

não desprezaria um luxo vão, ao ver o vosso traje simples e modesto, que, pelo brilho que de vós recebe,

parece ser o mais favorável à beleza? Cabe-vos manter sempre, por vosso amável e inocente império, e

por vosso espírito insinuante, o amor às leis no Estado e a concórdia entre os cidadãos; reunir, por meio

de felizes casamentos, as famílias divididas, e principalmente corrigir, pela persuasiva doçura das vossas

lições e pelas graças modestas da vossa convivência as extravagâncias que os nossos jovens vão buscar

em outros países, de onde, em vez de tantas coisas úteis que poderiam aproveitar, só trazem, num tom

pueril e com ares ridículos aprendidos entre as mulheres perdidas, a admiração a não ser que pretensas

grandezas, frívolas compensações da servidão, que jamais valerão a augusta liberdade. Sede, pois,

sempre o que sois, castas guardiãs dos costumes e doces liames da paz; e continuai a fazer valer, em

todas as ocasiões, os direitos do coração e da natureza em proveito do dever e da virtude.

Orgulho-me de não ser desmentido pelos acontecimentos, fundando sobre tais fiadores a esperança da

felicidade comum dos cidadãos e da glória da república. Confesso que, com todas essas vantagens, ela

não brilhará com esse brilho que deslumbra a maior parte dos olhos, cujo pueril e funesto gosto é o mais

mortal inimigo da felicidade e da liberdade. Que uma mocidade dissoluta vá procurar alhures prazeres

fáceis e longos arrependimentos; que a pretensa gente de gosto admire em outros lugares a grandeza dos

palácios, a beleza das equipagens, os soberbos mobiliários, a pompa dos espetáculos, e todos os

refinamentos da moleza e do luxo; em Genebra, só se encontrarão homens; mas, contudo, um tal

espetáculo tem bem o seu preço, e aqueles que o procurarem valerão bem os admiradores do resto.

Dignai-vos, todos, MAGNÍFICOS, MUITO HONRADOS E SOBERANOS SENHORES, receber,

com a mesma bondade, os respeitosos testemunhos do interesse que tomo pela vossa prosperidade

Discurso sobre a origem da desigualdade

file:///C|/site/livros_gratis/origem_desigualdades.htm (8 of 64) [11/10/2001 19:05:32]

O Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens pdf

comum. Se eu fosse bastante infeliz para ser acusado de algum transporte indiscreto nesta viva efusão do

meu coração suplico-vos que o perdoeis à terna afeição de um verdadeiro patriota, e ao zelo ardente e

legítimo de um homem que não almeja maior felicidade para si mesmo do que a de vos ver todos felizes.

E sou, com o mais profundo respeito,

MAGNÍFICOS, MUITO HONRADOS E SOBERANOS SENHORES,

Vosso humilíssimo e obedientíssimo servidor e concidadão,

J.-J. Rousseau

PREFÁCIO

mais útil e o menos avançado de todos os conhecimentos humanos me parece ser o do

homem (2); e ouso dizer que só a inscrição do templo de Delfos continha um preceito

mais importante e mais difícil do que todos os grossos livros dos moralistas. Considero,

igualmente, o assunto deste discurso como uma das questões mais interessantes que a

filosofia possa propor, e, desgraçadamente para nós, como uma das mais espinhosas que

os filósofos possam resolver: com efeito, como conhecer a fonte da desigualdade entre os homens, se não

se começar por conhecer os próprios homens? e como chegará o homem a se ver tal como o formou a

natureza, através de todas essas transformações que a sucessão dos tempos e das coisas teve de produzir

na sua constituição original, e a separar o que está no seu próprio natural do que as circunstâncias e o

progresso acrescentaram ou modificaram em seu estado primitivo? Semelhante à estátua de Glauco, que

o tempo, o mar e as tempestades tinham desfigurado tanto que se assemelhava menos a um deus do que a

um animal feroz, a alma humana, alterada no seio da sociedade por mil causas sempre renascentes, pela

aquisição de uma multidão de reconhecimentos e de erros, pelas mudanças verificadas na constituição

dos corpos, e pelo choque contínuo das paixões, mudou por assim dizer de aparência, a ponto de ser

quase irreconhecível, e nela só se encontra, em vez de um ser que age sempre por meio de princípios

certos e invariáveis, em vez dessa celeste e majestosa simplicidade com a qual o seu autor a marcara, o

disforme contraste da paixão que julga raciocinar e do entendimento em delírio.

O que há de mais cruel ainda é que, como todos os progressos da espécie humana a afastam sem

cessar de seu estado primitivo, quanto mais acumulamos novos conhecimentos, tanto mais nos privamos

dos meios de adquirir o mais importante de todos, o qual consiste, num certo sentido, em que à força de

estudar o homem é que nos tornamos incapazes de o conhecer.

É fácil ver que é nessas mudanças sucessivas da constituição humana que é preciso procurar a

primeira origem das diferenças que distinguem os homens, os quais, de comum acordo, são naturalmente

tão iguais entre si quanto o eram os animais de cada espécie antes de diversas causas físicas terem

introduzido em alguns as variedades que notamos. Efetivamente, não é concebível que essas primeiras

mudanças, por quaisquer meios que se tenham realizado, tenham alterado, ao mesmo tempo, e da mesma

maneira, todos os indivíduos da espécie; mas, tendo uns se aperfeiçoado ou deteriorado e adquirido

diversas qualidades, boas ou más, que não eram inerentes à sua natureza, permaneceram os outros mais

tempo em seu estado original; e tal foi, entre os homens, a primeira fonte da desigualdade, mais fácil de

demonstrar assim, em geral, do que assinalar com precisão as suas verdadeiras causas.

Discurso sobre a origem da desigualdade

file:///C|/site/livros_gratis/origem_desigualdades.htm (9 of 64) [11/10/2001 19:05:32]

Que os meus leitores não imaginem, pois, que ouso me vangloriar de ter visto o que me parece tão

difícil de ver. Comecei alguns raciocínios, arrisquei algumas conjecturas, menos na esperança de resolver

a questão do que na intenção de a esclarecer e de a reduzir ao seu verdadeiro estado. Outros poderão

facilmente ir mais longe no mesmo caminho, sem que seja fácil a ninguém chegar ao termo; porque não é

empresa suave discernir o que há de originário e artificial na natureza atual do homem, e conhecer bem

um estado que não existe mais, que talvez não tenha existido, que provavelmente não existirá nunca, e do

qual é, contudo, necessário ter noções justas, para bem julgar do nosso estado presente. Seria preciso

mesmo que tivesse mais filosofia do que se pensa quem pretendesse determinar as precauções que tomar

para fazer sobre este assunto sólidas observações; e uma boa solução do problema seguinte não me

pareceria indigno dos Aristóteles e dos Plínio do nosso século: Que experiências seriam necessárias para

chegar a conhecer o homem natural? e quais são os meios de fazer essas experiências no seio da

sociedade? Longe de empreender resolver esse problema, creio ter meditado bem o assunto para ousar

responder de antemão que os maiores filósofos não serão muito bons para dirigir essas experiências, nem

os mais poderosos soberanos para as fazer; não é razoável esperar esse concurso, principalmente com a

perseverança, ou antes, a sucessão de luzes e de boa-vontade necessária de ambas as partes para

conseguir o sucesso.

Essas pesquisas tão difíceis de fazer, e nas quais pouco se tem pensado até aqui, são contudo os

únicos meios que nos restam para afastar uma multidão de dificuldades que nos encobrem o

conhecimento dos fundamentos reais da sociedade humana. Ê essa ignorância da natureza do homem que

lança tanta incerteza e obscuridade sobre a verdadeira definição do direito natural: porque a idéia do

direito, diz Burlamaqui, e mais ainda a do direito natural, são manifestamente idéias relativas à natureza

do homem. É, pois, dessa mesma natureza do homem, continua ele, da sua constituição e do seu estado

que é preciso deduzir os princípios dessa ciência.

Não é sem surpresa e sem escândalo que se nota o pouco acordo reinante sobre essa importante

matéria entre os diversos autores que a têm estudado. Entre os mais graves escritores, mal se encontram

dois com a mesma opinião sobre esse ponto. Sem falar dos antigos filósofos, que parece terem tomado a

tarefa de se contradizer entre si sobre os princípios mais fundamentais, os jurisconsultos romanos

submetem indiferentemente o homem e todos os outros animais à mesma lei natural, porque consideram

de preferência, sob esse nome, a lei que a natureza se impõe a si mesma, em lugar da que prescreve, ou

antes, por causa da acepção particular segundo a qual esses jurisconsultos entendem a palavra lei, que

parece só terem tomado, nessa ocasião, como expressão das relações gerais estabelecidas pela natureza

entre todos os seres animados, para a sua comum conservação. Os modernos, só reconhecendo sob o

nome de lei uma regra prescrita a um ser moral, isto é, inteligente, livre e considerado nas suas relações

com outros seres, limitam, consequentemente, ao único animal dotado de razão, isto é, ao homem, a

competência da lei natural; mas, definindo essa lei, cada qual à sua moda, estabelecem-na todos sobre

princípios tão metafísicos que há, mesmo entre nós, muito pouca gente capaz de compreender esses

princípios, longe de os poder encontrar por si mesma. De sorte que todas as definições desses sábios

homens, aliás em perpétua contradição entre si, concordam somente em que é impossível entender a lei

da natureza e, por conseguinte, obedecer-lhe, sem ser um grande raciocinador e profundo metafísico: isso

significa, precisamente, que os homens empregaram, para o estabelecimento da sociedade, luzes que só

se desenvolvem, com muita dificuldade, e para muito pouca gente, no seio da própria sociedade.

Conhecendo tão pouco a natureza, e harmonizando-se tão mal sobre o sentido da palavra lei, seria bem

difícil encontrar uma boa definição da lei natural. Também todas as que se encontram nos livros, além do

Discurso sobre a origem da desigualdade

file:///C|/site/livros_gratis/origem_desigualdades.htm (10 of 64) [11/10/2001 19:05:32]

defeito de não serem uniformes, têm ainda o de serem tiradas de muitos conhecimentos que os homens

naturalmente não têm, e das vantagens das quais só podem fazer uma idéia depois de terem saído do

estado natural. Começa-se por investigar as regras pelas quais, para utilidade comum, seria bom que os

homens concordassem entre si; e, depois, dá-se o nome de lei natural à coleção dessas regras, sem outra

prova além do bem que se julga resultar de sua prática universal. Eis, seguramente, uma maneira muito

cômoda de compor definições e de explicar a natureza das coisas por meio de convenções quase

arbitrárias.

Mas, enquanto não conhecermos o homem natural, é inútil querermos determinar a lei que recebeu ou

a que convém melhor à sua constituição. Tudo o que podemos ver muito claramente em relação a essa lei

é que, para que seja lei, é preciso não só que a vontade daquele que ela obriga possa submeter-se a ela

com conhecimento, mas ainda, para que seja natural, que ela fale imediatamente pela voz da natureza.

Deixando, pois, todos os livros científicos, que só nos ensinam a ver os homens tais como foram

feitos, e meditando sobre as primeiras e mais simples operações da alma humana, creio perceber dois

princípios anteriores à razão, um dos quais interessa ardentemente ao nosso bem-estar e à conservação de

nós mesmos, e o outro nos inspira uma repugnância natural de ver morrer ou sofrer todo ser sensível, e

principalmente os nossos semelhantes. Do concurso e da combinação que o nosso espírito é capaz de

fazer desses dois princípios, sem que seja necessário acrescentar o da sociabilidade, é que me parecem

decorrer todas as regras do direito natural; regras que a razão é, em seguida, forçada a restabelecer sobre

outros fundamentos, quando, por seus desenvolvimentos sucessivos, chega ao extremo de sufocar a

natureza.

Dessa maneira, não se é obrigado a fazer do homem um filósofo, em lugar de fazer dele um homem;

seus deveres para com outrem não lhe são ditados unicamente pelas tardias lições da sabedoria; e,

enquanto não resistir ao impulso interior da comiseração, jamais fará mal a outro homem, nem mesmo a

nenhum ser sensível, exceto no caso legítimo em que, achando-se a conservação interessada, é obrigado a

dar preferência a si mesmo. Por esse meio, terminam também as antigas disputas sobre a participação dos

animais na lei natural; porque é claro que, desprovidos de luz e de liberdade, não podem reconhecer essa

lei; mas, unidos de algum modo à nossa natureza pela sensibilidade de que são dotados, julgar-se-á que

devem também participar do direito natural e que o homem está obrigado, para com eles a certa espécie

de deveres. Parece, com efeito, que, se sou obrigado a não fazer nenhum mal a meu semelhante, é menos

porque ele é um ser racional do que porque é um ser sensível, qualidade que, sendo comum ao animal e

ao homem, deve ao menos dar a um o direito de não ser maltratado inutilmente pelo outro.

Esse mesmo estudo do homem original, de suas verdadeiras necessidades e dos princípios

fundamentais dos seus deveres, é ainda o único bom meio que pode ser empregado para levantar essas

multidões de dificuldades que se apresentam sobre a origem da desigualdade moral, sobre os verdadeiros

fundamentos do corpo político, sobre os direitos recíprocos dos seus membros e sobre mil outras

questões semelhantes, tão importantes quanto mal esclarecidas.

Considerando a sociedade humana com visão tranqüila e desinteressada, ela parece, a princípio, só

mostrar a violência dos homens poderosos e a opressão dos fracos: o espírito se revolta contra a dureza

de uns ou é levado a deplorar a cegueira dos outros; e, como nada é menos estável entre os homens do

que essas relações exteriores que o acaso produz mais freqüentemente do que a sabedoria, e que se

chama fraqueza ou poder, riqueza ou pobreza, o que estabelecem os homens parece fundado, à primeira

Discurso sobre a origem da desigualdade

file:///C|/site/livros_gratis/origem_desigualdades.htm (11 of 64) [11/10/2001 19:05:32]

O Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens pdf

vista, sobre montículos de areia movediça: é só examinando-os de perto, só depois de haver tirado o pó e

a areia que rodeiam o edifício, que se percebe a base inabalável sobre a qual foi elevado, e que se

aprende a respeitar os seus fundamentos. Ora, sem o estudo sério do homem, de suas faculdades naturais

e dos seus desenvolvimentos sucessivos, não se chegará nunca ao ponto de fazer essas distinções e de

separar, na atual constituição das coisas, o que fez a vontade divina e o que a arte humana pretendeu

fazer. As pesquisas políticas e morais, às quais dá lugar a importante, questão que examino, são, pois,

úteis de todas as maneiras, e a história hipotética dos governos é para o homem uma lição instrutiva a

todos os respeitos. Considerando o que teríamos sido abandonados a nós mesmos, devemos aprender a

abençoar aquele cuja mão benfazeja, corrigindo as nossas instituições e dando-lhes uma situação

inabalável, preveniu as desordens que deveriam resultar e fez nascer a nossa felicidade dos meios que

parecia deverem cumular a nossa miséria.

Quem te Deus esse

Jussit, et humana qua parte locatus es in re,

Disce.

Persa, Sat., III, V. 74.

DISCURSO SOBRE A ORIGEM E OS FUNDAMENTOS DA DESIGUALDADE ENTRE OS

HOMENS

Non in depravatis, sed in his quoe bene

secundum naturam se habent, considerandum est

quid sit naturale.

Aristóteles, Política, livro I, cap. II.

do homem que tenho de falar; e a questão que examino me ensina que vou falar a

homens; com efeito, não se propõem semelhantes questões quando se teme honrar a

verdade. Defenderei, pois, com confiança, a causa da humanidade perante os sábios que a

tal me convidam, e não ficarei descontente comigo se me tornar digno do meu assunto e

dos meus juizes.

Concebo na espécie humana duas espécies de desigualdade: uma, que chamo de natural ou física,

porque é estabelecida pela natureza, e que consiste na diferença das idades, da saúde, das forças do corpo

e das qualidades do espírito, ou da alma; a outra, que se pode chamar de desigualdade moral ou política,

porque depende de uma espécie de convenção, e que é estabelecida ou, pelo menos, autorizada pelo

consentimento dos homens. Consiste esta nos diferentes privilégios de que gozam alguns com prejuízo

dos outros, como ser mais ricos, mais honrados, mais poderosos do que os outros, ou mesmo fazerem-se

obedecer por eles.

Não se pode perguntar qual é a fonte da desigualdade natural, porque a resposta se encontraria

enunciada na simples definição da palavra. Ainda menos se pode procurar se haveria alguma ligação

Discurso sobre a origem da desigualdade

file:///C|/site/livros_gratis/origem_desigualdades.htm (12 of 64) [11/10/2001 19:05:32]

essencial entre as duas desigualdades, pois isso eqüivaleria a perguntar, por outras palavras, se aqueles

que mandam valem necessariamente mais do que os que obedecem, e se a força do corpo e do espírito, a

sabedoria ou a virtude, se encontram sempre nos mesmos indivíduos em proporção do poder ou da

riqueza: questão talvez boa para ser agitada entre escravos ouvidos por seus senhores, mas que não

convém a homens razoáveis e livres, que buscam a verdade.

De que, pois, se trata precisamente neste discurso? De marcar no progresso das coisas o momento em

que, sucedendo o direito à violência, a natureza foi submetida à lei; explicar por que encadeamento de

prodígios o forte pode resolver-se a servir o fraco, e o povo a procurar um repouso em idéia pelo preço

de uma felicidade real.

Os filósofos que examinaram os fundamentos da sociedade sentiram a necessidade de remontar até ao

estado de natureza, mas nenhum deles aí chegou. Uns não vacilaram em supor no homem desse estado a

noção do justo e do injusto, sem se inquietar de mostrar que ele devia ter essa noção, nem mesmo que ela

lhe fosse útil. Outros falaram do direito natural que cada qual tem de conservar o que lhe pertence, sem

explicar o que entendiam por pertencer. Outros, dando primeiro ao mais forte autoridade sobre o mais

fraco, fizeram logo nascer o governo, sem pensar no tempo que se devia ter escoado antes que o sentido

das palavras autoridade e governo pudesse existir entre os homens. Enfim, todos, falando sem cessar de

necessidade, de avidez, de opressão, de desejos e de orgulho, transportaram ao estado de natureza idéias

que tomaram na sociedade: falavam do homem selvagem e pintavam o homem civil. Não ocorreu mesmo

ao espírito da maior parte dos nossos duvidar que o estado de natureza tivesse existido, quando é

evidente, pela leitura dos livros sagrados, que o primeiro homem, tendo recebido imediatamente de Deus

luzes e preceitos, não estava também nesse estado, e que, acrescentando aos escritos de Moisés a fé que

lhes deve toda filosofia cristã, é preciso negar que, mesmo antes do dilúvio, os homens jamais se

encontrassem no puro estado de natureza, a menos que, não tenham nele caído de novo por algum

acontecimento extraordinário: paradoxo muito embaraçante para ser defendido e absolutamente

impossível de ser provado.

Comecemos, pois, por afastar todos os fatos, pois não se ligam à questão. É preciso não considerar as

pesquisas, nas quais se pode entrar sobre este assunto, como verdades históricas, mas, somente como

raciocínios hipotéticos e condicionais, mais próprios, para esclarecer a natureza das coisas do que para

mostrar a sua verdadeira origem, e semelhantes aos que todos os dias fazem os nossos físicos sobre a

formação do mundo. A religião nos ordena a crer que o próprio Deus, tendo tirado os homens do estado

de natureza imediatamente depois da criação, eles são desiguais porque ele quis que o fossem;

proíbe-nos, porém, de formar conjecturas, tiradas somente da natureza do homem e dos seres que o

rodeiam, sobre o que poderia ter acontecido ao gênero humano se tivesse ficado abandonado a si mesmo.

Eis o que me perguntam e o que me proponho examinar neste discurso. Como o meu assunto interessa o

homem em geral, procurarei uma linguagem que convenha a todas as nações; ou antes, esquecendo o

tempo e os lugares, para só pensar nos homens a quem falo, suponho-me no liceu de Atenas, repetindo as

lições dos meus mestres, tendo os Platão e os Xenócrates como juizes e o gênero humano como ouvinte.

Oh homem, de qualquer região que sejas, quaisquer que sejam as tuas opiniões, escuta: eis a tua

história, tal como julguei lê-la, não nos livros dos teus semelhantes, que são mentirosos, mas na natureza,

que não mente nunca. Tudo o que partir dela será verdadeiro; de falso só haverá o que eu acrescentar de

meu sem o querer. Os tempos de que vou falar são bem remotos: como estás diferente do que eras! É, por

assim dizer, a vida de tua espécie que te vou descrever segundo as qualidades que recebeste, que tua

Discurso sobre a origem da desigualdade

file:///C|/site/livros_gratis/origem_desigualdades.htm (13 of 64) [11/10/2001 19:05:32]

O Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens pdf

educação e teus hábitos puderam depravar, mas que não puderam destruir. Há, eu o sinto, uma idade na

qual o homem individual desejaria parar: tu procurarás a idade na qual desejarias que a tua espécie

parasse. Descontente do teu estado presente pelas razões que anunciam à tua posteridade infeliz maiores

descontentamentos ainda, talvez quisesses retrogradar; e esse sentimento deve constituir o elogio dos teus

primeiros ancestrais, a crítica dos teus contemporâneos e o espanto dos que tiverem a desgraça de viver

depois de ti.

PRIMEIRA PARTE

or mais importantes que seja, para bem julgar do estado natural do homem, considerá-lo

desde a sua origem e o examinar, por assim dizer, no primeiro embrião da espécie, não

seguirei sua organização através dos seus desenvolvimentos sucessivos: não me deterei a

rebuscar no sistema animal o que teria podido ser no começo para se tornar enfim o que é.

Não examinarei, como o supõe Aristóteles, se suas unhas alongadas não foram primeiro

garras aduncas; se não era peludo como um urso; e se, ao andar de quatro patas (3), o seu

olhar dirigido para a terra e limitado a um horizonte de alguns passos não marcaria ao mesmo tempo o

caráter e o limite de suas idéias. Eu só poderia formar sobre isso conjecturas vagas e quase imaginárias.

A anatomia comparada fez ainda muito poucos progressos, e as observações dos naturalistas são ainda

muito incertas, para que se possa estabelecer sobre tais fundamentos a base de um raciocínio sólido:

assim, sem recorrer aos conhecimentos sobrenaturais que temos sobre esse ponto, e sem considerar as

mudanças que deveriam sobrevir na conformação tanto interior como exterior do homem, à medida que

ele aplicava seus membros em novos misteres e que se nutria de novos alimentos, hei de supô-lo sempre

tal como o vejo hoje, andando com dois pés, servindo-se de suas mãos como fazemos com as nossas,

dirigindo o olhar para toda a natureza e medindo com os olhos a vasta extensão do céu.

Despindo esse ser assim constituído de todos os dons sobrenaturais que pode receber e de todas as

faculdades artificiais que pode adquirir somente por longos progressos; considerando-o, em uma palavra,

tal como deveria ter saído das mãos da natureza, vejo um animal menos forte do que uns, menos ágil do

que outros, mas, afinal de contas, organizado mais vantajosamente do que todos: vejo-o saciando-se

debaixo de um carvalho, matando a sede no primeiro regato, encontrando o seu leito ao pé da mesma

árvore que lhe forneceu o repasto; e eis satisfeitas as suas necessidades.

A terra, abandonada à sua fertilidade natural (4) e coberta de florestas imensas que o machado jamais

mutilou, oferece a cada passo celeiros e abrigos aos animais de toda espécie. Os homens, dispersos entre

eles, observam, imitam sua indústria e se elevam, assim, até ao instinto das feras; com a vantagem de que

cada espécie só tem o seu próprio, e o homem, não tendo talvez nenhum que lhe pertença, se apropria de

todos, nutre-se ele igualmente da maior parte dos alimentos diversos (5) partilhado entre os outros

animais e encontra por conseguinte sua subsistência mais facilmente do que qualquer dos outros.

Acostumados desde a infância às intempéries do ar e ao rigor das estações, exercitados no trabalho e

forçados a defender nus e sem armas a sua vida e a sua presa contra os outros animais ferozes, ou a

escapar da sua perseguição, os homens adquirem um temperamento robusto e quase inalterável: os filhos,

trazendo ao mundo a excelente constituição dos pais e fortificando-a com os mesmos exercícios que a

Discurso sobre a origem da desigualdade

file:///C|/site/livros_gratis/origem_desigualdades.htm (14 of 64) [11/10/2001 19:05:32]

O Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens pdf

produziram, adquirem assim todo o vigor de que a espécie humana é capaz. A natureza faz precisamente

com eles o que a lei de Esparta fazia com os filhos dos cidadãos: torna forte e robustos os que são bem

constituídos e faz morrer todos os outros, divergindo nisso das nossas sociedades, em que o Estado,

tornando os filhos onerosos aos pais, os mata indistintamente antes do nascimento.

Sendo o corpo do homem selvagem o único instrumento que conhece, emprega-o em diversos usos,

para os quais, por falta de exercício, os nossos são incapazes; e é nossa indústria que nos tira a força e a

agilidade que a necessidade o obriga a adquirir. Se tivesse um machado, seu pulso quebraria tão fortes

galhos? se tivesse uma funda, lançaria com a mão uma pedra com tanta força? se tivesse uma escada,

treparia tão ligeiro numa árvore? se tivesse um cavalo, seria tão rápido na carreira? Deixai ao homem

civilizado tempo para reunir todas essas máquinas em torno de si, e não se pode duvidar que ultrapasse

facilmente o homem selvagem mas quereis ver um combate ainda mais desigual, ponde-os nus e

desarmados um diante do outro, e reconhecereis logo, qual é a vantagem de ter sempre todas as suas

forças à disposição, de estar sempre pronto para toda eventualidade e de se trazer sempre, por assim

dizer, todo consigo (6). Hobbes pretende que o homem é naturalmente intrépido e não procura senão

atacar e combater. Um filósofo ilustre pensa, ao contrário, e Cumberland e Pufendorf também o afirmam,

que nada é tão tímido como o homem em estado de natureza, sempre trêmulo e prestes a fugir ao menor

ruído que o impressione, ao menor movimento que perceba. Pode ser assim em relação aos objetos que

não conhece; e não duvido que ele não se impressione com todos os novos espetáculos que se lhe

ofereçam, todas as vezes que não pode distinguir o bem do mal físicos que deve esperar, nem comparar

suas forças com os perigos que deve correr, circunstâncias raras no estado de natureza, em que todas as

coisas marcham de maneira tão uniforme, e em que a face da terra não está sujeita a essas mudanças

bruscas e contínuas que causam as paixões e a inconstância dos povos reunidos. Mas, o homem

selvagem, vivendo disperso entre os animais e encontrando-se desde cedo na contingência de se medir

com eles, estabelece logo a comparação; é sentindo que os supera mais em agilidade do que eles o

superam em força, aprende a não os temer. Ponde um urso ou um lobo em luta com um selvagem

robusto, ágil, corajoso, como são todos, armado de pedras e de um pau, e vereis que o perigo será pelo

menos recíproco e que, depois de muitas experiências semelhantes, os animais ferozes, que não gostam

de se atacar entre si, atacarão de má vontade o homem, no qual encontraram tanta ferocidade como em si

mesmos. Quanto aos animais que têm realmente mais força do que o homem agilidade, ele está, em

relação a eles, no caso das outras espécies mais fracas, que não deixam de subsistir; com a vantagem,

para o homem, de que, não menos disposto a correr do que eles e encontrando nas árvores um refúgio

quase seguro por toda parte, pode ele optar entre aceitar ou abandonar a luta, tendo a escolha da fuga ou

do combate. Acrescentemos que não parece que, naturalmente, algum animal faça guerra ao homem fora

do caso da sua própria defesa ou de fome extrema, nem testemunhe contra ele essas violentas antipatias

que parece anunciarem que uma espécie está destinada pela natureza a servir de pasto à outra.

Eis sem dúvida, as razões por que os negros e os selvagens fazem tão pouco caso dos animais ferozes

que podem encontrar nas selvas. Os caraibas, da Venezuela, vivem, entre outros, a esse respeito, na mais

profunda segurança e sem o menor inconveniente. Embora quase nus, diz François Corréal, não deixam

de se expor ousadamente nos bosques, armados somente de flecha e arco; mas, nunca se ouviu dizer que

algum deles fosse devorado pelas feras.

Outros inimigos mais perigosos, dos quais o homem não tem meios para se defender, são as

debilidades naturais, a infância, a velhice, e as moléstias de toda espécie, tristes sinais de nossa fraqueza,

Discurso sobre a origem da desigualdade

file:///C|/site/livros_gratis/origem_desigualdades.htm (15 of 64) [11/10/2001 19:05:32]

O Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens pdf

sendo que os dois primeiros são comuns a todos os animais e que o último pertence principalmente ao

homem que vive em sociedade. Observo mesmo, em relação à infância, que a mãe, levando o filho

consigo por toda parte, encontra muito mais facilidade em o nutrir do que as fêmeas de muitos animais,

as quais são forçadas a ir e vir sem cessar com muita fadiga, de um lado, para procurar o seu próprio

alimento, e, do outro, para aleitar ou nutrir os filhos. É verdade que, se a mulher vem a morrer, a criança

corre o risco de morrer com ela; mas, esse perigo é comum a cem outras espécies cujos filhos ainda estão

longe de poderem procurar por si mesmos a própria nutrição. E, se a infância é mais longa entre nós, a

vida também o é, de modo que tudo é mais ou menos igual nesse ponto (7), embora haja, sobre a duração

da primeira idade e sobre o número dos filhos(8), outras regras que não fazem parte do meu tema. Entre

os velhos, que se movimentam pouco e pouco transpiram, a necessidade de alimentos diminui com a

faculdade de os prover; e, como sua a vida selvagem afaste deles a gota e o reumatismo, sendo a velhice

de todos os males o que menos os socorros humanos podem atenuar, extinguem-se enfim, sem se

perceber que cessam de existir, e quase sem que eles mesmos o percebam.

Em relação às moléstias, não repetirei as vãs e falsas declamações feitas contra a medicina pela maior

parte das pessoas de saúde; perguntarei, porém, se há alguma observação sólida da qual se possa concluir

que, nos países em que essa arte é mais descurada, a vida média do homem é mais curta do que naqueles

em que é cultivada com mais cuidado. E como poderia ser assim, se os remédios que a medicina nos

fornece são insuficientes para os males que temos? A extrema desigualdade na maneira de viver, o

excesso de ociosidade de uns, o excesso de trabalho de outros, a facilidade de irritar e satisfazer nossos

apetites e nossa sensualidade, os alimentos muito requintados dos ricos, que os nutrem com sucos

excitantes e os afligem com indigestões, a má nutrição dos pobres, que chega muitas vezes a faltar-lhes,

obrigando-os a sobrecarregar avidamente o estômago quando podem, as vigílias, os excessos de toda

espécie, os transportes imoderados de todas as paixões, as fadigas e o esgotamento de espírito, os pesares

e as penas sem número que se experimentam em todos os estados e que perpetuamente arruinam as

almas: eis os funestos fiadores de que a maior parte dos nossos males são nossa própria obra e de que

poderíamos evitá-los quase todos conservando a maneira de viver simples, uniforme e solitária, que nos

foi prescrita pela natureza. Se esta nos destinou a ser sãos, ouso quase assegurar que o estado de reflexão

é um estado contra a natureza, e que o homem que medita é um animal depravado. Quando se pensa na

boa constituição dos selvagens, pelo menos dos que não perdemos com os nossos licores fortes; quando

se sabe que quase não conhecem outras moléstias além dos ferimentos e da velhice, é-se obrigado a crer

que facilmente se faria a história das moléstias humanas seguindo a história das sociedades civis. É essa,

pelo menos, a opinião de Platão, que julga, por causa de certos remédios empregados por Podalirio e

Macaão no cerco de Tróia, que diversas moléstias que esses remédios deviam excitar não eram então

conhecidas entre os homens; e Celso lembra que a dieta, hoje tão necessária, só foi inventada por

Hipócrates.

Com tão poucas fontes de males, o homem no estado de natureza não tem, pois, necessidade de

remédios, e ainda menos de médicos; a espécie humana, a esse respeito, não está em piores condições do

que todas as outras, e é fácil saber dos caçadores se nas suas caçadas encontram muitos animais

enfermos. Encontram vários com feridas consideráveis muito bem cicatrizadas, com ossos e até membros

quebrados que se regeneraram sem outro cirurgião a não ser o tempo, sem outro regime a não ser a vida

de todos os dias, e que não se curaram com menor perfeição por não terem sido atormentados com

incisões, envenenados com drogas, ou extenuados com jejuns. Enfim, por útil que possa ser entre nós a

medicina bem administrada, é sempre certo que, se o selvagem doente, abandonado a si mesmo, nada

Discurso sobre a origem da desigualdade

file:///C|/site/livros_gratis/origem_desigualdades.htm (16 of 64) [11/10/2001 19:05:32]

tem que esperar senão da natureza, em compensação nada tem que temer senão de seu mal, o que muitas

vezes torna a sua situação preferível à nossa.

Tenhamos, pois, cuidado em não confundir o homem selvagem com os homens que temos sob os

olhos. A natureza trata todos os animais abandonados aos seus cuidados com uma predileção que parece

mostrar quanto é ciosa desse direito. O cavalo, o gato, o touro, o próprio burro, têm, em geral, um talhe

mais alto, todos uma constituição mais robusta, mais vigor, força e coragem nas florestas do que nas

nossas casas: perdem a metade dessas vantagens ao se tornarem domésticos, e dir-se-ia que todos os

nossos cuidados em tratar bem e nutrir esses animais só conseguem abastardá-los. O mesmo acontece

com o homem: tornando-se sociável e escravo, torna-se fraco, medroso, submisso; e sua maneira de viver

mole e efeminada acaba de debilitar, ao mesmo tempo, a sua força e a sua coragem. Acrescentemos que,

entre as condições selvagem e doméstica, a diferença de homem para homem deve ser maior ainda que

de animal para animal: porque, tendo o animal e o homem sido tratados igualmente pela natureza, todas

as comodidades que o homem se proporciona mais do que aos animais por ele amansados são outras

tantas causas particulares que o fazem degenerar mais sensivelmente.

Assim, não constituem tão grande desgraça para esses primeiros homens, nem principalmente tão

grande obstáculo à sua conservação, a nudez, a falta de habitação e a privação de todas essas inutilidades

que julgamos tão necessárias. Se não têm a pele cabeluda, disso não têm nenhuma necessidade nos países

quentes; e sabem logo apropriar-se, nos países frios; das peles dos animais por eles subjugados: se têm

somente dois pés para correr, possuem dois braços para prover à sua defesa e às suas necessidades. Seus

filhos andam, talvez, tarde e com dificuldade, mas suas mães os conduzem com facilidade; vantagem que

falta às outras espécies, nas quais a mãe, sendo perseguida, se vê constrangida a abandonar os filhos ou a

regular seus passos pelos deles. Enfim, a menos que se suponham os concursos singulares e fortuitos de

circunstâncias de que falarei em seguida, e que poderiam muito bem não ocorrer nunca, é claro, em todo

estado de causa, que o primeiro que fez roupas ou uma habitação criou para si coisas desnecessárias, pois

que passara sem isso até então, não se vendo a razão pela qual, já homem feito, não poderia suportar um

gênero de vida que suportava desde a infância.

Só, ocioso, e sempre vizinho do perigo, o homem selvagem deve gostar de dormir, e ter o sono leve,

como os animais, que, pensando pouco, dormem, por assim dizer, durante todo o tempo que não pensam.

Constituindo a própria conservação quase, o seu único cuidado, as suas faculdades mais exercitadas

devem ser as que têm por objeto principal o ataque e a defesa, seja para subjugar a presa, seja para se

preservarem de ser a de outro animal; ao contrário, os órgãos que não se aperfeiçoam senão pela moleza

e a sensualidade devem ficar em um estado de grosseria que exclui em si toda espécie de delicadeza; e

como os sentidos participam disso, terá o tato e o gosto extremamente rudes, a vista, o ouvido e o olfato

mais sensíveis. Tal é ,o estado animal em geral, e é também, segundo as narrativas dos viajantes, o estado

da maior parte dos povos selvagens. Assim, não é de admirar que os hotentotes do Cabo da .Boa

Esperança descubram a olho nu navios em alto mar de tão longe quanto os holandeses com binóculos;

nem que os selvagens da América sintam os espanhóis na sua pista como o sentiriam os melhores cães;

nem que todas essas nações bárbaras suportem facilmente a nudez, agucem seu gosto à força de pimenta

e bebam licores europeus como água.

Até aqui, só considerei o homem físico; tratemos de o examinar agora pelo lado metafísico e moral.

Não vejo em todo animal senão uma máquina engenhosa, à qual a natureza deu sentidos para

Discurso sobre a origem da desigualdade

file:///C|/site/livros_gratis/origem_desigualdades.htm (17 of 64) [11/10/2001 19:05:32]

O Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens pdf

prover-se ela mesma, e para se preservar, até certo ponto, de tudo o que tende a destruí-la ou perturbá-la.

Percebo precisamente as mesmas coisas na máquina humana, com a diferença de que só a natureza faz

tudo nas operações do animal, ao passo que o homem concorre para as suas na qualidade de agente livre.

Um escolhe ou rejeita por instinto, o outro por um ato de liberdade, o que faz com que o animal não

possa afastar-se da regra que lhe é prescrita, mesmo quando lhe fosse vantajoso fazê-lo, e que o homem

dela se afaste freqüentemente em seu prejuízo. É assim que um pombo morre de fome perto de uma

vasilha cheia das melhores carnes, e um gato sobre uma porção de frutas ou de grãos, embora ambos

pudessem nutrir-se com os alimentos que desdenham, se procurassem experimentá-lo; é assim que os

homens dissolutos se entregam a excessos que lhes ocasionam a febre e a morte, porque o espírito

deprava os sentidos, e a vontade fala ainda quando a natureza se cala.

Todo animal tem idéias, pois tem sentidos; combina mesmo as idéias até certo ponto: e, sob esse

aspecto, o homem só difere do animal do mais ao menos; alguns filósofos chegaram a avançar que há

mais diferença entre um homem e outro do que entre um homem e um animal. Não é, pois, tanto o

entendimento que estabelece entre os animais a distinção específica do homem como sua qualidade de

agente livre. A natureza manda em todo animal, e a besta obedece. O homem experimenta a mesma

impressão, mas se reconhece livre de aquiescer ou de resistir; e é sobretudo na consciência dessa

liberdade que se mostra a espiritualidade de sua alma; porque a física explica de certa maneira o

mecanismo dos sentidos e a formação das idéias; mas, no poder de querer, ou melhor, de escolher, e no

sentimento desse poder, só se encontram atos puramente espirituais, dos quais nada se pode explicar

pelas leis da mecânica.

Mas, quando as dificuldades que envolvem todas essas questões deixassem algum motivo de discutir

sobre essa diferença do homem e do animal, há uma outra qualidade muito específica que os distingue,

sobre a qual não pode haver contestação: é a faculdade de se aperfeiçoar, a qual, com o auxílio das

circunstâncias, desenvolve sucessivamente todas as outras e reside, entre nós, tanto na espécie como no

indivíduo, ao passo que um animal é, no fim de alguns meses, o que será toda a vida, e sua espécie, ao

cabo de mil anos, o que era no primeiro desses mil anos. Porque só o homem está sujeito a se tornar

imbecil? Não será porque volta assim ao seu estado primitivo e, enquanto o animal, que nada adquiriu e

nada tão pouco tem que perder, fica sempre com o seu instinto, ele, perdendo de novo, com a velhice ou

outros acidentes, tudo o que a sua perfectibilidade lhe fizera adquirir, torna a cair assim mais baixo do

que a própria besta? Tristes de nós se fossemos forçados a convir que essa faculdade distintiva e quase

ilimitada é a fonte de todas as desgraças do homem; que é ela que o tira à força de tempo dessa condição

originária na qual ele passaria dias tranqüilos e inocentes: que é ela que, fazendo desabrochar com os

séculos suas luzes e seus erros, seus vícios e suas virtudes, o torna, com o tempo, o tirano de si mesmo e

da natureza (9). Seria horrível ser obrigado a louvar como um ser benfeitor aquele que primeiro sugeriu

ao habitante das margens do Orenoco o uso dessas tábuas que ele adapta às fontes de seus filhos e que

lhes asseguram pelo menos uma parte de sua imbecilidade e de sua felicidade original.

O homem selvagem, entregue pela natureza exclusivamente ao seu instinto, ou antes, indenizado do

que talvez lhe falte por faculdades capazes, primeiro, de o suprir, e, em seguida, de o elevar muito acima

dela, começará, pois, pelas funções puramente animais (10). Perceber e sentir será seu primeiro estado,

que lhe será comum com todos os animais; querer e não querer, desejar e temer, serão as primeiras e

quase únicas operações de sua alma, até que novas circunstâncias lhe causem novos desenvolvimentos.

Discurso sobre a origem da desigualdade

file:///C|/site/livros_gratis/origem_desigualdades.htm (18 of 64) [11/10/2001 19:05:32]

O Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens pdf

Mau grado o que dizem os moralistas, o entendimento humano deve muito às paixões, que, de comum

acordo, também lhe devem muito: é pela sua atividade que a nossa razão se aperfeiçoa; só procuramos

conhecer porque desejamos gozar; e não é possível conceber porque aquele que não tivesse desejos nem

temores se desse ao trabalho de raciocinar. As paixões, por sua vez, se originam das nossas necessidades,

e o seu progresso dos nossos conhecimentos; porque só podemos desejar ou temer coisas segundo as

idéias que temos delas, ou pelo simples impulso da natureza; e o homem selvagem, privado de toda sorte

de luzes, só experimenta as paixões dessa última espécie; seus desejos não passam pelas suas

necessidades físicas (11); os únicos bens que conhece no universo são a sua nutrição, uma fêmea e o

repouso; os únicos males que teme são a dor e a fome. Digo a dor, e não a morte; porque jamais o animal

saberá o que é morrer; e o conhecimento da morte e dos seus terrores foi uma das primeiras aquisições

que o homem fez afastando-se da condição animal.

Ser-me-ia fácil, se me fosse necessário, apoiar esse sentimento em fatos, e fazer ver que em todas as

nações do mundo os progressos do espírito são precisamente proporcionais às necessidades que os povos

receberam da natureza, ou às quais as circunstâncias os sujeitaram e, por conseguinte, às paixões que os

obrigavam a prover às suas necessidades. Eu mostraria, no Egito, as artes nascendo e se estendendo com

o desdobramento do Nilo; seguiria o seu progresso entre os gregos, onde as vimos germinar, crescer e se

elevar até aos céus por entre as areias e os rochedos da Ática, sem poder criar raízes nas margens férteis

do Eurotas; notaria que, em geral, os povos do Norte são mais industriosos que os do meio-dia; porque

podem menos deixar de o ser; como se a natureza, assim, quisesse igualar as coisas dando aos espíritos a

fertilidade que recusa à terra.

Mas, sem recorrer aos testemunhos incertos da história, quem não vê que tudo parece afastar do

homem selvagem a tentação e os meios de cessar de o ser? Sua imaginação nada lhe pinta; seu coração

nada lhe pede. Suas módicas necessidades encontram-se tão facilmente à mão, e ele está tão longe do

grau de conhecimento necessário para desejar adquirir maiores, que não pode ter nem previdência nem

curiosidade. O espetáculo da natureza torna-se-lhe indiferente à força de se lhe tornar familiar: é sempre

a mesma ordem, são sempre as mesmas revoluções; não tem o espírito de se admirar das maiores

maravilhas; e não é nele que se deve procurar a filosofia de que o homem tem necessidade para saber

observar, uma vez, o que viu todos os dias. Sua alma, que coisa alguma agita, entrega-se ao sentimento

único de sua existência atual sem nenhuma idéia do futuro, por mais próximo que possa estar; e seus

projetos, limitados como suas vistas, estendem-se apenas até ao fim do dia. Tal é, ainda hoje, o grau de

previdência do caraiba: vende de manhã sua cama de algodão, e vem chorar, à noite, para comprá-la

novamente, por não ter previsto que precisaria dela na noite próxima.

Quanto mais meditamos sobre esse assunto, tanto mais a distância das puras sensações aos mais

simples conhecimentos aumenta aos nossos olhos; e é impossível conceber como um homem teria podido

exclusivamente com suas forças, sem o socorro da comunicação e sem o aguilhão da necessidade,

transpor tão grande intervalo. Quantos séculos, talvez, se escoaram antes que os homens chegassem a

poder ver outro fogo além do fogo do céu! quantos e diferentes riscos não lhes foram precisos para

aprender os usos mais comuns desse elemento! quantas vezes não o deixaram apagar antes de ter

adquirido a arte de o reproduzir! e quantas vezes, talvez, cada um desses segredos não morreu com o seu

descobridor! Que diremos da agricultura, arte que exige tanto trabalho e previdência, que se relaciona

com tantas outras artes, que muito evidentemente só é praticável em uma sociedade pelo menos

começada, e que não nos serve tanto para tirar da terra os alimentos que ela forneceria sem isso, como

Discurso sobre a origem da desigualdade

file:///C|/site/livros_gratis/origem_desigualdades.htm (19 of 64) [11/10/2001 19:05:32]

para forçá-la às preferências que são mais do nosso gosto? Mas, suponhamos que os homens se tivessem

de tal modo multiplicado que as produções naturais não fossem suficientes para os nutrir, suposição que,

digamo-lo de passagem, mostraria grande vantagem para a espécie humana nessa maneira de viver;

suponhamos que, sem oficinas e sem forjas, os instrumentos de lavoura caíssem do céu nas mãos dos

selvagens; que esses homens tivessem vencido o ódio mortal que têm todos eles por um trabalho

contínuo; que tivessem aprendido a prever de tão longe as suas necessidades; que tivessem adivinhado

como é preciso cultivar a terra, semear os grãos e plantar as árvores; que tivessem encontrado a arte de

moer o trigo e de pôr a uva a fermentar; todas as coisas que foi preciso que os deuses lhes ensinassem,

por não conceberem como as teriam aprendido por si mesmos: depois disso, qual seria o homem

insensato que se atormentasse na cultura de um campo que seria despojado pelo primeiro que aparecesse,

homem ou animal indiferentemente, ao qual essa colheita conviesse? e como poderá cada um resolver-se

a passar a vida em um trabalho penoso cujo prêmio está tanto mais seguro de não obter quanto mais lhe

fosse este necessário? Em uma palavra como poderá essa situação levar os homens a cultivar a terra

enquanto não for partilhada entre eles, isto é, enquanto o estado de natureza não for aniquilado?

Quando quiséssemos supor um homem selvagem tão hábil na arte de pensar quanto no-lo fazem os

nossos filósofos; quando fizéssemos dele, a seu exemplo, também um filósofo, descobrindo sozinho as

mais sublimes verdades, deduzindo de raciocínios muito abstratos máximas de justiça e de razão tiradas

do amor da ordem em geral, ou da vontade conhecida do seu Criador; em uma palavra, quando

supuséssemos no seu espírito tanta inteligência e luzes quanto ele deve ter e de fato nele achamos de

pesado e de estúpido, que utilidade tiraria a espécie de toda essa metafísica, que não poderia se

comunicar e que pereceria com o indivíduo que a tivesse inventado? que progresso poderia fazer o

gênero humano esparso nas florestas, entre os animais? e até que ponto poderiam aperfeiçoar-se e

esclarecer-se mutuamente homens que, não tendo domicílio fixo, nem nenhuma necessidade um do

outro, se encontrariam, talvez, apenas duas vezes na vida, sem se conhecerem e sem se falarem?

Que se pense de quantas idéias somos devedores ao uso da palavra; quanto a gramática exerce e

facilita as operações do espírito; e que se pense nas penas inconcebíveis e no tempo infinito que teve de

custar a primeira invenção das línguas; que se juntem essas reflexões às precedentes, e então se julgará

quantos milhares de séculos foram precisos para desenvolver sucessivamente no espírito humano as

operações de que é capaz.

Que me seja permitido considerar, por um instante, os embaraços da origem das línguas. Poderia

contentar-me em citar ou repetir aqui as pesquisas que o sr. abade de Condillac fez sobre essa matéria, as

quais confirmam plenamente o meu sentimento e talvez me tenham dado a respeito a primeira idéia. Mas,

a maneira pela qual esse filósofo resolve as dificuldades que cria para si mesmo sobre a origem dos sinais

instituídos, mostrando que supôs o que proponho, a saber, uma espécie de sociedade já estabelecida entre

os inventores da linguagem, creio, voltando às suas reflexões, dever acrescentar as minhas, para expor as

mesmas dificuldades no dia que convier ao meu tema. A primeira que se apresenta é imaginar como

puderam tornar-se necessárias; porque, não tendo os homens nenhuma correspondência entre si, nem

nenhuma necessidade de a ter, não se concebe nem a necessidade dessa invenção, nem a sua

possibilidade, se não fosse indispensável. Direi bem, como muitos outros, que as línguas nasceram da

convivência doméstica dos pais, das mães e dos filhos; mas, além disso não resolver as objeções, seria

cometer o erro dos que, raciocinando sobre o estado de natureza, para aí transportam as idéias tomadas

na sociedade, vêem sempre a família reunida em uma mesma habitação e as seus membros guardando

entre si uma união tão íntima e tão permanente como entre nós, onde tantos interesses comuns os

Discurso sobre a origem da desigualdade

file:///C|/site/livros_gratis/origem_desigualdades.htm (20 of 64) [11/10/2001 19:05:32]

O Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens pdf

reúnem; ao passo que, nesse estado primitivo, não tendo casas, nem cabanas, nem propriedades de

nenhuma espécie, cada qual se alojava ao acaso e muitas vezes por uma só noite; os machos e as fêmeas

se uniam fortuitamente, conforme o encontro, a ocasião e o desejo, sem que a palavra fosse intérprete

muito necessário das coisas que se deviam dizer: e se abandonavam com a mesma facilidade (12). A mãe

aleitava primeiro os filhos por sua própria necessidade; depois, tendo o hábito os tornado caros, nutria-os

pela necessidade deles; logo que tiveram força para procurar o próprio alimento, eles não tardaram em

deixar a própria mãe; e, como não houvesse quase outro meio de se encontrarem senão o de não se

perderem de vista, logo chegaram ao ponto de não se reconhecerem uns aos outros. Notai ainda que,

tendo o filho todas as suas necessidades que explicar, e por conseguinte mais coisas que dizer à mãe do

que a mãe ao filho, é ele que deve ter feito os maiores esforços de invenção, devendo a língua que

emprega ser em grande parte sua própria obra; isso multiplica tanto as línguas quantos indivíduos há para

as falar; para isso contribui ainda a vida errante e vagabunda, que não deixa a nenhum idioma o tempo de

tomar consistência; porque dizer que a mãe dita ao filho as palavras das quais deverá servir-se para lhe

pedir tal ou tal coisa, é o que mostra bem como se ensinam as línguas já formadas, mas não explica como

se formam.

Suponhamos vencida essa primeira dificuldade; transponhamos, por um momento, o espaço imenso

que deve encontrar-se entre o puro estado de natureza e a necessidade das línguas; e procuremos,

supondo-as necessárias (13), como puderam começar a se estabelecer. Nova dificuldade ainda pior do

que a precedente: porque, se os homens tiveram necessidade da palavra para aprender a pensar, tiveram

muito mais necessidade ainda de saber pensar para encontrar a arte da palavra; e, quando se

compreendesse como os sons da voz foram tomados por intérpretes convencionais de nossas idéias,

restaria sempre saber quais puderam ser os intérpretes mesmos dessa convenção para as idéias que, não

tendo um objeto sensível, não podiam indicar-se nem pelo gesto nem pela voz; de sorte que mal podemos

formar conjecturas suportáveis sobre o nascimento dessa arte de comunicar os pensamentos e estabelecer

um comércio entre os espíritos; arte sublime, que já está tão longe de sua origem, mas que o filósofo vê

ainda a tão prodigiosa distância de sua perfeição, que não há homem bastante ousado para assegurar que

ai chegaria, quando as revoluções, que o tempo necessariamente conduz fossem suspensas em seu favor,

os preconceitos saíssem das academias ou se calassem diante delas, e elas pudessem ocupar-se desse

objeto espinhoso durante séculos inteiros sem interrupção.

A primeira linguagem do homem, a linguagem mais universal, mais enérgica e a única de que teve

necessidade antes que fosse preciso persuadir homens reunidos, foi o grito da natureza. Como esse grito

não tivesse sido arrancado senão por uma espécie de instinto nas ocasiões prementes, para implorar

socorro nos grandes perigos ou alívio nos males violentos, não era de grande uso no curso ordinário da

vida, em que reinam sentimentos mais moderados. Quando as idéias dos homens começaram a se

estender e a se multiplicar, e se estabeleceu entre eles uma comunicação mais estreita, procuraram sinais

mais numerosos e uma linguagem mais extensa; multiplicaram as inflexões da voz e lhe juntaram os

gestos, que, por natureza, são mais expressivos, dependendo menos o seu sentido de uma determinação

interior. Assim, exprimiam os objetos visíveis e móveis por meio de gestos, e os que impressionam o

ouvido por meio de sons imitativos: mas, como o gesto só indica os objetos presentes ou fáceis de

descrever e as ações visíveis, não sendo de uso universal, de vez que a obscuridade ou a interposição de

um corpo o torna inútil, e exigindo a atenção mais do que a excita, foi ele substituído pelas articulações

da voz, que, sem terem a mesma relação com certas idéias, são mais próprias para representá-las todas

como sinais instituídos. Essa substituição só ponde ser feita por um consenso geral e de maneira bem

Discurso sobre a origem da desigualdade

file:///C|/site/livros_gratis/origem_desigualdades.htm (21 of 64) [11/10/2001 19:05:32]

difícil de praticar por homens cujos órgãos grosseiros não tinham ainda nenhum exercício, e mais difícil

ainda de conceber em si mesma, pois que esse acordo unânime teve de ser motivado, parecendo a palavra

ter sido muito necessária para estabelecer o uso da palavra.

Deve julgar-se que os primeiros vocábulos de que os homens fizeram uso tiveram no seu espírito uma

significação muito mais extensa do que as que se empregam nas línguas já formadas, e que, ignorando a

divisão do discurso em suas partes constitutivas, deram eles primeiro a cada palavra o sentido de uma

proposição inteira. Quando começaram a distinguir o sujeito do atributo e o verbo do nome, o que não foi

um medíocre esforço de gênio, os substantivos não passavam, a princípio, de outros tantos nomes

próprios, sendo o presente do infinitivo o único tempo dos verbos; e, em relação aos adjetivos, a noção

não devia ter sido desenvolvida senão muito dificilmente, porque todo adjetivo é uma palavra abstrata, e

as abstrações são operações penosas e pouco naturais. Cada objeto recebeu primeiro um nome particular,

sem relação com os gêneros e as espécies, que esses primeiros professores não estavam em condições de

distinguir; e todos os indivíduos se apresentaram isoladamente ao seu espírito como no quadro da

natureza. Se um carvalho se chamava A, outro carvalho se chamava B; porque a primeira idéia que se

deduz de duas coisas é que não são a mesma; e, em geral, é preciso muito tempo para observar o que têm

de comum; de sorte que, quanto mais limitados eram os conhecimentos, tanto mais extenso se tornava o

dicionário. O embaraço de toda essa nomenclatura não pode ser suprimido facilmente: porque, para

colocar em ordem os seres sob denominações genéricas e comuns, era preciso conhecer-lhes as

propriedades e as diferenças; eram necessárias observações e definições, isto é, história natural e

metafísica, muito mais do que os homens daquele tempo podiam ter.

Aliás, as idéias gerais só podem introduzir-se na espécie com o auxílio das palavras, e o entendimento

não as apreende senão por meio das proposições. É uma das razões por que os animais não poderiam

formar tais idéias, nem jamais adquirir a perfectibilidade que delas depende. Quando um macaco vai,

sem hesitar, de uma noz a outra, julga-se que tenha a idéia geral dessa espécie de fruta e que compare o

seu arquétipo a esses dois indivíduos? Não, sem dúvida; mas, a vista de uma dessas nozes lembra à sua

memória as sensações que recebeu da outra, e seus olhos, modificados de certa maneira, anunciam ao seu

gosto a modificação que vai receber. Toda idéia geral é puramente intelectual; por pouco que a

imaginação tome parte nela, a idéia se torna, logo particular. Procurai traçar a imagem de uma árvore em

geral, e jamais o conseguireis; contra a vossa vontade, é preciso vê-la grande ou pequena, desgalhada ou

copada, clara ou escura; e, se dependesse de vós não ver senão o que se acha em toda árvore, essa

imagem não se pareceria mais com uma árvore. Os seres puramente abstratos se vêem do mesmo modo,

ou não se concebem senão por meio do discurso. Só a definição do triângulo vos dá a verdadeira idéia:

logo que o figurais em vosso espírito, é um certo triângulo e não outro, e não podeis deixar de tornar as

suas linhas sensíveis ou o plano colorido. É preciso, pois, enunciar proposições, é preciso falar para ter

idéias gerais: porque, logo que a imaginação para, o espírito só marcha com o auxílio do discurso. Se,

pois, os primeiros inventores só puderam dar nomes às idéias que já tinham, resulta que os primeiros

substantivos só poderiam ter sido nomes próprios.

Mas quando, não posso conceber por que meios, os nossos novos gramáticos começaram a estender

suas idéias e a generalizar suas palavras, a ignorância dos inventores teve de sujeitar esse método a

limites muito estreitos; e como, primeiro, tinham multiplicado muito os nomes dos indivíduos, por não

conhecerem os gêneros e as espécies, em seguida fizeram muito poucas espécies e gêneros, por não

terem considerado os seres em todas as suas diferenças. Para levar as divisões bastante longe, eram

necessárias mais experiência e luzes do que podiam ter, e mais pesquisas e trabalho do que queriam

Discurso sobre a origem da desigualdade

file:///C|/site/livros_gratis/origem_desigualdades.htm (22 of 64) [11/10/2001 19:05:32]

O Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens pdf

empregar. Ora, se, ainda hoje, se descobrem cada dia novas espécies que até aqui tinham escapado a

todas as nossas observações, que se imagine quantas escapariam a homens que julgavam as coisas pelo

primeiro aspecto. Quanto às classes primitivas e às noções mais gerais, é supérfluo acrescentar que

deviam escapar-lhes também. Como, por exemplo, teriam eles imaginado ou entendido as palavras

matéria, espírito, substância, modo, figura, movimento, quando até os nossos filósofos, que delas se

servem há tanto tempo, custam tanto a entendê-las, e quando as idéias ligadas a essas palavras, sendo

puramente metafísicas, não encontravam para elas nenhum modelo na natureza?

Paro nesses primeiros passos e suplico aos meus juizes que suspendam aqui a leitura para considerar,

sobre a invenção dos únicos substantivos físicos, isto é, sobre a parte da língua mais fácil de ser

encontrada, o caminho que lhe resta percorrer para exprimir todos os pensamentos dos homens, para

tomar uma forma constante, para poder ser falada em público, e influir sobre a sociedade: suplico-lhes

que reflitam sobre quanto tempo e quantos conhecimentos foram necessários para encontrar os números

(14), as palavras abstratas, os aoristos, e todos os tempos dos verbos, as partículas, a sintaxe, ligar as

proposições, os raciocínios, e formar toda a lógica do discurso. Quanto a mim, horrorizado com as

dificuldades que se multiplicam, e convencido da impossibilidade quase demonstrada de que as línguas

tenham podido nascer e se estabelecer por meios puramente humanos, deixo a quem quiser empreendê-la

a discussão deste difícil problema: o que foi mais necessário, a sociedade já ligada à instituição das

línguas, ou as línguas já inventadas para o estabelecimento da sociedade.

Quaisquer que sejam essas origens, vê-se, pelo menos, no pouco de cuidado que tomou a natureza de

aproximar os homens por necessidades mútuas e de lhes facilitar o uso da palavra, como preparou pouco

a sua sociabilidade, e como pôs pouco de seu em tudo que eles fizeram para estabelecer esses limites.

Efetivamente, é impossível imaginar porque, nesse estado primitivo um homem teria mais necessidade

de outro homem do que um macaco ou um lobo do seu semelhante; e, supondo essa necessidade, que

motivo poderia levar o outro a provê-la; ou, nesse último caso, de que modo poderiam convir entre eles

as condições. Sei que nos repetem sem cessar que nada foi tão miserável como o homem nesse estado; e,

se é verdade, como creio haver provado, que só depois de muitos séculos pode ele ter o desejo e a

ocasião de sair dele, isso seria um processo que fazer à natureza e não àquele que ela assim tivesse

constituído. Mas, se entendo bem o termo miserável, trata-se de uma palavra que não tem nenhum

sentido, ou que significa apenas uma provação dolorosa, o sofrimento do corpo ou da alma: ora, eu só

desejaria que me explicassem qual pode ser o gênero de miséria de um ser livre cujo coração está em paz

e o corpo com saúde. Pergunto qual, a vida civil ou a natural, está mais sujeita a se tornar insuportável

para os que a gozam. Em torno de nós, quase que só vemos pessoas que se lastimam de sua existência, e

muitas mesmo que se privam dela tanto quanto o podem; e a reunião das leis divina e humana mal basta

para deter essa desordem. Pergunto se jamais se ouviu dizer que um selvagem em liberdade tenha

somente pensado em se lastimar da vida e em se suicidar. Que se julgue, pois, com menos orgulho, de

que lado está a verdadeira miséria. Ninguém, ao contrário, foi mais miserável do que o homem selvagem

deslumbrado pelas luzes, atormentado pelas paixões, e raciocinando sobre um estado diferente do seu.

Foi por uma providência muito sábia que as faculdades que ele tinha em potência só deviam

desenvolver-se com as ocasiões de as exercer, a fim de que não lhe fossem nem supérfluas e cometidas

antes do tempo, nem tardias e inúteis às suas necessidades. Só no instinto, tinha ele tudo o de que

necessitava para viver em estado de natureza; numa razão cultivada, tem apenas o que lhe é preciso para

viver em sociedade.

Discurso sobre a origem da desigualdade

file:///C|/site/livros_gratis/origem_desigualdades.htm (23 of 64) [11/10/2001 19:05:32]

O Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens pdf

Parece, à primeira vista, que os homens nesse estado, não tendo entre si nenhuma espécie de relação

moral nem de deveres conhecidos, não podiam ser bons nem maus, nem tinham vícios nem virtudes, a

menos que, tomando essas palavras em um sentido físico, se chamem vícios, no indivíduo, as qualidades

que podem prejudicar a sua própria conservação, e virtudes as que podem contribuir para essa

conservação. Nesse caso, seria preciso chamar de mais virtuoso aquele que menos resistisse aos simples

impulsos da natureza. Mas, sem nos desviarmos do sentido comum, vem a propósito suspender o juízo

que poderíamos fazer de tal situação e desconfiar dos nossos preconceitos até que, balança na mão, se

tenha examinado se há mais virtudes do que vícios entre os homens civilizados ou se suas virtudes são

mais vantajosas do que os seus vícios funestos, ou se o progresso dos seus conhecimentos é uma

compensação suficiente dos males que se fazem mutuamente à medida que se instruem sobre o bem que

se deveriam fazer ou se não estariam, afinal de contas, em uma situação mais feliz não tendo nem mal

que temer nem bem que esperar de ninguém do que estando submetidos a uma dependência universal e

obrigados a tudo receber daqueles que não se obrigam a lhes dar coisa alguma.

Não vamos, principalmente concluir com Hobbes que, por não ter nenhuma idéia de bondade, o

homem seja naturalmente mau; que seja vicioso, porque não conhece a virtude; que recuse sempre aos

seus semelhantes serviços que não acredita serem do seu dever; ou que, em virtude do direito que se

atribui com razão às coisas de que tem necessidade, imagine loucamente ser o único proprietário de todo

o universo. Hobbes viu muito bem o defeito de todas as definições modernas do direito natural: mas, as

conseqüências que tira da sua mostram que a toma em um sentido que não é menos falso. Raciocinando

sobre os princípios que estabelece, esse autor deveria dizer que, sendo o estado de natureza aquele em

que o cuidado de nossa conservação é menos prejudicial à dos outros, esse estado era, por conseguinte, o

mais próprio à paz e o mais conveniente ao gênero humano. Diz precisamente o contrário, por ter feito

entrar, fora de propósito, no cuidado da conservação do homem selvagem, a necessidade de satisfazer

uma multidão de paixões que são obra da sociedade e que tornaram necessárias as lei. O mau, diz ele, é

uma criança robusta. Resta saber se o selvagem é uma criança robusta. Quando se concordasse com ele,

que se concluiria? Que, se esse homem, sendo robusto, era tão dependente dos outros como quando

fraco, não há excessos aos quais não se entregasse: batendo na própria mãe quando ela demorasse muito

a lhe dar de mamar; estrangulando um irmão menor quando por ele incomodado; mordendo a perna de

outro quando nele esbarrasse ou fosse por ele importunado. Mas, são duas suposições contraditórias no

estado de natureza: ser robusto e dependente. O homem é fraco quando dependente, e emancipado antes

de ser robusto. Hobbes não viu que a mesma causa que impede os selvagens de usar a razão, como o

pretendem os nossos jurisconsultos, impede-os também de abusar das suas faculdades, como ele próprio

o pretende; de sorte que se poderia dizer que os selvagens não são maus, precisamente porque não sabem

o que é ser bom. Com efeito, não é nem o desenvolvimento das luzes, nem o freio da lei, mas a calma das

paixões e a ignorância do vício que os impedem de fazer mal: Tanto plus in illis proficit vitiorum

ignoratio, quam in his cognitio virtutis. Aliás, há outro princípio que Hobbes não percebeu e que, tendo

sido dado ao homem para suavizar em certas ocasiões a ferocidade de seu amor próprio ou o desejo de se

conservar antes do nascimento desse amor (15), tempera o ardor que ele tem por seu bem-estar com uma

repugnância inata de ver sofrer seu semelhante. Não creio ter contradição alguma que temer concedendo

ao homem a única virtude natural que o detrator mais extremado das virtudes humanas é forçado a

reconhecer. Refiro-me à piedade, disposição conveniente a seres tão fracos e sujeitos a tantos males

como nós; virtude tanto mais universal quanto mais útil ao homem que precede nele ao uso de toda

reflexão, e tão natural que os próprios animais dão, às vezes, sinais sensíveis dela; sem falar da ternura

das mães pelos filhos e dos perigos que afrontam para defendê-los, observamos todos os dias a

Discurso sobre a origem da desigualdade

file:///C|/site/livros_gratis/origem_desigualdades.htm (24 of 64) [11/10/2001 19:05:32]

repugnância que têm os cavalos em pisar um corpo vivo. Um animal não passa sem inquietação perto de

um animal morto de sua espécie: alguns lhes dão mesmo uma espécie de sepultura; e os tristes mugidos

do gado, ao entrar no matadouro, anunciam a impressão que ele recebe do horrível espetáculo que o

comove. Vê-se, com prazer, o autor da Fábulas das Abelhas, forçado a reconhecer o homem como um ser

compassivo e sensível, sair, no exemplo que dá do seu estilo frio e sutil, para nos oferecer a patética

imagem de um homem fechado que percebe, fora, uma besta feroz arrebatando uma criança do seio da

mãe, quebrando com os dentes assassinos os seus frágeis membros e despedaçando com as unhas as

entranhas palpitantes dessa criança. Que horrível agitação experimenta a testemunha de um

acontecimento no qual não tem nenhum interesse pessoal! que angústia não sofre ao ver tal coisa, sem

poder socorrer a mãe desfalecida ou a criança em agonia!

Tal é o puro movimento da natureza, anterior a toda reflexão; tal é a força da piedade natural, que os

costumes mais depravados ainda têm dificuldade em destruir, pois vemos todos os dias, nos nossos

espetáculos, toda a gente se enternecer e chorar pelas desgraças de um infeliz, como se estivesse cada

qual no lugar do tirano e agravasse ainda mais os tormentos do seu inimigo: como o sanguinário Sila, tão

sensível aos males que não causara, ou Alexandre de Feras, que não ousava assistir à representação de

nenhuma tragédia, com medo de que o vissem gemer com Andrômaca e Priamo, enquanto escutava sem

emoção os gritos de tantos cidadãos que se degolavam todos os dias por sua ordem.

Mollissima corda

Humano generi dare se natura fatetur,

Quoe lacrymas dedit.

Mandeville sentiu bem que, com toda a sua moral, os homens nunca teriam passado de monstros, se a

natureza não lhes desse a piedade em apoio da razão: mas não viu que dessa única qualidade decorrem

todas as virtudes sociais que quer disputar aos homens. Efetivamente, que é a generosidade, a demência,

a humanidade, senão a piedade aplicada aos fracos, aos culpados, ou à espécie humana em geral? Mesmo

a amizade e a benevolência são, afinal de contas, produções de uma piedade constante, fixada sobre um

objeto particular: com efeito, desejar que alguém não sofra, que outra coisa é senão desejar que seja

feliz? Mesmo que fosse verdade que a comiseração não passa de um sentimento que nos põe no lugar

daquele que sofre, sentimento obscuro e vivo no homem selvagem, desenvolvido mas fraco no homem

civilizado, que importaria essa idéia à verdade do que digo, a não ser para lhe dar mais força?

Efetivamente, a comiseração será tanto mais enérgica quanto o animal espectador se identificar mais

intimamente com o animal sofredor. Ora, é evidente que essa identificação teve de ser infinitamente mais

estreita no estado de natureza que no estado de raciocínio. É a razão que engendra o amor próprio, e é a

reflexão que o fortifica; é ela que faz o homem cair em si; é ela que o separa de tudo que o incomoda e o

aflige. É a filosofia que o isola; é por ela que ele diz em segredo, ao ver um homem que sofre: "Morre, se

queres; estou em segurança". Só os perigos da sociedade inteira perturbam o sono tranqüilo do filósofo e

o fazem levantar-se do leito. Pode-se impunemente degolar o semelhante debaixo da janela; é só tapar os

ouvidos e argumentar um pouco, para impedir que a natureza, revoltando-se nele, o identifique com

aquele que se assassina. O homem selvagem não tem esse admirável talento, e, por falta de sabedoria e

Discurso sobre a origem da desigualdade

file:///C|/site/livros_gratis/origem_desigualdades.htm (25 of 64) [11/10/2001 19:05:32]

de razão, vemo-lo sempre entregar-se, aturdido, ao primeiro sentimento de humanidade. Nos motins, nas

brigas de rua, a populaça se aglomera, e o homem prudente se afasta; é a canalha, são as mulheres dos

mercados que separam os combatentes e impedem a gente honesta de se degolar mutuamente.

É, pois, bem certo que a piedade é um sentimento natural, que, moderando em cada indivíduo a

atividade do amor de si mesmo, concorre para a conservação mútua de toda a espécie. É ela que nos leva

sem reflexão em socorro daqueles que vemos sofrer; é ela que, no estado de natureza, faz as vezes de lei,

de costume e de virtude, com a vantagem de que ninguém é tentado a desobedecer à sua doce voz; é ela

que impede todo selvagem robusto de arrebatar a uma criança fraca ou a um velho enfermo sua

subsistência adquirida com sacrifício, se ele mesmo espera poder encontrar a sua alhures; é ela que, em

vez desta máxima sublime de justiça raciocinada, Faze a outrem o que queres que te façam, inspira a

todos os homens esta outra máxima de bondade natural, bem menos perfeita, porém mais útil, talvez, do

que a precedente: Faze o teu bem com o menor mal possível a outrem. Em uma palavra, é nesse

sentimento natural, mais do que em argumentos sutis, que é preciso buscar a causa da repugnância que

todo homem experimentaria em fazer mal, mesmo independentemente das máximas da educação.

Embora possa competir a Sócrates e aos espíritos da sua têmpera adquirir a virtude pela razão, há muito

tempo que o gênero humano não mais existiria se a sua conservação tivesse dependido exclusivamente

dos raciocínios dos que o compõem.

Com paixões tão pouco ativas e um freio tão salutar, os homens, mais ferozes do que maus, e mais

atentos em se preservar do mal que podiam receber do que tentados a fazê-lo a outrem, não estavam

sujeitos a contendas muito perigosas: como não tinham entre si nenhuma espécie de comércio, e não

conheciam, por conseguinte, nem a vaidade nem a consideração, nem a estima, nem o desprezo; como

não tinham a menor noção do teu e do meu, nem nenhuma verdadeira idéia da justiça; como encaravam

as violências que podiam sofrer como um mal fácil de reparar, e não como injúria que é preciso punir, e

não pensavam mesmo em vingança, senão talvez maquinal e imediatamente, como o cão que morde a

pedra que lhe atiram, suas disputas raramente teriam tido conseqüências sangrentas, se não tivessem tido

motivo mais sensível do que o alimento. Mas, vejo uma coisa mais perigosa de que me resta falar.

Entre as paixões que agitam o coração do homem, há uma ardente, impetuosa, que torna um sexo

necessário ao outro; paixão terrível que arrosta todos os perigos, derruba todos os obstáculos e, em seus

furores, parece própria para destruir o gênero humano, que ela é destinada a conservar. Em que se

transformarão os homens, presas desse furor desesperado e brutal, sem pudor, sem moderação, e se

disputando todos os dias o amor à custa de sangue?

É preciso convir, primeiro, que, quanto mais violentas as paixões, mais necessárias são as leis para

contê-las: mas, além das desordens e dos crimes que as paixões causam todos os dias entre nós,

mostrarem toda a insuficiência das leis a esse respeito, seria bom examinar ainda se essas desordens não

nasceram com as próprias leis; porque, então, quando estas fossem capazes de as reprimir, o menos que

se deveria exigir delas seria fazer cessar um mal que não existiria sem elas.

Comecemos por distinguir o moral do físico no sentimento do amor. O físico é esse desejo geral que

leva um sexo a se unir ao outro. O moral é o que determina esse desejo e o fixa sobre um único objeto

exclusivamente, ou que pelo menos lhe dá, em relação a esse objeto preferido, um maior grau de energia.

Ora, é fácil ver que o moral do amor é um sentimento factício nascido dos costumes da sociedade e

celebrado pelas mulheres com muita habilidade e cuidado para estabelecerem o seu império e tornar

Discurso sobre a origem da desigualdade

file:///C|/site/livros_gratis/origem_desigualdades.htm (26 of 64) [11/10/2001 19:05:32]

dominante o sexo que deveria obedecer. Fundado sobre certas noções do mérito ou da beleza, que um

selvagem não está em condições de ter, e sobre comparações, que não está em estado de fazer, deve esse

sentimento ser quase nulo para ele: porque, como seu espírito não pode formar idéias de regularidade e

proporção, o coração também não é suscetível dos sentimentos de admiração e de amor, os quais, mesmo

que não se perceba, nascem da aplicação dessas idéias: ele escuta unicamente o temperamento que

recebeu da natureza, e não o gosto que não pode adquirir, sendo toda mulher boa para ele.

Limitados somente à parte física do amor, e bastante felizes para ignorar essas preferências que lhe

irritam o sentimento e aumentam as dificuldades, os homens devem sentir menos freqüente e menos

vivamente os ardores do temperamento, e, por conseguinte, ter entre si disputas mais raras e menos

cruéis. A imaginação, que faz tantos estragos entre nós, não fala a corações selvagens; cada um espera

pacificamente o impulso da natureza, a ele se entregando sem escolha, com mais prazer do que furor; e,

satisfeita a necessidade, todo o desejo se extingue.

É, pois, coisa incontestável que o próprio amor, como todas as outras paixões, só na sociedade

adquiriu esse ardor impetuoso que tantas vezes o torna funesto aos homens; e é tanto mais ridículo

imaginar os selvagens como se estrangulando sem cessar para saciar a sua brutalidade, quanto essa

opinião é diretamente contrária à experiência, e os caraibas, de todos os povos existentes o que, até aqui,

menos se afastou do estado de natureza, são precisamente os mais pacíficos nos seus amores e os menos

sujeitos ao ciúme, embora vivendo num clima escaldante, que parece dar a essas paixões uma atividade

cada vez maior.

Relativamente às induções que se poderiam tirar, em várias espécies de animais, dos combates dos

machos que ensangüentam constantemente os nossos terreiros, ou que, disputando a fêmea na primavera,

fazem retumbar as florestas com seus gritos, é preciso começar por excluir todas as espécies em que a

natureza estabeleceu manifestamente, na potência relativa dos sexos, relações que não há entre nós:

assim, as brigas dos galos não formam uma indução para a espécie humana. Nas espécies em que a

proporção é mais bem observada, esses combates só podem ter como causa a raridade das fêmeas em

relação ao número de machos, ou os intervalos exclusivos durante os quais a fêmea recusa

constantemente a aproximação do macho, o que eqüivale à primeira causa; porque, se cada fêmea só

suporta o macho durante dois meses do ano, a esse respeito é como se o número das fêmeas estivesse

abaixo de cinco sextos. Ora, nenhum desses dois casos é aplicável à espécie humana, em que o número

de fêmeas ultrapassa, em geral, o dos machos, em que nunca se observou, mesmo entre os selvagens, que

as fêmeas tenham, como as das outras espécies, épocas de calor e de exclusão. De resto, entre muitos

desses animais, toda a espécie entrando ao mesmo tempo em efervescência, vem um momento terrível de

ardor comum, de tumulto, de desordem e de combate: momento que não existe para a espécie humana, na

qual o amor nunca é periódico. Não se pode concluir, pois, dos combates de certos animais pela posse

das fêmeas, que a mesma coisa acontecesse ao homem no estado de natureza; e, ainda mesmo que se

pudesse tirar essa conclusão, como essas dissenções não destroem as outras espécies, deve-se pensar ao

menos que não seriam mais funestas à nossa espécie; e é muito aparente que elas causassem ainda menos

devastação do que na sociedade, principalmente nos países em que, sendo os costumes ainda contados

para alguma coisa, o ciúme dos amantes e a vingança dos esposos causam todos os dias duelos,

assassínios e coisas piores ainda; em que o dever de uma eterna fidelidade só serve para provocar

adultérios, e em que as próprias leis da continência e da honra estendem necessariamente o deboche e

multiplicam os abortos.

Discurso sobre a origem da desigualdade

file:///C|/site/livros_gratis/origem_desigualdades.htm (27 of 64) [11/10/2001 19:05:32]

Concluamos que, errando nas florestas, sem indústria, sem palavra, sem domicílio, sem guerra e sem

ligação, sem nenhuma necessidade dos seus semelhantes, assim como sem nenhum desejo de os

prejudicar, talvez mesmo sem jamais se reconhecerem individualmente, o homem selvagem, sujeito a

poucas paixões e bastando-se a si mesmo, tinha somente os sentimentos e as luzes próprias desse estado;

que não sentia senão as suas verdadeiras necessidades, não olhava senão o que acreditava ter interesse de

ver; e que sua inteligência não fazia mais progressos do que a sua vaidade. Se, por acaso, fazia alguma

descoberta, podia tanto menos comunicá-la do que nem mesmo reconhecia seus filhos. A arte perecia

com o inventor. Não havia educação nem progresso; as gerações se multiplicavam inutilmente; e,

partindo cada uma sempre do mesmo ponto, os séculos se escoavam em toda a grosseria das primeiras

idades; a espécie já estava velha, e o homem conservava-se sempre criança.

Se me estendi tanto sobre a suposição dessa condição primitiva, é que, havendo antigos erros e

preconceitos inveterados que destruir, julguei dever cavar até à raiz e mostrar, no quadro do verdadeiro

estado de natureza, como a desigualdade, mesmo natural, está longe de ter nesse estado tanta realidade e

influência como pretendem os nossos escritores.

Efetivamente, é fácil ver que, entre as diferenças que distinguem os homens, muitas passam por

naturais, quando são unicamente a obra do hábito e dos diversos gêneros de vida adotados pelos homens

na sociedade. Assim, um temperamento robusto ou delicado, a força ou a fraqueza que disso dependem,

vêm muitas vezes mais da maneira dura ou efeminada pela qual foi educado do que da constituição

primitiva dos corpos. Acontece o mesmo com as forças do espírito, e a educação não só estabelece

diferença entre os espíritos cultivados e os que não o são, como aumenta a que se acha entre os primeiros

à proporção da cultura; com efeito, quando um gigante e um anão marcham na mesma estrada, cada

passo representa nova vantagem para o gigante. Ora, se se comparar a diversidade prodigiosa do estado

civil com a simplicidade e a uniformidade da vida animal e selvagem, em que todos se nutrem dos

mesmos alimentos, vivem da mesma maneira e fazem exatamente as mesmas coisas, compreender-se-á

quanto a diferença de homem para homem deve ser menor no estado de natureza do que no de sociedade;

e quanto a desigualdade natural deve aumentar na espécie humana pela desigualdade de instituição.

Mas, quando a natureza afetasse, na distribuição dos seus dons, tantas preferências como se pretende,

que vantagem os mais favorecidos tirariam disso, com prejuízo dos outros, em um estado de coisas que

não admitiria quase nenhuma espécie de relações entre eles? Onde não há amor, de que servirá a beleza?

De que serve o espírito a pessoas que não falam, e a astúcia às que não têm negócios? Ouço sempre

repetir que os mais fortes oprimirão os fracos. Mas, que me expliquem o que querem dizer com a palavra

opressão. Uns dominarão com violência, outros gemerão sujeitos a todos os seus caprichos. Eis,

precisamente, o que se observa entre nós; mas, não vejo como se poderia dizer o mesmo dos selvagens, a

quem seria dificílimo fazer perceber o que é servidão e dominação. Um homem poderá se apoderar dos

frutos colhidos por outro, da caça que o outro matou, do antro que lhe servia de asilo; mas, como poderá

conseguir fazer-se obedecer? e quais poderiam ser as cadeias da dependência entre homens que não

possuíam nada? Se me expulsam de uma árvore, estou livre para ir para outra; se me atormentam em um

lugar, quem me impedirá de passar para outro? Se encontro um homem de força muito superior à minha,

e, além disso, muito depravado, muito preguiçoso e muito feroz, para me constranger a prover à sua

subsistência enquanto ele permanece ocioso, é preciso que ele se resolva a não me perder de vista um só

instante, que me deixe amarrado com grande cuidado enquanto dorme, de medo que eu escape ou que o

mate; isto é, fica obrigado a se expor voluntariamente a um trabalho muito maior do que o que quer

evitar, e do que o que me dá a mim mesmo. Depois de tudo isso, sua vigilância se relaxa por um

Discurso sobre a origem da desigualdade

file:///C|/site/livros_gratis/origem_desigualdades.htm (28 of 64) [11/10/2001 19:05:32]

O Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens pdf

momento, um barulho imprevisto fá-lo voltar a cabeça: dou vinte passos na floresta, meus ferros se

quebram, e nunca mais me tornará a ver.

Sem prolongar inutilmente esses detalhes, cada qual deve ver que, sendo os laços da servidão

formados exclusivamente da dependência mútua dos homens e das necessidades recíprocas que os unem,

é impossível sujeitar um homem sem o pôr antes na situação de não poder passar sem outro homem;

situação que, não existindo no estado de natureza, deixa cada um livre do jugo e torna vã a lei do mais

forte.

Depois de haver provado que a desigualdade é apenas sensível no estado de natureza, sendo a sua

influência quase nula, resta-me mostrar sua origem e seus progressos nos desenvolvimentos sucessivos

do espírito humano. Depois de haver mostrado que a perfectibilidade, as virtudes sociais e as outras

faculdades que o homem natural recebera em potencial, jamais podiam desenvolver-se por si mesmas,

que para isso tinham necessidade do concurso fortuito de muitas causas estranhas, que poderiam não

nascer nunca, e sem as quais é preciso ficar eternamente na sua condição primitiva, resta-me considerar e

aproximar os diversos acasos que puderam aperfeiçoar a razão humana deteriorando a espécie, tornar um

ser mau fazendo-o social e, de um termo tão distante, conduzir enfim o homem e o mundo ao ponto em

que os vemos.

Confesso que os acontecimentos que tenho que descrever, tendo podido manifestar-se de diversas

maneiras, não me posso determinar sobre a escolha senão por conjecturas, mas, além de que essas

conjecturas se tornam razões quando são as mais prováveis que se podem tirar da natureza das coisas e os

únicos meios que se podem ter para descobrir a verdade, as conseqüências que quero deduzir das minhas

não serão por isso conjecturais, pois, que, sobre os princípios que acabo de estabelecer, não se poderia

formar nenhum outro sistema que me não forneça os mesmos resultados e do qual eu não possa tirar as

mesmas conclusões.

Isso me dispensará de estender minhas reflexões sobre a maneira pela qual o lapso de tempo

compensa o pouco de verosimilhança dos acontecimentos; sobre o poder surpreendente das causas muito

leves, quando agem sem interrupção; sobre a impossibilidade em que estamos de destruir, de um lado,

certas hipóteses, quando do outro, nos achamos incapazes de lhes dar o grau de certeza dos fatos; sobre o

que, dados dois fatos como reais que ligar por uma série de fatos intermediários, desconhecidos, ou

observados como tais, cabe à história, quando a temos, dar os fatos que os liguem; cabe à filosofia, na

sua falta, determinar os fatos semelhantes que os podem ligar; enfim, sobre o que, em matéria de

acontecimentos, a similitude reduz os fatos a um número muito menor de classes diferentes do que se

imagina. É-me suficiente oferecer esses objetos à consideração dos meus juizes; é-me suficiente ter agido

de maneira que os leitores vulgares não tivessem necessidade de os considerar.

SEGUNDA PARTE

primeiro que, tendo cercado um terreno, se lembrou de dizer: Isto é meu, e encontrou

pessoas bastantes simples para o acreditar, foi o verdadeiro fundador da sociedade civil.

Quantos crimes, guerras, assassínios, misérias e horrores não teria poupado ao gênero

humano aquele que, arrancando as estacas ou tapando os buracos, tivesse gritado aos seus

Discurso sobre a origem da desigualdade

file:///C|/site/livros_gratis/origem_desigualdades.htm (29 of 64) [11/10/2001 19:05:32]

O Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens pdf

semelhantes: "Livrai-vos de escutar esse impostor; estareis perdidos se esquecerdes que os

frutos são de todos, e a terra de ninguém !". Parece, porém, que as coisas já tinham chegado ao ponto de

não mais poder ficar como estavam: porque essa idéia de propriedade, dependendo muito de idéias

anteriores que só puderam nascer sucessivamente, não se formou de repente no espírito humano: foi

preciso fazer muitos progressos, adquirir muita indústria e luzes, transmiti-las e aumentá-las de idade em

idade, antes de chegar a esse último termo do estado de natureza. Retomemos, pois, as coisas de mais

alto, e tratemos de reunir, sob um só ponto-de-vista, essa lenta sucessão de acontecimentos e de

conhecimentos na sua ordem mais natural.

O primeiro sentimento do homem foi o de sua existência; o seu primeiro cuidado, o de sua

conservação. As produções da terra lhe forneciam todos os socorros necessários; o instinto o levou a

fazer uso delas. A fome, outros apetites, fazendo-o experimentar, alternativamente, diversas maneiras de

existir, houve uma que o convidou a perpetuar a sua espécie; e esse pendor cego, desprovido de todo

sentimento de coração, não produzia senão um ato puramente animal: satisfeita a necessidade, os dois

sexos nunca mais se reconheciam e o próprio filho nada mais representava para a mãe logo que podia

passar sem ela.

Tal foi a condição do homem ao nascer; tal foi a vida de um animal, limitada primeiro às puras

sensações e aproveitando apenas os dons que lhe oferecia a natureza, longe de pensar em lhe arrancar

alguma coisa. Mas, logo, surgiram dificuldades; foi preciso aprender a vencê-las: a altura das árvores que

o impedia de alcançar os frutos, a concorrência dos animais que também procuravam nutrir-se, a

ferocidade dos que queriam a sua própria vida, tudo o obrigou a aplicar-se aos exercícios do corpo; foi

preciso tornar-se ágil, rápido na carreira, vigoroso no combate. As armas naturais, que são os galhos das

árvores e as pedras, em breve estavam nas suas mãos. Aprendeu a vencer os obstáculos da natureza, a

combater quando necessário os outros animais, a disputar sua subsistência aos próprios homens, ou a se

compensar do que era preciso ceder ao mais forte.

A medida que o gênero humano se estendia, as penas se multiplicavam com os homens. A diferença

dos terrenos, dos climas, das estações, forçou-os a estabelecê-la na maneira de viver. Anos estéreis,

invernos longos e rudes, verões escaldantes, que tudo consomem, exigiram deles uma nova indústria. Ao

longo do mar e dos rios, inventaram a linha e o anzol, e se tornaram pescadores e ictiófagos. Nas

florestas, fizeram arcos e flechas, e se tornaram caçadores e guerreiros. Nos países frios, cobriram-se de

peles de animais por eles mortos. O trovão, um visão, ou qualquer feliz acaso, lhes fez conhecer o fogo,

novo recurso contra o rigor do inverno: aprenderam a conservar esse elemento, depois a reproduzi-lo, e

enfim a preparar nele as carnes, que antes devoravam cruas.

Essa aplicação reiterada de seres diversos a si mesmos e de uns aos outros teve, naturalmente, de

engendrar, no espírito do homem, as percepções de certas relações. Essas relações, que exprimimos pelas

palavras grande, pequeno, forte, fraco, depressa, devagar, medroso, ousado, e outras idéias semelhantes,

comparadas quando necessário, e quase sem nisso pensar, produziram nele, finalmente, uma espécie de

reflexão, ou antes, uma prudência maquinal que lhe indicava as precauções mais necessárias à sua

segurança. As novas luzes que resultaram desse desenvolvimento aumentaram a sua superioridade sobre

os outros animais, fazendo-lhe conhecê-la. Exercitou-se em lhes preparar armadilhas, logrou-os de mil

maneiras; e, embora muitos o ultrapassassem em força no combate, ou em ligeireza na corrida, daqueles

que o podiam servir ou prejudicar, tornou-se com o tempo o senhor de uns e o flagelo de outros. E,

assim, o primeiro olhar que lançou sobre si mesmo lhe produziu o primeiro movimento de orgulho;

Discurso sobre a origem da desigualdade

file:///C|/site/livros_gratis/origem_desigualdades.htm (30 of 64) [11/10/2001 19:05:32]

assim, mal sabendo ainda distinguir as ordens e contemplando-se como o primeiro por sua espécie,

preparava-se já para pretender o mesmo como indivíduo.

Embora os seus semelhantes não fossem para ele o que são para nós, e embora não tivesse mais

comércio com eles do que com os outros animais, não foram esquecidos nas suas observações. As

semelhanças que o tempo lhe pode fazer perceber entre eles, sua fêmea é ele mesmo, lhe fizeram julgar

das que não percebia; e, vendo que todos se conduziam como teria feito ele próprio em circunstâncias

semelhantes, concluiu que a sua maneira de pensar e de sentir era inteiramente conforme à sua. E, essa

importante verdade, bem estabelecida em seu espírito, lhe fez seguir, por um pressentimento tão seguro e

mais pronto do que a dialética, as melhores regras de conduta que, para sua vantagem e segurança, lhe

convinha observar para com eles.

Instruído pela experiência de que o amor do bem-estar é o único móvel das ações humanas, achou-se

em estado de distinguir as raras ocasiões em que o interesse comum lhe devia fazer contar com a

assistência dos seus semelhantes, e as mais raras ainda em que a concorrência lhe devia fazer desconfiar

deles. No primeiro caso, unia-se a eles em rebanho, ou quando muito por uma espécie de associação livre

que não obrigava a ninguém e que só durava enquanto havia a necessidade passageira que a havia

formado. No segundo, cada qual procurava tirar suas vantagens, ou pela força aberta, se acreditava poder,

ou pela astúcia e sutileza, se se sentia mais fraco.

Eis como os homens puderam, insensivelmente, adquirir uma idéia grosseira dos compromissos

mútuos e da vantagem de os cumprir, mas somente na medida em que podia exigi-lo o interesse presente

e sensível; porque a previdência nada era para eles; e, longe de se ocuparem com um porvir afastado,

nem mesmo pensavam no dia seguinte. Se se tratava de pegar um veado, cada qual sentia bem que, para

isso, devia ficar no seu posto; mas, se uma lebre passava ao alcance de algum, é preciso não duvidar de

que a perseguia sem escrúpulos e, uma vez alcançada a sua presa, não lhe importava que faltasse a dos

companheiros.

É fácil compreender que tal comércio não exigia uma linguagem mais refinada do que a das gralhas

ou a dos macacos que se reúnem em bandos mais ou menos semelhantes. Gritos inarticulados, muitos

gestos e alguns ruídos imitativos deviam compor, durante muito tempo, a língua universal;

acrescentem-se a isso, em cada região, alguns sons articulados e convencionais, cuja instituição, como já

disse, não é muito fácil explicar, e temos línguas particulares, mas grosseiras, imperfeitas e mais ou

menos como as que ainda hoje têm diversas nações selvagens.

Percorri, como um traço, multidões de séculos, forçado pelo tempo que se escoa, pela abundância das

coisas que tenho que dizer e pelo progresso quase insensível dos começos; porque, quanto mais lentos

em se suceder eram os acontecimentos, tanto mais estão prontos para serem descritos.

Esses primeiros progressos colocaram, finalmente, o homem ao alcance de os fazer mais rápidos.

Quanto mais o espírito se esclarecia, tanto mais a indústria se aperfeiçoava. Logo, deixando de

adormecer na primeira árvore, ou de se retirar nas cavernas, encontraram-se certas espécies de machados

de pedras duras e afiadas que serviram para cortar a madeira, cavar a terra e fazer cabanas de galhos, que

ocorreu, em seguida, endurecer com argila e barro. Foi a época de uma primeira revolução que formou o

estabelecimento e a distinção das famílias e que introduziu uma espécie de propriedade, de onde já

nasceram, talvez, muitas rixas e combates. Entretanto, como os mais fortes foram, provavelmente, os

Discurso sobre a origem da desigualdade

file:///C|/site/livros_gratis/origem_desigualdades.htm (31 of 64) [11/10/2001 19:05:32]

primeiros a fazer alojamentos que se sentiam capazes de defender, é de se acreditar que os fracos tenham

achado mais simples e mais seguro imitá-los do que tentar desalojá-los: e, quanto aos que já tinham

cabanas, cada qual pouco procurou apropriar-se da do vizinho, menos porque lhe não pertencia do que

lhe era inútil, não podendo apossar-se dela sem se expor a um combate muito vivo com a família que a

ocupava.

Os primeiros desenvolvimentos do coração foram o efeito de uma situação nova que reunia em uma

habitação comum os maridos e as mulheres, os pais e os filhos. O hábito de viver coletivamente fez

nascer os mais doces sentimentos conhecidos dos homens: o amor conjugal e o amor paternal. Cada

família se torna uma pequena sociedade tanto mais unida quanto o apego recíproco e a liberdade eram os

seus únicos laços; e foi então que se estabeleceu a primeira diferença na maneira de viver dos dois sexos,

que, até então só tinham tido uma. As mulheres tornaram-se mais sedentárias e se acostumaram a guardar

a cabana e os filhos, enquanto o homem ia procurar a subsistência comum. Os dois sexos começaram

também, por uma vida um pouco mais suave, a perder alguma coisa da sua ferocidade e do seu vigor.

Mas, se cada um, separadamente, se tornou menos capaz de combater os animais selvagens, em

compensação foi mais fácil reunirem-se para lhes resistir em comum.

Nesse novo estado, com uma vida simples e solitária, necessidades muito limitadas e os instrumentos

que haviam inventado para as prover, os homens, gozando de bastante lazer, empregaram-no em procurar

várias comodidades desconhecidas dos seus pais; e foi o primeiro jugo que se impuseram sem pensar e a

primeira fonte de males que prepararam para os seus descendentes; porque, além de continuarem assim a

languescer o corpo e o espírito, tendo essas comodidades, com o hábito, perdido quase todo o seu

encanto e, ao mesmo tempo, degenerando em verdadeiras necessidades, a privação delas se tornou muito

mais cruel do que doce era a sua posse; e, infeliz por tê-las perdido, não se era feliz possuindo-as.

Aqui se pode ver, um pouco melhor, como o uso da palavra se estabeleceu ou se aperfeiçoou

insensivelmente no seio de cada família, e pode conjecturar-se ainda como diversas causas particulares

puderam desenvolver a linguagem e lhe acelerar o progresso, tornando-a mais necessária. Grandes

inundações ou terremotos cercaram de águas ou de precipícios cantões habitados; revoluções do globo

desarticularam e cortaram em ilhas porções do continente. Concebe-se que, entre homens assim

aproximados e forçados a viver juntos, havia de se formar um idioma comum, antes do que entre os que

erravam livremente nas florestas da terra firme. Assim, é muito possível que, após seus primeiros ensaios

de navegação, os insulares nos tenham trazido o uso da palavra; e é, pelo menos, muito verossímil que a

sociedade e as línguas tenham nascido das ilhas e nelas se aperfeiçoado antes de serem conhecidas no

continente. Tudo começa a mudar de face. Os homens, até então errantes nos bosques, tendo agora

situação mais fixa, aproximando-se lentamente, reúnem-se em diversos grupos e formam, enfim, em cada

região, uma nação particular, unida pelos costumes e pelos caracteres, não pelos regulamentos e pelas

leis, mas pelo mesmo gênero de vida e pelos alimentos, e pela influência comum do clima. Uma

vizinhança permanente não pode deixar de engendrar, enfim, alguma ligação entre diversas famílias.

Jovens de diferentes sexos habitam cabanas vizinhas; o comércio passageiro que a natureza exige logo

conduz a outro não menos doce e mais permanente pela mútua frequentação. Adquire-se o hábito de

considerar diferentes objetos e compará-los; adquirem-se, insensivelmente, idéias de mérito e de beleza,

que produzem sentimentos de preferência. À força de se ver, não se pode mais passar sem se ver ainda.

Um sentimento terno e doce se insinua na alma e, pela menor oposição, se transforma em furor

impetuoso: o ciúme desperta com o amor, a discórdia triunfa, e a mais doce das paixões recebe

sacrifícios de sangue humano.

Discurso sobre a origem da desigualdade

file:///C|/site/livros_gratis/origem_desigualdades.htm (32 of 64) [11/10/2001 19:05:32]

O Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens pdf

A medida que as idéias e os sentimentos se sucedem, que o espírito e o coração se exercitam, o gênero

humano continua a se domesticar, as ligações se estendem e os laços se apertam. Adquire-se o hábito de

se reunir diante das cabanas ou em torno de uma grande árvore: o canto e a dança, verdadeiros filhos do

amor e da ociosidade, tornam-se divertimento, ou antes, ocupação dos homens e das mulheres ociosos e

agrupados. Cada um começa a olhar os outros e a querer ser olhado por sua vez, e a estima pública tem

um preço. Aquele que canta ou dança melhor, o mais belo, o mais forte, o mais destro ou o mais

eloqüente, torna-se o mais considerado. E foi esse o primeiro passo para a desigualdade e para o vício, ao

mesmo tempo: dessas primeiras preferências nasceram, de um lado, a vaidade e o desprezo e, de outro, a

vergonha e a inveja; e a fermentação causada por esses novos fermentos produziu, enfim, compostos

funestos à felicidade e à inocência.

Logo que os homens começaram a se apreciar mutuamente, e que a idéia da consideração se formou

em seu espírito, cada um pretendeu ter direito a ela, e não foi mais possível faltar com ela impunemente a

ninguém. Daí surgiram os primeiros deveres de civilidade, mesmo entre os selvagens; e daí, toda falta

voluntária tornou-se um ultraje, porque, com o mal que resultava da injúria, o ofendido via nela também

o desprezo à sua pessoa, muitas vezes mais insuportável do que o próprio mal. Foi assim que, punindo

cada qual o desprezo que se lhe testemunhara de maneira proporcionada ao juízo que de si mesmo fazia,

as vinganças se tornaram terríveis, e os homens sanguinários e cruéis. Eis, precisamente, o grau a que

tinham chegado a maior parte dos selvagens que nos são conhecidos; e, foi por não terem distinguido

suficientemente as idéias e notado como esses povos já estavam longe do primeiro estado de natureza,

que muitos se apressaram em concluir que o homem é naturalmente cruel e tem necessidade de polícia

para abrandá-lo; ao passo que não há nada tão doce como ele em seu estado primitivo, quando, colocado

pela natureza a distâncias iguais da estupidez dos brutos e das luzes funestas do homem civilizado, e

limitado, igualmente, pelo instinto e pela razão, a se preservar do mal que o ameaça, é impedido pela

piedade natural de fazer mal a quem quer que seja, não sendo por nada levado a isso, mesmo depois de o

ter recebido. Porque, segundo o axioma do sábio Locke, não pode haver injúria onde não há propriedade.

Mas, é preciso notar que a sociedade começada e as relações já estabelecidas entre os homens exigiam

neles qualidades diferentes das que tinham em sua constituição primitiva; que a moralidade, começando

a se introduzir nas ações humanas, e cada um, antes das leis, sendo único juiz e vingador das ofensas

recebidas, a bondade conveniente ao puro estado de natureza não era mais a que convinha à sociedade

nascente; que era preciso que as punições se tornassem mais severas à medida que as ocasiões de ofender

se tornassem mais freqüentes; e que ao terror das vinganças cabia fazer as vezes do freio das leis. Assim,

embora os homens se tivessem tornado menos tolerantes, e a piedade natural já tivesse sofrido certa

alteração, esse período do desenvolvimento das faculdades humanas, guardando um justo meio entre a

intolerância do estado de natureza e a petulante atividade de nosso amor-próprio, devia ser a época mais

feliz e mais durável. Quanto mais se reflete sobre isso, mais se acha que esse estado, era o menos sujeito

às revoluções, o melhor para o homem (16), e do qual ele só teve de sair por um funesto acaso, que, para

a utilidade comum, nunca teria devido verificar-se, O exemplo dos selvagens, que estiveram quase todos

nesse estado, parece confirmar que o gênero humano fora feito para nele ficar sempre; que foi essa a

verdadeira juventude do mundo, e que todos os progressos ulteriores foram, aparentemente, outros tantos

passos para a perfeição do indivíduo, mas, de fato, para a decrepitude da espécie.

Enquanto os homens se contentaram com as suas cabanas rústicas, enquanto se limitaram a coser suas

Discurso sobre a origem da desigualdade

file:///C|/site/livros_gratis/origem_desigualdades.htm (33 of 64) [11/10/2001 19:05:32]

roupas de peles com espinhos ou arestas de pau, a se enfeitarem com plumas e conchas, a pintar o corpo

de diversas cores, a aperfeiçoar ou embelezar os seus arcos e flechas, a talhar com pedras cortantes

algumas canoas de pesca ou grosseiros instrumentos de música; em uma palavra, enquanto se aplicaram

exclusivamente a obras que um só podia fazer, e a artes que não necessitavam o concurso de muitas

mãos, viveram livres, sãos, bons e felizes ,tanto quanto podiam ser pela sua natureza, e continuaram a

gozar entre si das doçuras de uma convivência independente. Mas, desde o instante que um homem teve

necessidade do socorro de outro; desde que perceberam que era útil a um só ter provisões para dois, a

igualdade desapareceu, a propriedade se introduziu, o trabalho tornou-se necessário e as vastas florestas

se transformaram em campos risonhos que foi preciso regar com o suor dos homens, e nos quais, em

breve, se viram germinar a escravidão e a miséria, a crescer com as colheitas.

A metalurgia e a agricultura foram as duas artes cuja invenção produziu essa grande revolução. Para o

poeta, foram o ouro e a prata; mas, para o filósofo, foram o ferro e o trigo que civilizaram os homens e

perderam o gênero humano. Tanto um como o outro eram desconhecidos dos selvagens da América, os

quais, por isso, sempre ficaram como tais; os outros povos parece mesmo que continuaram bárbaros

enquanto praticaram uma dessas artes sem a outra. E uma das melhores razões, talvez, por que a Europa

foi, se não mais cedo, pelo menos mais constantemente e melhor policiada de que as outras partes do

mundo, é que ela é, ao mesmo tempo, a mais abundante em ferro e a mais fértil em trigo.

É muito difícil conjecturar como os homens chegaram a conhecer e empregar o ferro; porque não é

crível que tenham imaginado por si mesmos tirar a matéria da mina e lhe dar as preparações necessárias

para a pôr em fusão antes de saber o que disso resultaria. Por outro lado, pode-se tanto menos atribuir

essa descoberta a algum incêndio acidental quanto as minas só se formam em lugares áridos e

desnudados de árvores e de plantas. Dir-se-ia que a natureza tomara precauções para nos ocultar esse

fatal segredo. Não resta, pois, senão a circunstância extraordinária de algum vulcão que, vomitando

matérias metálicas em fusão, teria dado aos observadores a idéia de imitar essa operação da natureza;

ainda é preciso supor muita coragem e previdência para empreender um trabalho tão penoso, e considerar

de tão longe as vantagens que daí podiam tirar; mas, isso só pode acontecer a espíritos que já estiveram

mais exercitados do que os que eles deviam ter.

Quanto à agricultura, o seu princípio foi conhecido muito tempo antes da sua prática estabelecida, e

não é possível que os homens, sem cessar ocupados em tirar sua subsistência das árvores e das plantas,

não tivessem bastante prontamente a idéia dos caminhos que a natureza emprega para a geração dos

vegetais. Mas, sua indústria só se voltou, provavelmente, muito tarde para esse lado, ou porque as

árvores que, com a caça e a pesca, proviam à sua nutrição, não tinham necessidade dos seus cuidados, ou

por não conhecerem o uso do trigo, ou por não terem instrumentos para o cultivar, ou por falta de

previdência em relação à necessidade futura, ou, finalmente, por faltarem os meios para impedir os

outros de se apropriarem do fruto do seu trabalho. Tornados mais industriosos, pode-se acreditar que,

com pedras agudas e paus pontudos, começaram cultivando alguns legumes ou raízes em torno das suas

cabanas muito tempo antes de saberem preparar o trigo e de terem instrumentos necessários para a

cultura em grande escala: sem contar que, para se entregar a essa ocupação e semear a terra, é preciso se

resolver, primeiro, a perder alguma coisa para ganhar muito em seguida: precaução que estava muito

distante do expediente do homem selvagem, que, como já disse, tinha muita dificuldade em pensar de

manhã nas necessidades da noite,

A invenção das outras artes foi, pois, necessária para forçar o gênero humano a se aplicar à da

Discurso sobre a origem da desigualdade

file:///C|/site/livros_gratis/origem_desigualdades.htm (34 of 64) [11/10/2001 19:05:32]

agricultura. Desde que eram precisos homens para fundir e forjar o ferro, eram necessários outros para

nutrir os primeiros. Quanto mais se multiplicava o número de operários, tanto menos eram as mãos

encarregadas de prover à subsistência comum, sem que houvesse menos bocas para consumir; e, como

uns precisavam de comestíveis em troca do seu ferro, os outros acharam enfim o segredo de empregar o

ferro na multiplicação dos comestíveis. Daí nasceram, de um lado, a lavoura e a agricultura, e, de outro, a

arte de trabalhar os metais e de muitiplicar-lhe os usos.

Da cultura das terras resulta necessariamente a sua partilha, e, da propriedade, uma vez reconhecida,

as primeiras regras de justiça: porque, para dar a cada um o seu, é preciso que cada um possa ter alguma

coisa; de resto, como os homens começassem a levar suas vistas para o futuro, vendo todos que tinham

alguns bens que perder, não houve nenhum que não receasse para si a represália dos males que pudesse

causar a outrem. Essa origem é tanto mais natural quanto é impossível conceber a idéia da propriedade

surgindo fora da mão de obra; porque não se vê o que, para se apropriar das coisas que não fez, possa o

homem acrescentar-lhe além do seu trabalho. Só o trabalho, dando direito ao cultivador sobre o produto

da terra que lavrou, lho dá por conseguinte sobre o fundo, pelo menos até à colheita, e assim todos os

anos; e isso, constituindo uma posse contínua, transforma-se facilmente em propriedade. Quando os

antigos, diz Grotius, deram a Ceras o epíteto de legisladora, e a uma festa celebrada em sua honra o nome

de tesmofória, fizeram entender, por isso, que a partilha das terras produziu uma nova espécie de direito,

isto é, o direito de propriedade, diferente do que resulta da lei natural.

Nesse estado, as coisas poderiam ter ficado iguais, se os talentos fossem iguais, e se, por exemplo, o

emprego do ferro e o consumo dos alimentos tivessem feito sempre uma balança exata: mas, a proporção

que ninguém mantinha foi logo rompida: o mais forte fazia mais tarefa; o mais destro tirava melhor

partido da sua; o mais engenhoso encontrava meios de abreviar o trabalho; o lavrador tinha mais

necessidade de ferro, ou o ferreiro mais necessidade de trigo; e, trabalhando igualmente, um ganhava

muito, enquanto outro mal podia viver. É assim que a desigualdade natural se desenvolve

insensivelmente com a de combinação, e que as diferenças dos homens, desenvolvidas pelas das

circunstâncias, se tornam mais sensíveis, mais permanentes nos seus efeitos, e começam a influir na

mesma proporção sobre a sorte dos particulares.

Tendo as coisas chegado a esse ponto, é fácil imaginar o resto. Não me deterei em descrever a

invenção sucessiva das outras artes, o progresso das línguas, a prova e o emprego dos talentos, a

desigualdade das fortunas, o uso e o abuso das riquezas, nem todos os detalhes que seguem estes, e que

cada um pode facilmente suprir. Limitar-me-ei tão somente a relancear a vista pelo gênero humano

colocado nessa nova ordem e coisas.

Eis, pois, todas as nossas faculdades desenvolvidas, a memória e a imaginação em jogo, o

amor-próprio interessado, a razão tornada ativa, e o espírito chegado quase ao termo da perfeição de que

é suscetível. Eis todas as qualidades naturais postas em ação, o lugar e a sorte de cada homem

estabelecidos, não somente sobre a quantidade dos bens e o poder de servir ou de prejudicar, mas sobre o

espírito, a beleza, a força ou a habilidade, sobre o mérito ou os talentos; e, sendo essas qualidades as

únicas que podiam atrair a consideração, logo foi preciso tê-las ou afetá-las. Foi preciso, para vantagem

própria, mostrar-se diferente daquilo que se era de fato. Ser e parecer tornaram-se duas coisas

inteiramente diferentes; e, dessa distinção, surgiram o fausto imponente, a astúcia enganadora e todos os

vícios que constituem o seu cortejo. Por outro lado, de livre e independente que era o homem outrora,

ei-lo, por uma multidão de novas necessidades, submetido, por assim dizer, a toda a natureza e,

Discurso sobre a origem da desigualdade

file:///C|/site/livros_gratis/origem_desigualdades.htm (35 of 64) [11/10/2001 19:05:32]

O Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens pdf

principalmente, a todos os seus semelhantes, dos quais se torna escravo em certo sentido, mesmo

tornando-se seu senhor: rico, tem necessidade dos seus serviços, pobre, tem necessidade de seu auxílio; e

a mediocridade não o põe em estado de passar sem eles. É preciso, pois, que procure sem cessar

interessá-los por sua sorte, e fazer-lhes encontrar, de fato ou em aparência, o próprio proveito em

trabalhar para o dele: isso o torna velhaco e artificioso com uns, imperioso e duro com outros, e o põe na

necessidade de abusar de todos aqueles de que precisa, quando não pode se fazer temer, e quando não é

do seu interesse servi-los utilmente. Enfim, a ambição devoradora, o ardor de fazer fortuna relativa,

menos por verdadeira necessidade do que para se colocar acima dos outros, inspira a todos os homens

uma negra tendência a se prejudicarem mutuamente, uma inveja secreta tanto mais perigosa quanto, para

dar o golpe com mais segurança, toma muitas vezes a máscara de benevolência; em uma palavra,

concorrência e rivalidade de uma parte, e, de outra, oposição de interesses, e sempre o desejo oculto de

tirar proveito à custa de outrem: todos esses males constituem o primeiro efeito da propriedade e o

cortejo inseparável da desigualdade nascente.

Antes de terem sido inventados os sinais representativos da riqueza, estas só podiam consistir em

terras e em animais, os únicos bens reais que os homens poderiam possuir. Ora, quando as herdades

foram crescendo em número e em extensão, a ponto de cobrirem o solo inteiro e se tocarem todas, umas

não puderam mais crescer senão à custa de outras, e os extranumerários, que a fraqueza ou a indolência

tinham impedido de adquiri-las por sua vez, tornados pobres sem ter perdido nada, porque, tudo

mudando em torno deles, só eles não tinham mudado, foram obrigados a receber ou a roubar a

subsistência das mãos dos ricos; e, daí, começaram a nascer, segundo os diversos caracteres de uns e de

outros, a dominação e a servidão, ou a violência e as rapinas. Os ricos, por seu turno, mal conheceram o

prazer de dominar, desdenharam em breve todos os outros, e, servindo-se dos seus antigos escravos para

submeter novos, não pensaram senão em subjugar e escravizar os vizinhos, como lobos esfaimados que,

tendo experimentado a carne humana, desdenham qualquer outra nutrição e não querem mais devorar

senão homens. Foi assim que os mais poderosos ou os mais miseráveis, fazendo de suas forças ou de suas

necessidades uma espécie de direito ao bem de outrem, equivalente, segundo eles, ao da propriedade, a

igualdade rompida foi seguida da mais horrível desordem; e assim que as usurpações dos ricos, os

assaltos dos pobres, as paixões desenfreadas de todos, sufocando a piedade natural e a voz ainda mais

fraca da justiça, tornaram os homens avarentos, ambiciosos e maus. Levantava-se, entre o direito do mais

forte e o direito do primeiro ocupante, um conflito perpétuo que só terminava por meio, de combates e

morticínios (17). A sociedade nascente foi praça do mais horrível estado de guerra: o gênero humano,

aviltado e desolado, não podendo mais voltar atrás, nem renunciar às infelizes aquisições já obtidas, e

não trabalhando senão para a sua vergonha pelo abuso das faculdades que o honram, se colocou também

na véspera de sua ruína.

Attonitus novitate mali, divesqve, miserque,

Effugere optat opes, et quoe modo voverat odit.

Não é possível que os homens não tenham feito, enfim, reflexões sobre uma situação tão miserável e

sobre as calamidades que os afligiam. Os ricos, principalmente, logo deviam sentir como lhes era

desvantajosa uma guerra perpétua cujas despesas só eles faziam, e na qual o risco de vida era comum,

assim como o dos bens particulares. Aliás, se alguma podiam dar às suas usurpações, sentiam bastante

que não eram estabelecidas senão sobre um direito precário e abusivo, e que, só tendo sido adquiridas

pela força, a força as podia tirar sem que tivessem razão de se lastimar. Aqueles mesmos que só a

Discurso sobre a origem da desigualdade

file:///C|/site/livros_gratis/origem_desigualdades.htm (36 of 64) [11/10/2001 19:05:32]

O Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens pdf

indústria havia enriquecido, não podiam fundar sua propriedade sobre melhores títulos. Bem podiam

dizer: "Fui, eu quem construiu este muro; ganhei este terreno com o meu trabalho." - "E quem vos deu o

material? - poder-se-ia responder-lhes - e em virtude de que pretendeis ser pagos à nossa custa por um

trabalho que não vos impusemos? Ignorais que uma multidão de vossos irmãos perece ou sofre da

necessidade daquilo que tendes demais, e que precisaríeis de um consentimento expresso e unânime do

gênero humano para vos apropriardes de tudo que na subsistência comum vai além da vossa?" Destituído

de razões válidas para se justificar e de forças suficientes para se defender; esmagando facilmente um

particular, mas esmagado ele mesmo por tropas de bandidos; só contra todos, e não podendo, por causa

das rivalidades mútuas, unir-se com seus iguais contra inimigos unidos pela esperança comum da

pilhagem, o rico, premido pela necessidade, concebeu enfim, o projeto mais refletido que jamais entrara

no espírito humano: o de empregar em seu favor as próprias forças daqueles que o atacavam, de tornar

seus defensores os seus adversários, de lhes inspirar outras máximas e de lhes dar outras instituições que

lhe fossem tão favoráveis quanto contrário lhe era o direito natural.

Tendo isso em vista, depois de expor aos seus vizinhos o horror de uma situação que os armava a

todos uns contra os outros, que lhes tornava as paixões tão onerosas quanto as suas necessidades, e na

qual ninguém se sentia em segurança nem na pobreza nem na riqueza, inventou facilmente razões

especiosas para os conduzir ao seu objetivo. "Unamo-nos, - lhes disse, - para livrar da opressão os fracos,

conter os ambiciosos e assegurar a cada um a posse do que lhe pertence: instituamos regulamentos de

justiça e de paz, aos quais todos sejam obrigados a se conformar, que não façam acepção de pessoas e

que de certo modo reparem os caprichos da, fortuna, submetendo igualmente o poderoso e o fraco a

deveres mútuos. Em uma palavra, em vez de voltar nossas forças contra nós mesmos, reunamo-las em

um poder supremo que nos governe segundo leis sábias, que proteja e defenda todos os membros da

associação, repila os inimigos comuns e nos mantenha em uma eterna concórdia."

Foi preciso muito menos que o equivalente desse discurso para arrastar homens grosseiros, fáceis de

seduzir, que aliás tinham muitos negócios que resolver entre si para poder passar sem árbitros, e muita

avareza e ambição para poder passar muito tempo sem senhores. Todos correram para as suas cadeias de

ferro, acreditando assegurar a própria liberdade; porque, com bastante razão para sentir as vantagens de

um estabelecimento público, não tinham bastante experiência para prever os perigos que daí adviriam: os

mais capazes de pressentir os abusos eram precisamente aqueles que contavam tirar partido deles. E os

próprios sábios viram que era preciso se resolverem a sacrificar uma parte de sua liberdade para a

conservação da outra, como um ferido deixa que lhe cortem um braço para salvar o resto do corpo.

Tal foi ou deve ter sido a origem da sociedade e das leis, que deram novos entraves ao fraco e novas

forças ao rico (18), destruíram sem remédio a liberdade natural, fixaram para sempre a lei da propriedade

e da desigualdade, de uma astuta usurpação fizeram um direito irrevogável, e, para proveito de alguns

ambiciosos, sujeitaram para o futuro todo o gênero humano ao trabalho, à servidão e à miséria. Vê-se

facilmente como o estabelecimento de uma única sociedade tornou indispensável o de todas as outras, e

como, para fazer face a forças unidas, foi preciso se unir por sua vez. As sociedades, multiplicando-se ou

estendendo-se rapidamente, cobriram logo toda a superfície da terra; e não mais foi possível encontrar

um só canto do universo onde a gente pudesse livrar-se do jugo e subtrair a cabeça ao gládio muitas

vezes mal conduzido que cada homem vê perpetuamente suspenso sobre a sua. Tendo o direito civil se

tornado assim a regra comum dos cidadãos, a lei de natureza não vigorou mais senão entre as diversas

sociedades, nas quais sob o nome de direito das gentes, foi moderada por algumas convenções tácitas

Discurso sobre a origem da desigualdade

file:///C|/site/livros_gratis/origem_desigualdades.htm (37 of 64) [11/10/2001 19:05:32]

para tornar o comércio possível e suprir a comiseração natural, que, perdendo de sociedade em sociedade

quase toda a força que tinha de homem para homem, não reside mais senão nas grandes almas

cosmopolitas que transpõem as barreiras imaginárias que separam os povos e que, a exemplo do Ser

soberano que as criou, abraçam todo o gênero humano na sua benevolência.

Os corpos políticos, ficando assim entre si no estado de natureza, ressentiram-se em breve dos

inconvenientes que haviam forçado os particulares a deles saírem; e esse estado torna-se ainda mais

funesto entre esses grandes corpos do que o era antes entre os indivíduos de que se compunham. Daí

saíram as guerras nacionais, as batalhas, os assassínios, as represálias, que fazem estremecer a natureza e

chocam a razão, e todos esses preconceitos horríveis que colocam na categoria das virtudes a honra de

derramar o sangue humano. A gente mais honesta aprendeu a contar entre os seus deveres o de cortar o

pescoço dos semelhantes: têm-se visto, enfim, os homens se massacrarem aos milhões sem saberem

porque; e cometem-se mais assassínios em um só dia de combate e mais horrores na tomada de uma só

cidade do que no estado de natureza, durante séculos inteiros, sobre toda a superfície da terra. Tais são os

primeiros efeitos entrevistos na divisão do gênero humano em diferentes sociedades. Voltemos à sua

instituição.

Sei que alguns deram outras origens às sociedades políticas, como as conquistas do mais poderoso, ou

a união dos fracos; e a escolha entre essas causas é indiferente ao que vou estabelecer: entretanto, a que

acabo de expor me parece a mais natural pelas razões seguintes:

1.° No primeiro caso, o direito de conquista, não sendo um direito, não pode fundar nenhum outro, os

conquistadores e os povos conquistados ficando sempre entre si em estado de guerra, a menos que a

nação, restabelecida a sua liberdade, escolha voluntariamente seu vencedor como chefe: até lá, algumas

capitulações que tenham sido feitas, como só foram fundadas sobre a violência e, por conseguinte, são

nulas por esse mesmo fato, não pode haver, nessa hipótese, nem verdadeira sociedade, nem corpo

político, nem outra lei senão a do mais forte.

2.° As palavras forte e fraco são equívocas no segundo caso; no intervalo que se acha entre o

estabelecimento do direito de propriedade ou de primeiro ocupante e o dos governos políticos, o sentido

desses termos é mais bem traduzido pelas palavras pobre e rico, porque, com efeito, um homem não

tinha, antes das leis, outro meio de sujeitar seus iguais senão assaltando seus bens, ou lhe dando uma

parte do seu.

3.° Os pobres nada tendo que perder senão a sua liberdade, seria grande loucura que eles deixassem

tirar voluntariamente o único bem que lhes restava, para nada ganhar em troca; ao contrário, os ricos, por

assim dizer, sensíveis em todas as partes dos seus bens, era muito mais fácil lhes fazer mal; por

conseguinte, tinham mais precauções que tomar para se garantirem; e, enfim, é razoável acreditar que

uma coisa devia ter sido inventada por aqueles a quem é útil, mais do que por aqueles a quem devia

prejudicar.

O governo nascente não teve uma forma constante e regular. A falta de filosofia e de experiência não

deixava perceber senão os inconvenientes presentes; e ninguém pensava em remediar os outros senão à

medida que se apresentavam. Apesar de todos os trabalhos dos mais sábios legisladores, o estado político

conservou-se sempre imperfeito, porque era quase obra do acaso, e porque, mal começado, o tempo,

descobrindo os defeitos e sugerindo remédios, jamais pode reparar os vícios da constituição:

Discurso sobre a origem da desigualdade

file:///C|/site/livros_gratis/origem_desigualdades.htm (38 of 64) [11/10/2001 19:05:32]

remendava-se sem cessar, quando teria sido preciso começar por limpar a área e pôr de lado todos os

velhos materiais, como fez Licurgo em Esparta, para depois levantar um belo edifício. A sociedade,

primeiro, consistia apenas em algumas convenções gerais que todos os particulares se comprometiam a

observar, sendo comunidade responsável em relação a cada um deles. Foi preciso que a experiência

mostrasse quanto era fraca semelhante constituição e quanto era fácil aos infratores evitar a convicção ou

o castigo das faltas de que só o público devia ser testemunha e juiz; foi preciso que a lei tivesse sido

frustrada de mil maneiras, que os inconvenientes e as desordens se multiplicassem continuamente, para

que se pensasse, enfim, em confiar a particulares o perigoso depósito da autoridade pública, e que se

cometesse a magistrados o cuidado de fazer observar as deliberações do povo; porque dizer que os chefes

foram escolhidos antes que a confederação fosse feita, e que os ministros das leis existiram antes das

próprias leis, é uma suposição que não é permitido combater seriamente.

Não seria mais razoável acreditar que os povos, primeiro, se atiraram nos braços de um senhor

absoluto, sem condições e sem remédio, e que o primeiro meio de prover à segurança comum, imaginado

por homens altivos e indomáveis, foi precipitar-se na escravidão. Efetivamente, porque deram a si

mesmos superiores, se não foi para os defender contra a opressão e proteger os seus bens, as suas

liberdades e as suas vidas, que são, por assim dizer, os elementos constitutivos de seu ser? Ora, nas

relações de homem para homem, o pior que pode acontecer a um que se vê à discrição do outro não

consiste em se colocar contra o bom senso de começar por se despojar, pondo nas mãos de um chefe as

únicas coisas para cuja conservação tinham eles necessidade do seu socorro? Que equivalente podia ele

oferecer-lhes pela concessão de tão belo direito? e, se ousou exigi-lo, sob o pretexto de o defender, não

receberia logo a resposta do apólogo: "Que mais nos fará ainda o inimigo?" É, pois, incontestável, e é a

máxima fundamental de todo o direito político, que os povos deram a si mesmos chefes para defender

sua liberdade e não para os sujeitar. Se temos um príncipe, - dizia Plínio a Trajano, -. é para nos preservar

de ter um senhor.

Os políticos fazem sobre o amor à liberdade os mesmos sofismas que os filósofos fizeram sobre o

estado de natureza: pelas coisas que vêem, julgam coisas muito diferentes que não viram; e atribuem aos

homens uma tendência natural à servidão, pela paciência com a qual aqueles que têm sob os seus olhos

suportam a sua; sem pensar que com a liberdade acontece o mesmo que com a inocência e a virtude, cujo

preço só se sabe quando as gozamos nós mesmos, e cujo gosto se perde logo que as perdemos. "Conheço

as delícias do teu país, dizia Brasidas a um sátrapa que comparava a vida de Esparta à de Persépolis; mas,

não podes conhecer os prazeres do meu."

Como um corcel indômito, que eriça as crinas, escarva o chão, e se debate impetuosamente à simples

aproximação do freio, ao passo que um cavalo domesticado sofre pacientemente o chicote e a espora, o

homem bárbaro não dobra a cabeça ao jugo que o homem civilizado suporta sem murmurar, e prefere a

mais tempestuosa liberdade a uma submissão tranqüila. Assim, pois, não é pelo aviltamento dos povos

subjugados que devemos julgar as disposições naturais do homem pró ou contra a servidão, mas pelos

prodígios que fizeram todos os povos livres para se livrarem da opressão. Sei que os primeiros não fazem

senão gabar sem cessar a paz e o repouso de que gozam nos seus ferros, e que miserrimam servitutem

pacem appellant: mas, quando vejo os outros sacrificar os prazeres, o repouso, a riqueza, o poder e a

própria vida à conservação do único bem tão desdenhado por aqueles que o perderam; quando vejo

animais nascidos livres, e abominando o cativeiro, quebrar a cabeça contra as grades da prisão; quando

vejo multidões de selvagens completamente nus desprezar as voluptuosidades européias, e arrostar a

fome, o fogo, o ferro e a morte, para não conservar senão a sua independência, sinto que não compete a

Discurso sobre a origem da desigualdade

file:///C|/site/livros_gratis/origem_desigualdades.htm (39 of 64) [11/10/2001 19:05:32]

escravos raciocinar sobre a liberdade.

Quanto à autoridade paternal, de que muitos fizeram derivar o governo absoluto e toda a sociedade,

sem recorrer às provas contrárias de Locke .e de Sidney, basta notar que nada no mundo está mais

afastado do espírito feroz do despotismo do que a doçura dessa autoridade, que considera mais a

vantagem daquele que obedece do que a utilidade do que comanda; que, pela lei de natureza, o pai não é

o senhor do filho senão enquanto o seu auxilio lhe é necessário; que, passando esse termo, tornam-se

iguais, e, então, o filho, perfeitamente independente do pai, só lhe deve respeito e não obediência. Porque

o reconhecimento é bem um dever que é preciso cumprir, mas não um direito que se possa exigir. Em

vez de dizer que a sociedade civil deriva do poder paternal, é preciso dizer, ao contrário, que é dela que

esse poder tira a sua principa1 força. Um indivíduo não foi reconhecido pelo pai de muitos senão quando

permaneceram reunidos em torno dele. Os bens do pai, dos quais é verdadeiramente o senhor, são os

laços que retêm os filhos na sua dependência, e ele pode não lhes dar parte na sucessão senão à

proporção que dele merecerem por uma contínua deferência às suas vontades. Ora, longe dos súditos

esperarem qualquer favor semelhante do seu déspota, como lhe pertencem, eles e tudo quanto possuem,

ou pelo menos assim ele o pretende, são reduzidos a receber como favor o que lhes deixa do seu próprio

bem: faz justiça quando os despoja, e mercê quando os deixa viver.

Continuando a examinar assim os fatos pelo direito, não se encontraria mais solidez do que verdade

no estabelecimento voluntário da tirania, e seria difícil mostrar a validade de um contrato que não

obrigasse senão uma das partes, onde tudo fosse posto de um lado e nada do outro, e que não se

transformasse em prejuízo daquele que se obriga. Esse sistema odioso está bem longe, de ser, mesmo

hoje, o dos sábios e bons monarcas, e principalmente dos reis de França, como se pode ver em diversos

parágrafos de seus editos e, em particular, na passagem seguinte de um escrito célebre publicado em

1667, em nome e por ordem de Luiz XIV: "Que não se diga que o soberano não está sujeito às leis do seu

Estado, pois que a proposição contrária é uma verdade do direito das gentes, que a lisonja algumas vezes

atacou, porém que os bons príncipes sempre defenderam como uma divindade tutelar dos seus Estados.

Como é mais legítimo dizer, com o sábio Platão, que a perfeita felicidade de um reino consiste em que

um príncipe seja obedecido por seus súditos, que o príncipe obedeça à lei, e que a lei seja reta e sempre

dirigida para o bem público!" Não me deterei a investigar se, sendo a liberdade a mais nobre das

faculdades do homem, não é degradar a sua natureza, pôr-se ao nível dos animais escravos do' instinto e

ofender mesmo o autor do seu ser, renunciar sem reserva ao mais precioso de todos os seus dons,

submeter-se a cometer todos os crimes que nos são proibidos por ele, para comprazer a um senhor feroz

ou insensato, e se esse operário sublime deve ficar mais irritado de ver destruir do que desonrar a sua

mais bela obra. Esquecerei mesmo, se se quiser, a autoridade de Barbeyrac, que declara nitidamente,

conforme Locke, que ninguém pode vender sua liberdade até se submeter a um poder arbitrário que o

trate segundo a sua fantasia: Porque, acrescenta ele, seria vender a própria vida, da qual não se é o dono.

Perguntarei somente com que direito aqueles que não temem aviltar-se a tal ponto podem submeter sua

posteridade à mesma ignomínia e renunciar por ela a bens que não dependem da sua liberalidade, e sem

os quais a vida mesma é onerosa para todos os que dela são dignos.

Pufendorff diz que, da mesma maneira por que se transferem seus bens a outrem por meio de

convenções e contratos, pode-se também se despojar de sua liberdade em favor de alguém. Aí está, me

parece, um péssimo raciocínio: porque, primeiramente, o bem que alieno torna-se-me coisa inteiramente

estranha, e cujo abuso me é indiferente; mas, importa a mim que não se abuse da minha liberdade, e não

posso, sem me tornar culpado do mal que me forçarem a fazer, expor-me a me tornar instrumento do

Discurso sobre a origem da desigualdade

file:///C|/site/livros_gratis/origem_desigualdades.htm (40 of 64) [11/10/2001 19:05:32]

crime. De resto, não passando o direito de propriedade de convenção e instituição humana, todo homem

pode à vontade dispor do que possui: mas não acontece o mesmo com os dons essenciais da natureza, tais

como a vida e a liberdade, que é permitido a cada um gozar e que pelo menos é duvidoso que se tenha o

direito de se despojar: perdendo-se uma, degrada-se o ser; perdendo-se a outra, aniquila-se tanto quanto

existe em si: e, como nenhum bem temporário pode compensar uma e outra, seria ofender ao mesmo

tempo a natureza e a razão renunciar a isso, por qualquer preço que fosse. Mas, mesmo que pudéssemos

alienar nossos bens e nossa liberdade, a diferença seria muito grande para os filhos, que não gozassem

dos bens do pai senão pela transmissão do seu direito. Sendo a liberdade, ao contrário, um dom que

recebem da natureza na qualidade de homens, seus pais nenhum direito têm de os despojar. De sorte que,

como para estabelecer a escravidão foi preciso fazer violência à natureza, também foi preciso mudá-la

para perpetuar esse direito: e os jurisconsultos que pronunciaram gravemente que o filho de um escravo

nasceria escravo decidiram, em outros termos, que um homem não nasceria homem.,

Parece-me certo, pois, que não somente os governos não começaram pelo poder arbitrário, que não é

senão a sua corrupção, o termo extremo, e que finalmente os conduz exclusivamente à lei do mais forte,

de que foram, primeiro, o remédio; mas ainda que, mesmo que tivessem começado por aí, esse poder,

sendo por natureza ilegítimo, não pode servir de fundamento aos direitos da sociedade e nem, por

conseguinte, à desigualdade de instituição.

Sem entrar, hoje, nas pesquisas que ainda estão por fazer, sobre a natureza do pacto fundamental de

todo governo, limito-me, seguindo a opinião comum, a considerar aqui o estabelecimento do corpo

político como um verdadeiro contrato entre o povo e os chefes que ele escolhe; contrato pelo qual as duas

partes se obrigam à observância das leis nele estipuladas e que formam os laços da sua união. Tendo o

povo, relativamente às relações sociais, reunido todas as suas vontades em uma só, todos os artigos sobre

os quais essa vontade se explica se tornam outras tantas leis fundamentais que obrigam todos os

membros do Estado sem exceção, e uma das quais regula e escolhe o poder dos magistrados

encarregados de velar pela execução das outras. Esse poder se estende a tudo o que pode manter a

constituição, sem ir ao ponto de mudá-la. Acrescentam-se a isso honras que tornam respeitáveis as leis e

os seus ministros, e, para estes pessoalmente, prerrogativas que os compensam dos penosos trabalhos.

que custa uma boa administração. O magistrado de seu lado, se obriga a não usar do poder que lhe é

confiado senão segundo a intenção dos comitentes, a manter cada um no gozo pacífico do que lhe

pertence, e a preferir em toda ocasião a utilidade pública ao seu interesse próprio.

Antes que a experiência mostrasse, ou que o conhecimento do coração humano tivesse feito prever os

abusos inevitáveis de uma tal constituição, ela devia parecer tanto melhor quanto dos que estavam

encarregados de velar pela sua conservação eram eles próprios os mais interessados: porque a

magistratura e seus direitos, não sendo estabelecidos senão sobre as leis fundamentais, logo que fossem

destruídas, os magistrados cessariam de ser legítimos, o povo não estaria mais obrigado a lhes obedecer;

e, como não teria sido o magistrado, mas a lei, que teria constituído a essência do Estado, cada um

entraria novamente de direito na sua liberdade natural.

Por pouco que se tenha refletido atentamente, isso se confirmaria por novas razões; e, pela natureza

do contrato, se veria que não poderia ser irrevogável; porque, se não havia poder superior que pudesse

ser fiador da fidelidade dos contratantes, nem forçá-los a cumprir seus compromissos recíprocos, as

partes seriam os únicos juizes na sua própria causa, e cada uma teria sempre o direito de renunciar ao

contrato logo que percebesse que o outro transgredia as condições, ou quando essas condições cessassem

Discurso sobre a origem da desigualdade

file:///C|/site/livros_gratis/origem_desigualdades.htm (41 of 64) [11/10/2001 19:05:32]

de lhe convir. É sobre esse princípio que parece que o direito de abdicar pode ser fundado. Ora, a não

considerar, como fazemos, senão a instituição humana, se o magistrado, que tem todo o poder nas mãos e

que se apropria de todas as vantagens do contrato, tivesse contudo o direito de renunciar à autoridade,

com mais forte razão o povo, que paga todos os erros dos chefes, deveria ter o direito de renunciar à

dependência. Mas, as dissenções horríveis, as desordens infinitas, que necessariamente acarretaria esse

perigoso poder, mostram, mais do que qualquer outra coisa, como os governos humanos tinham

necessidade de uma base mais sólida do que a simples razão, e como era necessário ao repouso público

que a vontade divina interviesse para dar à autoridade soberana um caráter sagrado e inviolável, que

tirasse aos súditos o funesto direito de dispor dela. Quando a religião só tivesse feito esse bem aos

homens, seria isso o bastante para que todos a quisessem e adotassem, mesmo com seus abusos, pois que

ela poupa ainda mais sangue do que o fanatismo o faz correr. Mas, sigamos o fio de nossa hipótese.

As diversas formas de governo tiram a sua origem das diferenças mais ou menos grandes que se

encontraram entre os particulares no momento da instituição. Um homem era eminente em poder, em

virtude, em riqueza, em crédito; só ele foi eleito magistrado, e o Estado se torna monárquico. Se muitos,

mais ou menos iguais entre si, superavam todos os outros, eram eleitos conjuntamente, e se teve uma

aristocracia. Aqueles cuja fortuna ou talentos eram menos desproporcionados, e que menos se tinham

afastado do estado de natureza, guardaram em comum a administração suprema, e formaram uma

democracia. O tempo verificou qual dessas formas era mais vantajosa para os homens. Uns ficaram

unicamente submetidos às leis, os outros logo obedeceram a senhores. Os cidadãos quiseram conservar

sua liberdade; os súditos não pensaram senão em tirá-la dos vizinhos, não podendo suportar que outros

gozassem de um bem de que eles próprios não gozavam. Em uma palavra, de um lado foram as riquezas

e as conquistas, e do outro, a felicidade e a virtude.

Nesses diversos governos, todas as magistraturas foram primeiro eletivas; e, quando a riqueza não

prevalecia, a preferência era concedida ao mérito que dá um ascendente natural, e à unidade, que dá a

experiência nos negócios e o sangue-frio nas deliberações. Os antigos dos hebreus, os gerontes de

Esparta, o senado de Roma, e a própria etimologia da nossa palavra senhor, mostram como outrora a

velhice era respeitada. Quanto mais as eleições recaíam sobre homens avançados em idade, tanto mais se

tornavam freqüentes e mais os seus embaraços se faziam sentir: as intrigas se introduziram, as facções se

formaram, os partidos se acirraram, as guerras civis se atiçaram, enfim o sangue dos cidadãos foi

sacrificado à pretensa felicidade do Estado, e esteve-se ,a ponto de cair na desordem dos tempos

anteriores. A ambição dos principais aproveitou-se das circunstâncias para perpetuar seus cargos nas suas

famílias; o povo, já acostumado à dependência, ao repouso, e às comodidades da vida, e já incapaz de

poder quebrar os ferros, consentiu em deixar aumentar sua servidão para firmar sua tranqüilidade: e foi

assim que os chefes, tornados hereditários, acostumaram-se a olhar sua magistratura como um bem de

família; a se olharem eles mesmos como os proprietários do Estado, do qual, a princípio, eram apenas

oficiais; a considerar seus concidadãos como seus escravos; a contá-los, como gado, no número das

coisas que lhes pertenciam; e a se considerarem eles próprios iguais aos deuses e reis dos reis.

Se seguirmos o progresso da desigualdade nessas diferentes revoluções, veremos que o

estabelecimento da lei e do direito de propriedade foi seu primeiro termo, a instituição da magistratura o

segundo, e que o terceiro e último foi a mudança do poder legítimo em poder arbitrário. De sorte que a

condição de rico e de pobre foi autorizada pela primeira época, a de poderoso e de fraco pela segunda, "e

pela terceira a de senhor e de escravo, que é o último grau de desigualdade, o termo ao qual chegam

finalmente todos os outros, até que novas revoluções dissolvem completamente o governo, ou o

Discurso sobre a origem da desigualdade

file:///C|/site/livros_gratis/origem_desigualdades.htm (42 of 64) [11/10/2001 19:05:32]

O Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens pdf

aproximam da instituição legítima.

Para compreender a necessidade desse progresso, é preciso considerar menos os motivos do

estabelecimento do corpo político do que a forma que toma na sua execução e os inconvenientes que

acarreta; porque os vícios que tornam necessárias as instituições sociais são os mesmos que tornam o seu

abuso inevitável: e como, excetuada unicamente Esparta, em que a lei velava principalmente pela

educação das crianças e em que Licurgo estabeleceu costumes que o dispensavam quase de lhes

acrescentar leis, as leis, em geral menos fortes do que as paixões, contêm os homens sem os mudar, seria

fácil provar que todo governo que, sem se corromper nem se alterar, marchasse sempre exatamente

segundo o fim de sua instituição, teria sido instituído sem necessidade, e que um país no qual ninguém

frustrasse as leis e não abusasse da magistratura não teria necessidade nem de magistrados nem de leis.

As distinções políticas conduzem necessariamente às distinções civis. A desigualdade crescente entre

o povo e seus chefes fez-se logo sentir entre os particulares, entre eles se modificando de mil maneiras,

segundo as paixões, os talentos e as ocorrências. O magistrado não poderia usurpar um poder ilegítimo

sem o auxílio de criaturas às quais é forçado a ceder alguma parte. Aliás, os cidadãos só se deixam

oprimir na medida em que são arrastados por uma cega ambição e, olhando mais abaixo do que acima

deles, a dominação torna-se-lhes mais cara do que a independência, e em que consentem em carregar

cadeias para poder distribuí-las por sua vez. É muito difícil reduzir à obediência aquele que não procura

mandar, e o político mais hábil não conseguiria sujeitar homens que só quisessem ser livres, Mas, a

desigualdade se estende sem dificuldade entre as almas ambiciosas e covardes, sempre prontas a correr

os riscos da fortuna e a dominar ou servir quase indiferentemente, conforme ela se lhes torne favorável

ou contrária. É assim que deve ter havido um tempo em que os olhos do povo foram fascinados a tal

ponto que os seus condutores só tinham que dizer ao mais pequeno dos homens: "Sê grande, tu e toda a

tua raça". E logo ele parecia grande a toda a gente como aos seus próprios olhos, e os seus descendentes

se elevavam ainda à medida que dele se afastavam: quanto mais remota e incerta era a causa, tanto mais

aumentava o efeito; quanto mais se podiam contar os vadios em uma família, tanto mais se tornava,

ilustre.

Se aqui coubessem detalhes, eu explicaria facilmente como, mesmo que o governo não se envolva

nisso, a desigualdade de crédito e de autoridade se torna inevitável entre os particulares (19), logo que,

reunidos em uma mesma sociedade, são forçados a se comparar entre si e a ter em conta as diferenças

encontradas no uso contínuo que fazem uns dos outros. Essas diferenças são de muitas espécies. Mas, em

geral, a riqueza, a nobreza ou a posição, o poder e o mérito pessoal, sendo as principais distinções pelas

quais as pessoas se medem nas sociedades, eu provaria que o acordo ou o conflito dessas forças diversas

é a indicação mais segura de um Estado bem ou mal constituído: faria ver que, entre essas quatro

espécies de desigualdade, sendo as qualidades pessoais a origem de todas as outras, a riqueza é a última à

qual se reduzem por fim, porque, sendo a mais imediatamente útil ao bem estar e a mais fácil de

comunicar, dela se servem fácilmente para comprar todo o resto. Essa observação pode fazer julgar

bastante exatamente da medida da qual cada povo se afastou de sua instituição primitiva e do caminho

que fez para o termo extremo da corrupção. Observaria quanto esse desejo universal de reputação, de

honras e de preferências que a todos nos devora, exerce e compara os talentos e as forças; quanto excita e

multiplica as paixões; e quanto, tornando todos os homens concorrentes, rivais, ou antes, inimigos, causa

diariamente reveses, sucessos e catástrofes de toda espécie, fazendo tantos pretendentes correr a mesma

liça. Mostraria que é a esse ardor de fazer falar de si, a esse furor de se distinguir que nos coloca quase

Discurso sobre a origem da desigualdade

file:///C|/site/livros_gratis/origem_desigualdades.htm (43 of 64) [11/10/2001 19:05:32]

sempre fora de nós mesmos, que devemos o que há de melhor e de pior entre os homens, as nossas

virtudes e os nossos vícios, as nossas ciências e nossos erros, os nossos conquistadores e os nossos

filósofos, isto é, uma multidão de más coisas sobre um pequeno número de boas. Provaria, finalmente,

que, se vemos um punhado de poderosos e de ricos no pináculo das grandezas e da fortuna, enquanto a

multidão rasteja na obscuridade e na miséria, é porque os primeiros só estimam as coisas de que gozam

na medida em que os outros delas são privados, porque, sem mudar de estado, cessariam de ser felizes se

o povo cessasse de ser miserável.

Mas, esses detalhes constituiriam, por si, matéria de uma obra considerável, na qual se pesariam as

vantagens e os inconvenientes de todo governo, relativamente aos direitos do estado de natureza, e na

qual se desvendariam todas as faces diferentes sob as quais a desigualdade se mostrou até ao dia de hoje

e poderá mostrar, nos séculos futuros, segundo a natureza desses governos e as revoluções que o tempo

trará necessariamente. Ver-se-ia a multidão oprimida, internamente, em virtude das próprias precauções

tomadas contra o que a ameaçava no exterior; ver-se-ia a opressão crescer continuamente, sem que os

oprimidos pudessem jamais saber que termo teria, nem que meios legítimos lhes restariam para contê-la;

ver-se-iam os direitos dos cidadãos e as liberdades nacionais se extinguirem pouco a pouco, e as

reclamações dos fracos serem consideradas como murmúrios sediciosos; ver-se-ia a política restringir a

uma porção mercenária do povo a honra de defender a causa comum; ver-se-ia surgir daí a necessidade

dos impostos, o lavrador desanimado abandonar o campo, mesmo durante a paz, e deixar a charrua para

cingir a espada; ver-se-iam os defensores da pátria cedo ou tarde tornarem-se seus inimigos, segurando

sem cessar o punhal levantado contra os seus concidadãos; e viria um tempo em que os ouviríamos dizer

ao opressor de seu país:

Pectore si fratris gladium jugloque parentis

Condere me jubeas, gravidoeque in viscera partu

Conjugis, invita peragam tamen omnia dextra.

Lucan, lib. I, V. 376.

Da extrema desigualdade das condições e das fortunas, da diversidade das paixões e dos talentos, das

artes inúteis, das artes perniciosas, das ciências frívolas, saíram multidões de preconceitos igualmente

contrários à razão, à felicidade e à virtude: ver-se-ia fomentar pelos chefes tudo o que pode enfraquecer

homens reunidos desunindo-os, tudo o que pode dar à sociedade um ar de concórdia aparente e nela

semear um germe de divisão real, tudo o que pode inspirar às diferentes ordens uma desconfiança e um

ódio mútuo pela oposição dos seus direitos e dos seus interesses, e fortificar, por conseguinte, o poder

que os contém a todos. É do seio dessa desordem e dessas revoluções que o despotismo, levantando

gradativamente a cabeça hedionda, e devorando tudo o que teria percebido de bom e de são em todas as

partes do Estado, conseguiria finalmente calcar aos pés as leis e o povo, e se estabelecer sobre as ruínas

da república. Os tempos que precederiam essa última mudança seriam tempos de perturbações e

calamidades; mas, por fim, tudo seria engolido pelo monstro, e os povos não teriam mais chefes nem leis,

porém tiranos exclusivamente. Desde esse instante, também não se trataria de costumes e virtudes:

porquanto por toda parte onde reina, cui ex honesto nulla est spes, o despotismo não suporta nenhum

outro senhor; desde que ele fala, não há probidade nem dever que consultar, e a mais cega obediência é a

única virtude que resta aos escravos.

Aqui está o último termo da desigualdade, e o ponto extremo que fecha o círculo e toca no ponto de

Discurso sobre a origem da desigualdade

file:///C|/site/livros_gratis/origem_desigualdades.htm (44 of 64) [11/10/2001 19:05:32]

onde partimos; é aqui que todos os particulares voltam a ser iguais, porque nada são, e os súditos não

tendo mais outra lei senão a vontade do senhor, nem o senhor outra regra senão as suas paixões, as

noções do bem e os princípios da justiça desaparecem de ora em diante; é aqui que tudo conduz

exclusivamente à lei do mais forte, e, por conseguinte, a um novo estado de natureza diferente daquele

pelo qual começamos, sendo que um era o estado de natureza na sua pureza, e este último é o fruto de um

excesso de corrupção. Há tão pouca diferença, aliás, entre esses dois estados, e o contrato de governo é

de tal modo dissolvido pelo despotismo, que o déspota não é senhor senão durante o tempo em que é o

mais forte; e, logo que o podem expulsar, não tem que reclamar contra a violência. A sublevação que

acaba por estrangular ou destronar um sultão é um ato tão jurídico como aqueles pelos quais ele

dispunha, na véspera, das vidas e dos bens dos súditos. Só a força o mantinha, só a força o derruba; todas

as coisas se passam assim, segundo a ordem natural; e, qualquer que possa ser o advento dessas curtas e

freqüentes revoluções, ninguém se pode queixar das injustiças de outrem, mas somente da sua própria

imprudência ou da sua desgraça.

Descobrindo e seguindo assim as estradas esquecidas e perdidas que do estado natural deviam ter

conduzido o homem ao estado civil; restabelecendo, com as posições intermediárias que acabo de notar,

as que o tempo limitado me faz suprimir, ou que a imaginação me não sugeriu, todo leitor atento deverá

ficar impressionado com a distância imensa que separa esses dois estados. É nessa lenta sucessão das

coisas que verá a solução de uma infinidade de problemas de moral e de política que os filósofos não

podem resolver. Sentirá que o gênero humano de uma idade, não sendo o gênero humano de outra idade,

a razão por que Diógenes não encontrava um homem, é que ele procurava entre os seus contemporâneos

o homem de um tempo que não existia mais. Catão, dirá ele, pereceu com Roma e a liberdade porque

esteve deslocado no seu século, e o maior dos homens não fez senão assombrar o mundo que ele tivesse

governado quinhentos anos mais cedo. Em uma palavra, explicará como a alma e as paixões humanas,

alterando-se insensivelmente, mudam por assim dizer de natureza; porque as nossas necessidades e os

nossos prazeres mudam de objeto com o tempo; porque, o homem original desvanecendo-se

gradativamente, a sociedade não mais oferece aos olhos do sábio senão um ajuntamento de homens

artificiais e de paixões factícias que são obra de todas essas novas relações, e não têm nenhum verdadeiro

fundamento na natureza. O que a reflexão nos ensina sobre isso, a observação o confirma perfeitamente:

o homem selvagem e o homem policiado diferem de tal modo no fundo do coração e nas inclinações, que

o que faz a felicidade suprema de um reduziria o outro ao desespero. O primeiro só respira o repouso e a

liberdade; só quer viver e ficar ocioso, e a própria ataraxia do estóico não se aproxima da sua indiferença

profunda por qualquer outro objeto. Ao contrário, o cidadão, sempre ativo, sua, agita-se, atormenta-se

sem cessar para buscar ocupações ainda mais laboriosas; trabalha até à morte, corre mesmo em sua

direção para se pôr em estado de viver, ou renuncia à vida para adquirir a imortalidade; faz a corte aos

grandes que odeia e aos ricos que despreza; nada poupa para obter a honra de o servir; gaba-se

orgulhosamente de sua baixeza e de sua proteção; e, vaidoso de sua escravidão, fala com desdém

daqueles que não têm a honra de a partilhar. Que espetáculo para um caraiba os trabalhos penosos e

invejados de um ministro europeu! Quantas mortes cruéis não prefereria esse selvagem indolente ao

horror de vida semelhante, que muitas vezes nem mesmo é compensada pelo prazer de fazer o bem! Mas,

para ver o fim de tantos cuidados, seria preciso que as palavras poder e reputação tivessem um sentido

em seu espírito; que aprendesse que há uma espécie de homens que contam para alguma coisa com os

olhares do resto do universo, que sabem ser felizes e contentes consigo mesmos com o testemunho de

outrem mais do que com o seu próprio. Tal é, com efeito, a verdadeira causa de todas essas diferenças: o

selvagem vive em si mesmo; o homem sociável, sempre fora de si, não sabe viver senão na opinião dos

outros, e é, por assim dizer, exclusivamente do seu julgamento que tira o sentimento de sua própria

Discurso sobre a origem da desigualdade

file:///C|/site/livros_gratis/origem_desigualdades.htm (45 of 64) [11/10/2001 19:05:32]

existência. Escapa ao meu tema mostrar como de tal disposição nasce tanta indiferença pelo bem e o mal,

com tão belos discursos de moral; como, reduzindo-se tudo às aparências, tudo se torna factício e

representado, honra, amizade, virtude, e muitas vezes até os próprios vícios, cujo segredo de se glorificar

finalmente se encontra; como, em uma palavra, perguntando sempre aos outros o que somos, e não

ousando jamais interrogar-nos sobre isso nós mesmos, no meio de tanta filosofia, humanidade, polidez,

máximas sublimes, não temos senão um exterior enganador e frívolo, honra, sem virtude, razão sem

sabedoria, e prazer sem felicidade. Basta-me ter provado que esse não é o estado original do homem, e

que só o espírito da sociedade e a desigualdade que ela engendra modificam e alteram, assim, todas as

nossas inclinações naturais.

Tratei de expor a origem e o progresso da desigualdade, o estabelecimento e o abuso das sociedades

políticas, tanto quanto essas coisas se podem deduzir da natureza do homem pelas luzes exclusivas da

razão, e independentemente dos dogmas sagrados que dão à autoridade soberana a sanção do direito

divino. Resulta do exposto que a desigualdade, sendo quase nula no estado de natureza, tira a sua força e

o seu crescimento do desenvolvimento das nossas faculdades e dos progressos do espírito humano,

tornando-se enfim estável e legítima pelo estabelecimento da propriedade e das leis. Resulta ainda que a

desigualdade moral, autorizada unicamente pelo direito positivo, é contrária ao direito natural todas as

vezes que não concorre na mesma proporção com a desigualdade física. Essa distinção determina

suficientemente o que se deve pensar, nesse sentido, da espécie de desigualdade que reina entre todos os

povos policiados, pois é manifestamente contra a lei de natureza, de qualquer maneira que a definamos,

que uma criança mande num velho, que um imbecil conduza um homem sábio, ou que um punhado de

pessoas nade no supérfluo, enquanto à multidão esfomeada falta o necessário.

ADVERTÊNCIA SOBRE AS NOTAS

Acrescentei algumas notas a esta obra, segundo o meu costume preguiçoso de trabalhar com

interrupções. Essas notas, às vezes, se afastam muito do assunto, para que devam ser lidas com o texto.

Transportei-as, pois, para o fim do Discurso, no qual procurei seguir, tanto quanto me foi possível, o

caminho mais acertado. Os que tiverem coragem de recomeçar poderão divertir-se novamente

embrenhando-se na mata e tentando percorrer as notas: quanto aos outros, pouco mal haverá em que de

todo não as leiam.

NOTAS

(1). - Dedicatória. - Conta Heródoto que, após o assassínio do falso Esmerdis, os sete libertadores da

Pérsia, estando reunidos para deliberar sobre a forma do governo que dariam ao Estado, Otanés opina

fortemente pela república. Essa opinião era tanto mais extraordinária na boca de um sátrapa quanto, além

da pretensão que ele podia ter ao império, os grandes temem mais do que a morte uma espécie de

Discurso sobre a origem da desigualdade

file:///C|/site/livros_gratis/origem_desigualdades.htm (46 of 64) [11/10/2001 19:05:32]

governo que os force a respeitar os homens. Otanés, como bem se pode crer, não foi ouvido; e, vendo

que se ia proceder à eleição de um monarca, ele, que não queria obedecer nem mandar, cedeu

voluntariamente aos outros concorrentes o seu direito à coroa, pedindo como única indenização que fosse

livre e independente com sua posteridade, o que lhe foi concedido. Quando Heródoto não nos dissesse

qual a restrição feita a esse privilégio, seria necessário supô-la. Do contrário, Otanés não reconhecendo

nenhuma espécie de lei e não tendo que prestar contas a ninguém, teria sido poderoso no Estado e mais

poderoso do que o próprio rei. Mas, não havia aparência de que um homem capaz de se contentar, em

semelhante caso, com tal privilégio, fosse capaz de abusar dele. Com efeito, não se vê que esse direito

tenha causado jamais a menor perturbação no reino, nem pelo sábio Otanés, nem por nenhum dos seus

descendentes.

(2). - Prefácio. - Desde os meus primeiros passos, eu me apoio, confiante, em uma dessas autoridades

respeitáveis para os filósofos, porque elas vêm de uma razão sólida e sublime que só eles sabem

encontrar e sentir.

"Algum interesse que tenhamos em nos conhecer a nós mesmos, não sei se não conhecemos melhor

tudo o que não somos. Providos pela natureza de órgãos unicamente destinados à nossa conservação, não

os empregamos senão para receber as impressões estranhas: não procuramos senão nos expandir e existir

fora do nós: demasiado ocupados em multiplicar as funções dos nossos sentidos e em aumentar a

extensão exterior de nosso ser, raramente fazemos uso desse sentido interior que nos reduz às nossas

verdadeiras dimensões, e que separa de nós tudo quanto não está em nós. Entretanto, desse sentido é que

devemos servir-nos se queremos conhecer-nos; é o único pelo qual podemos julgar-nos. Mas, como dar a

esse sentido sua atividade e toda a sua extensão? como desprender nossa alma, na qual ele reside, de

todas as ilusões do nosso espírito? Perdemos o hábito de empregá-la, ficando ela sem exercício no meio

do tumulto das nossas sensações corporais e consumindo-se pelo fogo das nossas paixões. O coração, o

espírito, os. sentidos, tudo trabalhou contra ela." (HIST. NAT., Da Natureza do Homem.)

(3). - Discurso. - As transformações que um longo hábito de caminhar sobre dois pés pode produzir na

conformação do homem, as relações que ainda se observam entre os seus braços e as pernas anteriores

dos quadrúpedes, e a indução tirada de sua maneira de andar, puderam fazer nascer dúvidas sobre .a que

nos devia ser mais natural. Todas as crianças começam a andar de quatro pés e têm necessidade do nosso

exemplo e das nossas lições para aprender a se manter de pé. Há mesmo nações selvagens, tais como os

hotentotes, que descuidam muito das crianças o as deixam caminhar com as mãos tanto tempo que depois

têm muita dificuldade em se levantar. Assim também acontece com os filhos dos caraibas, nas Antilhas.

Há diversos exemplos de homens quadrúpedes, e eu poderia citar, entre outros, o da criança que foi

encontrada em 1344, perto de Hesse, onde havia sido nutrida por lobos, e que dizia depois, na corte do

príncipe Henrique, que, se não fosse este, teria preferido voltar para junto deles a viver entre os homens.

Adquirira de tal modo o hábito de andar como esses animais que foi preciso lhe amarrarem peças de

maneira que a forçassem a se manter de pé e equilibrando-se nos dois pés. Aconteceu o mesmo com a

criança que foi encontrada em 1694 nas florestas da Lituânia, e que vivia entre ursos. Não dava, diz

Condillac, nenhum sinal de razão, caminhava com pés e mãos, não possuía nenhuma linguagem e

formava sons que em nada se assemelhavam aos do homem. O pequeno selvagem de Hanovre, que foi

conduzido há muitos anos para a corte da Inglaterra, teve todos os sofrimentos do mundo ao se sujeitar a

caminhar sobre os dois pés; e encontraram-se, em 1719, dois outros selvagens nos Pireneus, que corriam

pelas montanhas à maneira de quadrúpedes. Quanto ao que se poderia objetar, que é privar-se do uso das

mãos do que tiramos tantas vantagens, além do exemplo dos macacos que nos mostra que a mão pode

muito bem ser empregada das duas maneiras, isso provaria somente que o homem pode dar a seus

Discurso sobre a origem da desigualdade

file:///C|/site/livros_gratis/origem_desigualdades.htm (47 of 64) [11/10/2001 19:05:32]

membros um destino mais cômodo do que o da natureza, e não que a natureza destinou o homem a andar

de modo diferente do que ensina.

Mas, há, ao que me parece, muito melhores razões para sustentar que o homem é um bípede.

Primeiramente, quando alguém fizesse ver que ele podia primeiro ser conformado diferentemente do que

o vemos e, entretanto, tornar-se finalmente o que é, isso não seria o bastante para se concluir que foi

assim, porque, depois de haver mostrado a possibilidade dessas transformações, seria preciso ainda, antes

de as admitir, mostrar ao menos a sua verossimilhança. De resto, se os braços do homem parecem ter

podido servir-lhe de pernas quando necessário, é a única observação favorável a esse sistema, sobre um

grande número de outras que lhe são contrárias. As principais são: que a maneira pela qual a cabeça do

homem está ligada ao corpo, em vez de dirigir sua vista horizontalmente, como todos os outros animais e

como ele mesmo caminhando de pé, teria, caminhando de quatro pés, os olhos diretamente fixados no

chão, situação muito pouco favorável à conservação do indivíduo; que a cauda que lhe falta, e com a qual

nada tem que fazer caminhando com dois pés, é útil aos quadrúpedes e nenhum deles é dela privado; que

os seios da mulher, muito bem situados para um bípede, que carrega o filho nos braços, ficariam tão mal

para um quadrúpede que nenhum os tem colocados dessa maneira; que a parte traseira, sendo de altura

excessiva proporcionalmente às pernas da frente, o que faz que, caminhando de quatro pés, nos

arrastemos sobre os joelhos, faria um animal mal proporcionado e caminhando pouco comodamente;

que, se o homem pousasse os pés inteiramente como as mãos, teria nas pernas posteriores uma

articulação menos do que os outros animais, a saber, a que une a cana à tíbia; e que, só pousando a ponta

do pé, como sem dúvida seria constrangido a fazer, o tarso, sem falar da pluralidade dos ossos que o

compõem, pareceria muito grosso para ficar no lugar da cana, e as suas articulações com o metatarso e a

tíbia muito próximas para dar à perna humana, nessa situação, a mesma flexibilidade que têm as dos

quadrúpedes. O exemplo das crianças, tomado numa idade em que as forças naturais ainda não estão

desenvolvidas, nem os membros consolidados, nada conclui; eu gostaria também de dizer que os cães

não estão destinados a caminhar, porque só se arrastam algumas semanas depois do nascimento. Os fatos

particulares têm ainda pouca força contra a prática universal de todos os. homens, mesmo das nações

que, não tendo tido nenhuma comunicação com as outras, nada tinham podido imitar delas. Uma criança

abandonada em uma floresta antes do poder andar, e nutrida por qualquer animal, terá seguido o exemplo

de sua nutriz, exercitando-se a caminhar do mesmo modo; o hábito lhe terá podido dar facilidades que

não teve da natureza; e, assim como os manetas conseguem, à força de exercício, fazer com os pés tudo

quanto fazemos com as mãos, ela conseguirá finalmente empregar as mãos em lugar dos pés.

(4). - Se, entre os meus leitores houvesse um físico bastante mau para me criar dificuldades sobre a

suposição dessa fertilidade natural da terra, eu lhe responderia com a passagem seguinte:

"Como os vegetais tiram para a sua nutrição mais substâncias do ar e da água do que da terra,

acontece que, apodrecendo, restituem à terra mais do que dela tiraram; aliás, uma floresta determina as

águas da chuva detendo os vapores. Assim, em um bosque conservado muito tempo sem ser tocado, a

camada de terra que serve para a vegetação aumentaria consideravelmente; mas, os animais, dando

menos à terra do que tiram dela, e os homens, consumindo enorme quantidade de madeira e de plantas

para o fogo e outros usos, resulta que a camada de terra vegetal de um país habitado deve sempre

diminuir o tornar-se enfim como o terreno da Arábia Pétrea e como o de tantas províncias do Oriente,

que é efetivamente o clima mais antigamente habitado, onde só se encontram sal e areia: porque o sal

fixo das plantas e dos animais fica, ao passo que todas as outras partes se volatilizam." (HIST. NAT,

Provas da Teoria da Terra, art. 7.).

Pode-se acrescentar a isso a prova de fato pela quantidade de árvores e plantas de toda espécie de que

estão cheias quase todas as ilhas desertas, descobertas nestes últimos séculos, e pelo que a história nos

Discurso sobre a origem da desigualdade

file:///C|/site/livros_gratis/origem_desigualdades.htm (48 of 64) [11/10/2001 19:05:32]

ensina das florestas imensas que foi preciso abater em toda a terra à medida que se povoou e foi policiada

Sobre isso, farei ainda as três observações seguintes: a primeira é que, se há uma espécie de vegetais que

possam compensar o desperdício de matéria vegetal que fazem os animais, segundo o raciocínio de

Buffon, são principalmente os bosques, cujas copas e folhas reúnem e possuem mais águas e vapores do

que as outras plantas; a segunda é que a destruição do solo, isto é, a perda da substância própria à

vegetação, deve acelerar-se à proporção que a terra é mais cultivada, e que os habitantes mais

industriosos consomem em maior abundância as suas produções de toda espécie; e a terceira e mais

importante observação é que os frutos das árvores fornecem ao animal uma nutrição mais abundante do

que os outros vegetais. A experiência foi feita por mim mesmo, ao comparar os produtos de dois terrenos

iguais em grandeza e qualidade, um coberto de castanheiros e outro semeado de trigo.

(5). - Entre os quadrúpedes, as duas distinções mais universais das espécies vorazes se tiram, uma da

forma dos dentes; e a outra da conformação dos intestinos. Os animais que vivem exclusivamente de

vegetais têm todos os dentes chatos, como o cavalo, o boi, o carneiro, a lebre; mas, os vorazes os têm

pontudos, como o gato, o cão, o lobo, a raposa. E, quanto aos intestinos, os frugívoros têm alguns, assim

como o cólon, que não se encontram nos animais vorazes. Parece, pois, que o homem, tendo os dentes e

os intestinos como os têm os animais frugívoros, deveria naturalmente ser incluído nessa classe; e não

somente as observações anatômicas confirmam essa opinião, mas os monumentos da antigüidade lhe são

ainda mais favoráveis. "Dicearco, diz São Jerônimo, refere, nos seus livros das antigüidades gregas, que,

sob o reino de Saturno, em que a terra era ainda fértil, por si mesma, nenhum homem comia carne, mas

viviam todos de frutas e legumes que cresciam naturalmente." (Liv. II, adv. Jovinian.) Essa opinião pode

apoiar-se ainda nas narrativas de muitos viajantes modernos. François Corréal testemunha, entre outros,

que a maior parte dos habitantes das Lucaias, que os espanhóis transportaram para as ilhas de Cuba, de

São Domingos e alhures, morreram por haver comido carne. Por aí se pode ver que negligencio muitas

vantagens que poderia fazer valer. Porque, sendo a presa quase o único motivo de combate entre os

animais carniceiros, e vivendo os frugívoros entre eles em uma paz contínua, se a espécie humana fosse

deste último gênero, claro que teria tido muito mais facilidade de subsistir no estado do natureza, e muito

menos necessidade e ocasião de sair dele.

(6). - Todos os conhecimentos que pedem reflexão, todos os que só se adquirem com o encadeamento

das idéias e só se aperfeiçoam sucessivamente, parecem estar inteiramente fora do alcance do homem

selvagem, pela falta de comunicação com os seus semelhantes, isto é, por falta do instrumento que serve

para essa comunicação e das necessidades que a tornam necessária. Seu saber e sua indústria se limitam a

saltar, correr, bater-se, lançar uma pedra, subir em uma árvore. Mas, se só sabe essas coisas, em

compensação as sabe muito melhor do que nós, que não temos a mesma necessidade dela que ele. E,

como dependem unicamente do exercício do corpo, não sendo suscetíveis de nenhuma comunicação nem

de nenhum progresso de um indivíduo para outro, o primeiro homem pode ser nisso tão hábil quanto os

seus descendentes.

As narrativas dos viajantes estão cheias de exemplos da força e do vigor dos homens nas nações

bárbaras e selvagens; não gabam menos sua destreza e agilidade; e, como basta ter olhos para observar

essas coisas, nada impede que nos mereça fé o que é certificado por testemunhas oculares. Tiro, ao acaso,

alguns exemplos dos primeiros livros que me vêm às mãos.

"Os hotentotes, diz Kolben, conhecem melhor a pesca do que os europeus do Cabo. Sua habilidade é

igual na rede, no anzol e no dardo, nas enseadas como nos rios. Não apanham menos habilmente o peixe

com a mão. São de destreza incomparável para nadar. Sua maneira de nadar tem qualquer coisa de

Discurso sobre a origem da desigualdade

file:///C|/site/livros_gratis/origem_desigualdades.htm (49 of 64) [11/10/2001 19:05:32]

surpreendente e que lhes é totalmente própria. Nadam com o corpo direito e as mãos estendidas para fora

d'água, de sorte que parecem andar na terra. Na maior agitação do mar e quando as ondas formam

montanhas, eles dançam de certo modo sobre o dorso das vagas, subindo e descendo como um pedaço de

cortiça. "Os hotentotes, diz ainda, o mesmo autor, são de uma destreza surpreendente na caça, e a

ligeireza de sua carreira ultrapassa a imaginação." Admira que não façam mais freqüentemente um mau

uso de sua agilidade, o que contudo acontece algumas vezes, como se pode julgar pelo exemplo que dá.

"Um marinheiro holandês, desembarcando no Cabo, encarregou, diz ele, um hotentote de o

acompanhar à cidade com um rolo de tabaco de cerca de vinte libras. Quando os dois estavam a alguma

distância da multidão, o hotentote perguntou ao marinheiro se ele sabia correr. "Correr? - responde o

holandês, - sim, e muito bem.." - "Vejamos", respondeu o africano, e, fugindo, com o tabaco,

desapareceu quase imediatamente. O marinheiro, confundido com essa maravilhosa rapidez, nem pensou

em segui-lo, e nunca mais viu o tabaco nem o seu portador.

Têm eles a vista tão pronta e a mão tão certa que os europeus nem se aproximam. A cem passos,

acertam, com uma pedrada, num alvo do tamanho de meio soldo. E o que há de mais espantoso é que, em

vez de fixar como nós os olhos no alvo, fazem movimentos e contorções contínuas. Parece que sua pedra

é arremessada por uma. mão invisível."

O padre Du Tertre diz, sobre os selvagens das Antilhas, mais ou menos as mesmas coisas que se

acabam de ler sobre os hotentotes do Cabo da Boa Esperança. Exalta, sobretudo, a sua precisão em atirar

com suas flechas em pássaros voando e em peixes na água, que agarram, em seguida, mergulhando. Os

selvagens da América setentrional não são menos célebres pela força e destreza, e eis um exemplo que

poderá servir para avaliar a dos índios da América meridional.

No ano de 1746, um índio de Buenos Aires, tendo sido condenado às galés em Cádiz, propôs ao

governo resgatar sua liberdade expondo a vida em uma festa pública. Prometeu que atacaria sozinho o

mais furioso touro sem outra arma nas mãos além de uma corda, e que o derrubaria, o seguraria com a

corda pela parte que fosse indicada, o selaria, por-lhe-ia freio, montaria nele e combateria, montado, dois

outros touros dos mais furiosos tirados do touril, matá-los-ia um após outro no instante que isso lhe fosse

ordenado e sem o auxílio de ninguém. Foi atendido. O índio cumpriu a palavra e saiu-se bem em tudo

quanto havia prometido. sobre a maneira como se portou e detalhes do combate, pode-se consultar o

primeiro tomo in-12 das Observações sobre a História Natural, de Gautier, de onde esse fato foi tirado,

pag. 262.

(7). - "A duração da vida dos cavalos, diz Buffon, é, como em todas as outras espécies de animais,

proporcional à duração do tempo do seu crescimento. O homem, que leva catorze anos a crescer, pode

viver seis ou sete vezes esse tempo, isto é, noventa ou cem anos, O cavalo, cujo crescimento se faz em

quatro anos, pode viver seis ou sete vezes tanto, isto é, vinte e cinco ou trinta anos. Os exemplos que

poderiam ser contrários a essa regra são tão raros que não devem mesmo ser olhados como exceção de

onde se possam tirar conclusões; e, como os grandes cavalos crescem mais depressa do que os pequenos,

vivem também menos tempo, e ficam velhos com quinze anos." (HISTÓRIA NATURAL, Do Cavalo.)

(8). - Entre os animais carnívoros e os frugívoros, creio ver outra diferença ainda mais geral do que a

que referi na nota 5, pois se estende também aos pássaros. Essa diferença consiste no número dos filhos,

que não excede nunca de dois de cada vez para as espécies que não vivem senão de vegetais, e que

ordinariamente ultrapassa esse número nos animais vorazes. É fácil conhecer, a esse respeito, o destino

da natureza pelo número das maminhas, duas em cada fêmea da primeira espécie, como o jumento, a

vaca, a cabra, a corça, a ovelha, etc., e que é sempre de seis ou de oito nas outras fêmeas, como a cadela,

a gata, a loba, a onça, etc. A galinha, a gansa, a pata, que são todos animais vorazes, assim como a águia,

Discurso sobre a origem da desigualdade

file:///C|/site/livros_gratis/origem_desigualdades.htm (50 of 64) [11/10/2001 19:05:32]

o gavião, o mocho, põem também e chocam grande número de ovos, o que não acontece jamais com a

pomba, a rola, nem com os pássaros que só comem grãos, os quais não põem nem chocam mais de dois

ovos de cada vez. A razão que se pode dar a essa diferença é que os animais que só vivem de ervas e

plantas estão quase o dia todo pastando, e, sendo forçados a empregar muito tempo a se nutrir, não

dariam conta da nutrição dos seus filhotes, ao passo que os vorazes, fazendo seu repasto quase em um

instante, podem mais facilmente e mais vezes ver os filhos e ir à caça, e reparar o gasto de uma grande

quantidade de leite. A respeito de tudo isso, haveria muitas observações particulares e reflexões que

fazer, mas não há aqui lugar para isso e me basta haver mostrado, nesta pequena parte, o sistema mais

geral da natureza, sistema que fornece uma nova razão de tirar o homem da classe dos carnívoros e de o

colocar entre as espécies frugívoras.

(9). - Um autor célebre, calculando os bens e os males da vida humana, e comparando as duas somas,

achou que a última ultrapassa muito a primeira, e que tomando o conjunto, a vida era para o homem um

péssimo presente. Não fiquei surpreendido com a conclusão; ele tirou todos os seus raciocínios da

constituição do homem civilizado. Se subisse até ao homem natural, pode-se julgar que encontraria

resultados muito diferentes; porque perceberia que o homem só tem os males que se criou para si mesmo,

o que à natureza se faria justiça. Não foi fácil chegarmos a ser tão desgraçados. Quando, de um lado,

consideramos o imenso trabalho dos homens, tantas ciências profundas, tantas artes inventadas, tantas

forças empregadas, abismos entulhados, montanhas arrasadas, rochedos quebrados, rios tornados

navegáveis, terras arroteadas, lagos cavados, pantanais dissecados, construções enormes elevadas sobre a

terra, o mar coberto de navios e marinheiros, e quando, olhando do outro lado, procuramos, meditando

um pouco as verdadeiras vantagens que resultaram de tudo isso para a felicidade da espécie humana, só

podemos nos impressionar com a espantosa desproporção que reina entre essas coisas, e deplorar a

cegueira do homem, que, para nutrir seu orgulho louco, não sei que vã admiração de si mesmo, o faz

correr ardorosamente para todas as misérias de que é suscetível e que a benfazeja natureza havia tomado

cuidado em afastar dele.

Os homens são maus, uma triste e contínua experiência dispensa a prova; entretanto, o homem é

naturalmente bom, creio havê-lo demonstrado. Que será, pois, que o pode ter depravado a esse ponto,

senão as mudanças sobrevindas na sua constituição, os progressos que fez e os conhecimentos que

adquiriu? Que se admire quanto se queira a sociedade humana, não será menos verdade que ela conduz

necessariamente os homens a se odiar entre si à proporção do crescimento dos seus interesses, a se

retribuir mutuamente serviços aparentes, e a se fazer efetivamente todos os males imagináveis. Que se

pode pensar de um comércio em que a razão de cada particular lhe dita máximas diretamente contrárias

àquelas que a razão pública prega ao corpo da sociedade, e em que cada um tira os seus lucros da

desgraça do outro? Não há, talvez, um homem abastado ao qual os seus herdeiros ávidos, e muitas vezes

seus próprios filhos, não desejem a morte, secretamente. Não há um navio no mar cujo naufrágio não

constituísse uma boa notícia para algum negociante; uma só casa que um devedor de má fé não quisesse

ver queimada com todos os documentos; um só povo que não se regozijasse com os desastres dos

vizinhos. É assim que tiramos vantagens do prejuízo dos nossos semelhantes, e que a perda de um faz

quase sempre a prosperidade do outro. Mas, o que há de mais perigoso ainda é que as calamidades

públicas são a expectativa e a esperança de uma multidão de particulares: uns querem as moléstias,

outros, a mortalidade; outros, a guerra; outros, a fome. Vi homens horrorizados chorando de dor ante as

aparências de um ano fértil; e o grande e funesto incêndio de Londres, que custou a vida e os bens a

tantos desgraçados, fez a fortuna de mais de dez mil pessoas.

Sei que Montaigne lastima o ateniense Dêmades por ter feito punir um operário que, vendendo muito

caro os caixões, ganhava muito com a morte dos cidadãos; mas, sendo a razão que Montaigne alega a de

Discurso sobre a origem da desigualdade

file:///C|/site/livros_gratis/origem_desigualdades.htm (51 of 64) [11/10/2001 19:05:32]

que seria preciso punir toda a gente, é evidente que confirma as minhas. Que se penetre, pois, através de

nossas frívolas demonstrações de benevolência, no que se passa no fundo dos corações, e que se reflita

no que deve ser um estado de coisas em que todos os homens são forçados a se acariciar e a se destruir

mutuamente, e em que nascem inimigos por dever e velhacos por interesse. Se me respondem que a

sociedade é assim constituída, que cada homem ganha em servir aos outros, replicarei que isso estaria

muito bem se não ganhasse ainda mais para prejudicá-lo. Não há proveito tão legítimo que não seja

ultrapassado pelo que se pode fazer ilegítimo, e o mal feito pelo próximo é sempre mais lucrativo que os

serviços. Não se trata, pois, senão de achar os meios de assegurar a impunidade, e é para isso que os

poderosos empregam todas as suas forças, e os fracos toda a sua astúcia.

O homem selvagem, quando acabou de comer, está em paz com toda a natureza, e é amigo de todos

os seus semelhantes. Se, algumas vezes, tem de disputar seu alimento, não chega nunca ao extremo sem

ter antes comparado a dificuldade de vencer com a de encontrar noutro lugar sua subsistência; e, como o

orgulho não se mistura ao combate, ele termina por alguns socos. O vencedor come o vencido vai

procurar fortuna noutra parte, e tudo está pacificado. Mas, no homem da sociedade, é tudo bem diferente;

trata-se, primeiramente, de prover ao necessário, depois, ao supérfluo. Em seguida, vêm as delícias,

depois as imensas riquezas, e depois súditos e escravos. Não há um momento de descanso. O que há de

mais original é que, quanto menos as necessidades são naturais e prementes, tanto mais as paixões

aumentam, e o que é pior, o poder de as satisfazer. De sorte que, após longas prosperidades, depois de

haver devorado muitos tesouros e desolado muitos homens, meu herói acabará por tudo arruinar, até que

seja o único senhor do universo. Tal é, abreviadamente, o quadro moral, senão da vida humana, pelo

menos das pretensões secretas do coração de todo homem civilizado.

Comparai, sem preconceitos, o estado do homem civilizado com o do homem selvagem, e investigai,

se o puderdes, como além da sua maldade, suas necessidades e suas misérias, o primeiro abriu novas

portas à miséria e à morte. Se considerardes os sofrimentos do espírito que nos consomem, as paixões

violentas que nos esgotam e nos desolam, os trabalhos excessivos de que os pobres estão

sobrecarregados, a moleza ainda mais perigosa à qual os ricos se abandonam, uns morrendo de

necessidades e outros de excessos; se pensardes nas monstruosas misturas de alimentos, na sua

perniciosa condimentação, nos alimentos corrompidos, nas drogas falsificadas, nas velhacarias dos que

as vendem, nos erros daqueles que as administram, no veneno do vasilhame no qual são preparadas; se

prestardes atenção nas moléstias epidêmicas oriundas da falta de ar entre multidões de seres humanos

reunidos, nas que ocasionam a nossa maneira delicada do viver, as passagens alternadas de nossas casas

para o ar livre, o uso de roupas vestidas ou despidas sem precauções, e todos os cuidados que a nossa

sensualidade excessiva transformou em hábitos necessários, e cuja negligência ou privação nos custa

imediatamente a vida ou a saúde; se puserdes em linha de conta os incêndios e os tremores de terra que,

consumindo ou derrubando cidades inteiras, fazem morrer os habitantes aos milhares; em uma palavra, se

reunirdes os perigos que todas essas causas acumulam continuamente sobre nossas cabeças, sentireis

como a natureza nos faz pagar caro o desprezo que temos dado às suas lições.

Não repetirei aqui o que já disse da guerra em páginas anteriores. Mas, desejaria que as pessoas

instruídas quisessem ou ousassem dar em público os detalhes dos horrores cometidos, nos exércitos,

pelos empresários dos víveres e dos hospitais: veríamos que suas manobras, não muito secretas, pelas

quais os mais brilhantes exércitos se fundem em menos do que nada, fazem morrer mais soldados do que

os ceifa o ferro inimigo. E ainda um cálculo não menos espantoso o dos homens que o mar engole todos

os anos, pela fome, pelo escorbuto, pelos piratas, pelo fogo, pelos naufrágios. É claro que também é

preciso assinalar por conta da propriedade estabelecida, o como conseqüência da sociedade, os

assassínios, os envenenamentos, os roubos avultados, as próprias punições desses crimes, punições

necessárias para prevenir maiores males, porém que, pelo assassínio do um homem, custando a vida a

Discurso sobre a origem da desigualdade

file:///C|/site/livros_gratis/origem_desigualdades.htm (52 of 64) [11/10/2001 19:05:32]

dois ou mais, não deixam de dobrar realmente a perda da espécie humana. Quantos meios vergonhosos

de impedir o nascimento dos homens e de enganar a natureza: ou por esse gosto brutal e depravado que

insulta a sua mais encantadora obra, gosto que os selvagens e os animais jamais conheceram, e que só

nasce nos países policiados e da imaginação corrompida; ou por meio de abortos secretos, dignos frutos

do deboche e da honra viciosa; ou pela exposição ou o assassínio de uma multidão de crianças, vítimas

da miséria dos pais, ou. da vergonha bárbara das mães; ou, enfim, pela mutilação desses desgraçados, dos

quais uma parte da existência e toda a posteridade são sacrificadas a vãs canções, ou, o que é ainda pior,

ao brutal ciúme de alguns homens, mutilação que, neste último caso, ultraja duplamente a natureza, pelo

tratamento que recebem aqueles que a suportam e pelo uso a que são destinados!.

Mas, não há milhares de casos mais freqüentes e mais perigosos ainda, em que os direitos paternos

ofendem abertamente a humanidade? Quantos talentos enterrados e inclinações forçadas pelo imprudente

constrangimento dos pais! quantos homens ter-se-iam distinguido em um estado apropriado, que morrem

desgraçados e desonrados em outro estado para o qual não tinham nenhuma aptidão nem gosto! quantos

casamentos felizes, mas desiguais foram rompidos ou perturbados, e quantas esposas castas desonradas,

por essa ordem de condições sempre em contradição com a da natureza! quantas outras uniões esquisitas

formadas pelo interesse e desaprovadas pelo amor e pela razão! quantos esposos honestos e virtuosos

mutuamente se proporcionam suplícios por se terem escolhido mal! Quantas jovens e desgraçadas

vítimas da avareza dos pais mergulham no vício ou passam seus tristes dias chorando e gemendo dentro

desses laços indissolúveis, que o coração repele e só o ouro formou! Felizes aqueles cuja coragem e

virtude os arrebatam à vida, antes que uma violência bárbara os force a passar ao crime ou ao desespero!

Perdoai-me, pai e mãe para sempre deploráveis: com pesar aumento vossas dores; mas, possam elas

servir de exemplo eterno e terrível a quem quer que ouse, em nome mesmo da natureza, violar o mais

sagrado dos seus direitos!

Se não falei senão desses nós mal formados que são a obra da nossa polícia, pensa-se que aqueles a

que o amor e a simpatia presidiram estejam isentos de inconvenientes? E se eu empreendesse mostrar a

espécie humana atacada na sua própria fonte, e até no mais sagrado de todos os laços, em que não se ousa

mais escutar a natureza senão depois de haver ouvido a fortuna, e em que, a desordem civil confundindo

as virtudes o os vícios, a continência se torna uma precaução criminosa, e a recusa de dar a vida a seu

semelhante um ato de humanidade! Mas, sem despedaçar o véu que cobre tantos horrores,

contentemo-nos de indicar o mal ao qual outros devem trazer remédio.

Que se acrescente a tudo isso essa quantidade da ofícios malsãos que abreviam os dias e destroem o

temperamento, tais como os trabalhos das minas, as diversas preparações dos metais, dos minerais,

principalmente do chumbo, do cobre, do mercúrio, do cobalto, do arsênico, do rosalgar; esses outros

ofícios perigosos que todos os dias custam a vida de uma porção de operários, uns entelhadores, outros

carpinteiros, outros pedreiros, outros trabalhadores de pedreira; que se reunam, repito, todos esses

objetos, e se poderão ver, no estabelecimento e perfeição das sociedades, as razões da diminuição da

espécie, observada por mais de um filósofo.

O luxo, impossível de prevenir entre os homens ávidos de suas próprias comodidades e da

consideração dos outros, acaba logo o mal que as sociedades começaram; e, sob o pretexto de fazer viver

os pobres, o que não era preciso, empobrece todo o resto e despovoa o Estado, cedo ou tarde.

O luxo é um remédio muito pior do que o mal que pretende curar; ou antes, é ele mesmo o pior dos

males, em qualquer Estado, grande ou pequeno, e que, para nutrir as multidões de criados e de miseráveis

que fez, acabrunha e arruina o trabalhador e o cidadão: como esses ventos escaldantes do sul que,

cobrindo as ervas e verduras de insetos devoradores, tiram a subsistência dos animais úteis e levam a

fome e a morte a todos os lugares em que se fazem sentir.

Da sociedade e do luxo que ela engendra, nascem as artes liberais e mecânicas, o comércio, as letras,

Discurso sobre a origem da desigualdade

file:///C|/site/livros_gratis/origem_desigualdades.htm (53 of 64) [11/10/2001 19:05:32]

e todas essas inutilidades que fazem florescer a indústria, enriquecem e perdem os Estados. A razão desse

deperecimento é muito simples. É fácil ver que, pela sua natureza, a agricultura deve ser a menos

lucrativa de todas as artes, porque, sendo o seu produto de uso mais indispensável para todos os homens,

o preço deve estar proporcionado às faculdades dos mais pobres. Do mesmo princípio pode-se tirar a

regra de que, em geral, as artes são lucrativas na razão inversa da sua utilidade, e de que as mais

necessárias, finalmente, devem tornar-se as mais negligenciadas. Por ai se vê o que se deve pensar das

verdadeiras vantagens da indústria e do efeito real que resulta dos seus progressos. Tais são as causas

sensíveis de todas as misérias em que a opulência precipita, finalmente, as nações mais admiradas. À

medida que a indústria e as artes se estendem e florescem, o cultivador desprezado, carregado de

impostos necessários à manutenção do luxo, e condenado a passar a vida entre o trabalho e a fome,

abandona o campo para ir procurar na cidade o pão que devia levar para lá. Quanto mais as capitais

impressionam de admiração os olhos estúpidos do povo, tanto mais seria preciso lastimar o abandono dos

campos, as terras incultas e as estradas cheias de cidadãos desgraçados transformados em mendigos ou

ladrões, e destinados um dia a acabar a sua miséria pelos caminhos ou sobre um monte de esterco. É

assim que o Estado se enriquece por um lado, e se enfraquece e se despovoa, por outro, e que as mais

poderosas monarquias, após muitos trabalhos para se tornarem opulentas e desertas, acabam por se tornar

a presa de nações pobres que sucumbem à funesta tentação de as invadir, e que são invadidas e

enfraquecem por sua vez, até que elas mesmas sejam invadidas e destruídas por outras.

Que se dignem explicar-nos o que teria podido produzir essas nuvens de bárbaros que, durante tantos

séculos, inundaram a Europa, a Ásia e a África. Seria à industria de suas artes, à excelência do sua

polícia, que deviam essa prodigiosa população? Que os nossos sábios nos digam porque, longe de ir a tal

ponto, esses homens ferozes, brutais, sem luzes, sem freio, sem educação, não se estrangulavam todos a

cada instante, para disputar o alimento ou a caça. Que nos expliquem como esses miseráveis tiveram

somente a ousadia de olhar em face tão hábeis pessoas como somos, com tão bela disciplina militar, tão

belos códigos e tão sábias leis. Enfim, porque, depois que a sociedade se aperfeiçoou nos países do Norte

e se teve tanto trabalho para ensinar aos homens seus deveres mútuos e a arte de viver agradável e

pacificamente em conjunto, não se vê mais nada sair de semelhante a essas multidões de homens que

produziam outrora. Receio muito que alguém se lembre, por fim, de me responder que todas essas

grandes coisas, a saber, as artes, as ciências e as leis, foram muito sabiamente inventadas pelos homens

como uma peste salutar para prevenir a excessiva multiplicação da espécie, com medo de que este mundo

acabasse se tornando muito pequeno para os seus habitantes.

Pois bem! será preciso destruir as sociedades, aniquilar o teu e o meu, e voltar a viver nas florestas

com os ursos? conseqüência à maneira dos meus adversários, que prefiro prevenir a lhes deixar a

vergonha de a concluir. Oh vós, para quem a voz celeste não se fez ouvir, e que não reconheceis para

vossa espécie outro destino senão o de acabar em paz esta curta vida; vós, que podeis deixar no meio das

cidades vossas funestas aquisições, vossos espíritos inquietos, vossos corações corrompidos e vossos

desejos desenfreados, retomai, pois que depende de vós, vossa antiga e primeira inocência; ide para os

bosques perder a vista e a memória dos crimes dos vossos contemporâneos, e não receeis aviltar vossa

espécie renunciando às suas luzes para renunciar aos seus vícios.

Quanto aos homens semelhantes a mim, cujas paixões destruíram para sempre a original simplicidade,

que não podem mais nutrir-se de ervas e de sementes, nem passar sem leis e sem chefes; àqueles que

foram honrados em seu primeiro pai com lições sobrenaturais; àqueles que hão de ver, na intenção de dar

primeiro às ações humanas uma moralidade que não tivessem adquirido de há muito, a razão do um

preceito indiferente por si mesmo e inexplicável em qualquer outro sistema; àqueles, eis uma palavra,

que estão convencidos de que a voz divina chamou todo o gênero humano para as luzes o para a

felicidade das celestes inteligências, - todos esses tratarão de merecer, pelo exercício das virtudes que se

Discurso sobre a origem da desigualdade

file:///C|/site/livros_gratis/origem_desigualdades.htm (54 of 64) [11/10/2001 19:05:32]

obrigar, a praticar aprendendo a conhecê-las, o prêmio eterno que devem esperar; respeitarão os sagrados

laços das sociedades, de que são membros; amarão seus semelhantes e os servirão com todo o seu poder;

obedecerão escrupulosamente às leis e aos homens, que são os seus autores e ministros; honrarão

principalmente os bons e sábios príncipes que saberão prevenir, curar ou fazer desaparecer essa multidão

de abusos e de males sempre prestes a nos acabrunhar; animarão o zelo desses chefes dignos,

mostrando-lhes sem temor e sem adulação a grandeza de sua tarefa e o rigor do seu dever; mas, não

desprezarão menos uma constituição que não se pode manter senão com o auxílio de tanta gente

respeitável que em geral se deseja mais do que se obtém, e da qual, apesar de tantos esforços, nascem

sempre mais calamidades reais do que vantagens aparentes.

(10). - Entre os homens que conhecemos, ou por nós mesmos, ou pelos historiadores, ou pelos

viajantes, uns são negros, outros brancos, outros vermelhos; uns têm cabelos longos, outros apenas uma

lã frisada; uns são quase completamente peludos, outros nem mesmo têm barba. Houve, e há ainda,

talvez, nações de homens de altura gigantesca; e, pondo do parte a fábula dos pigmeus, que bem pode

não passar de exagero, sabe-se que os lapões, e principalmente os groenlandeses, estão muito abaixo do

talhe médio dos homens. Pretende-se mesmo que há povos inteiros com caudas, como os quadrúpedes. E,

sem acreditar cegamente nas narrativas de Heródoto e de Ctésias, pode-se pelo menos deduzir a opinião

muito verossímil de que, se se tivessem podido fazer boas observações nos velhos tempos em que os

diversos povos seguiram maneiras de viver mais diferentes entre si do que hoje, ter-se-iam também

notado, no rosto e na compleição do corpo, variedades muito mais impressionantes. Todos esses fatos, de

que é fácil fornecer provas incontestáveis, só podem surpreender os que estão acostumados a olhar

somente os objetos que os rodeiam, ignorando os poderosos efeitos da diversidade dos climas, do ar, dos

elementos, da maneira de viver, dos hábitos em geral, e principalmente a força espantosa das mesmas

causas, quando atuam continuamente sobre longas séries de gerações. Hoje, que o comércio, as viagens e

as conquistas reúnem mais os diversos povos, e que suas maneiras de viver se aproximam sem cessar

pela freqüente comunicação, percebe-se que certas diferenças nacionais diminuíram; e, por exemplo,

cada qual pode observar que os franceses de hoje não são mais aqueles grandes corpos brancos e louros

descritos pelos historiadores latinos, embora o tempo, com a fusão dos francos e normandos, brancos e

louros, também devesse restabelecer o que a frequentação dos romanos tivesse podido tirar à influência

do clima, na constituição natural e cor dos habitantes. Todas essas observações, sobre as variedades que

milhares de causas podem produzir e efetivamente produziram na espécie humana, me fazem duvidar se

diversos animais semelhantes aos homens, que os viajantes sem mais exame tomaram como animais, ou

por causa de algumas diferenças que haviam notado na conformação exterior, ou somente porque esses

animais não falavam, não seriam de fato verdadeiros homens selvagens, cuja raça, dispersa remotamente

nos bosques, não tivera ocasião de desenvolver nenhuma de suas faculdades virtuais, nem adquirira

nenhum grau de perfeição, achando-se ainda no estado primitivo de natureza. Demos um exemplo do que

quero dizer.

"Encontra-se, diz o tradutor da Histórias das Viagens, no vêem-se duas espécies de monstros, sendo

os maiores chamados orangotangos nas Índias orientais, que constituem como que o meio termo entre a

espécie humana e os babuínos. Battel conta que, nas florestas de Maiomba, no reino de Loango, vêem-se

duas espécies de monstros, sendo os maiores chamados pongos e os outros enjocos. Os primeiros

assemelham-se exatamente ao homem, mas são muito mais corpulentos e de talhe muito alto. Com rosto

humano, têm olhos muito fundos. As mãos, faces e orelhas não têm pêlo, à exceção das sobrancelhas,

que a têm muito longas. Embora tenham o resto do corpo muito peludo, o pêlo não é muito espesso, e sua

cor é castanha. Enfim, a única parte que os distingue dos homens é a perna, que não tem barriga. Andam

direitos, segurando com a mão o pêlo do pescoço; seu esconderijo é nos bosques; dormem acima das

Discurso sobre a origem da desigualdade

file:///C|/site/livros_gratis/origem_desigualdades.htm (55 of 64) [11/10/2001 19:05:32]

árvores e fazem para si uma espécie de teto que os resguarda da chuva. Alimentam-se de frutas e nozes

silvestres. Jamais comem carne. Os negros que atravessam as florestas costumam acender fogos durante

a noite; notam que de manhã, quando partem, os pongos tomam-lhes o lugar em torno do fogo, só se

retirando quando o fogo se extingue; porque, embora tenham muita habilidade, não têm bastante senso

para o entreter pondo nele a lenha.

"Andam algumas vezes em rebanho, e matam os negros que atravessam as florestas. Atacam até os

elefantes que vão pastar nos lugares por eles habitados, e os maltratam tanto com murros e pauladas que

os forçam a fugir soltando gritos. Jamais se pegam pongos vivos, porque são tão robustos que dez

homens não seriam bastantes para os segurar: mas, os negros apanham muitos dos mais novos, depois de

matar-lhes a mãe, ao corpo da qual o menorzinho se agarra fortemente. Quando um desses animais

morre, os outros lhe cobrem o corpo com uma porção do ramos e folhagens. Purchase acrescenta que,

conversando com Battel, dele soubera que um pongo lhe roubara um negrinho, o qual passou um mês

inteiro na sociedade desses animais; porque não fazem nenhum mal aos homens que surpreendem, pelo

menos quando estes não os olham, como o negrinho observou. Battel não descreveu a segunda espécie de

monstros.

"Drapper confirma que o reino do Congo está cheio desses animais conhecidos nas Índias pelo nome

de orangotangos, isto é, habitantes dos bosques, o que os africanos chamam de quojas morros. Esse

animal, diz ele, é tão semelhante ao homem que alguns viajantes se convenceram de que poderia ser filho

de uma mulher e de um macaco: quimera que os próprios negros rejeitam. Um desses animais foi

transportado do Congo para a Holanda e apresentado ao príncipe de Orange, Frederico Henrique. Era da

altura de uma criança de três anos, de gordura medíocre, mas quadrado e bem proporcionado, muito ágil

e muito vivo, as pernas carnudas e robustas, toda a frente do corpo sem pêlos, mas com as costas cobertas

de pêlos negros. A primeira vista, seu rosto assemelhava-se ao de um homem, mas tinha o nariz chato e

recurvado; as orelhas eram também as da espécie humana; o seio, pois era uma fêmea, era carnudo, o

umbigo profundo, os ombros bem juntos, as mãos divididas em dedos e com polegar, a barriga da perna e

os calcanhares gordos e carnudos. Caminhava, muitas vezes, direito, sobre as pernas, e era capaz de

levantar e carregar fardos muito pesados. Quando queria beber, pegava com uma das mãos a tampa do

vaso e com a outra o fundo, e em seguida enxugava graciosamente os lábios. Para dormir, deitava a

cabeça em um travesseiro, cobrindo-se tão bem que podia ser tomado por um homem no leito. Os negros

contam estranhas histórias desse animal: asseguram não somente que ele força as mulheres e as

raparigas, mas que ousa atacar homens armados. Em uma palavra, há muita aparência de que seja o sátiro

dos antigos. Merolla só faia talvez desses animais quando conta que os negros, nas suas caçadas, pegam

algumas vezes homens e mulheres selvagens." No terceiro tomo da mesma História das Viagens, fala-se

ainda dessa espécie de animais antropomorfos, sob o nome de beggos e mandrills: mas, atendo-nos às

narrativas precedentes, encontram-se, na descrição desses pretensos monstros, conformidades

impressionantes com a espécie humana e diferenças menores do que as que se poderiam assinalar de

homem para homem. Não se vêem, nessas passagens, as razões nas, quais os autores se fundam para

recusar aos animais em questão o nome de homens selvagens; mas, é fácil conjecturar que é por serem

estúpidos e por não falarem; são razões fracas para os que sabem que, embora o órgão da palavra seja

natural ao homem, a própria palavra não lhe é contudo natural, e para os que sabem até que ponto sua

perfectibilidade pode ter elevado o homem civilizado acima do seu estado original. O pequeno número

de linhas que contêm essas descrições nos pode fazer julgar como esses animais foram mal observados e

com que preconceitos foram vistos. Por exemplo, são qualificados de monstros, e entretanto, concorda-se

que reproduzem. Em um lugar, Battel diz que os pongos matam os negros que atravessam as florestas;

em outro, Purchass acrescenta que não fazem nenhum mal, mesmo quando os surpreendem, pelo menos

quando os negros não se ponham a olhá-los. Os pongos reúnem-se em torno de fogos acesos pelos negros

Discurso sobre a origem da desigualdade

file:///C|/site/livros_gratis/origem_desigualdades.htm (56 of 64) [11/10/2001 19:05:32]

quando estes se retiram, e se retiram por sua vez quando o fogo se extingue; eis aí o fato; e agora, eis o

comentário do observador: porque têm muita habilidade; mas não têm bastante senso para o entreter

pondo nele a lenha. Eu desejaria adivinhar como Battel, ou Purchass, seu compilador, pode saber que a

retirada dos pongos era um efeito de sua estupidez e não de sua vontade. Em um clima como o de

Loango, o fogo não é coisa muito necessária aos animais; e, se os negros o acendem, é menos contra o

frio do que para espantar os animais ferozes: é, pois, muito simples que, depois de se divertirem um

pouco com as chamas, ou de se aquecerem, os pongos se aborreçam de ficar sempre no mesmo lugar e

saiam para pastar, o que exige mais tempo do que se comessem carne. Aliás, sabe-se que a maior parte

dos animais, sem excetuar o homem, são naturalmente preguiçosos e se recusam a toda sorte de cuidados

que não sejam de absoluta necessidade. Enfim, parece muito estranho que os pongos, cuja habilidade e

força se exaltam, os pongos, que sabem enterrar os mortos e fazer tetos de ramagens, não saibam pôr

lenha no fogo. Lembro-me de ter visto um macaco fazer essa mesma manobra que se pretende que os

pongos não possam fazer: é verdade que, não se tendo minhas idéias voltado para esse lado, cometo

também a falta que censuro nos viajantes e me descuidei de examinar se a intenção do macaco era com

efeito entreter o fogo, ou simplesmente, como creio, imitar a ação do homem. Seja como for, está bem

demonstrado que o macaco não é uma variedade do homem, não somente porque é privado da faculdade

de falar, mas principalmente porque é certo que sua espécie não tem a de se aperfeiçoar, que é o caráter

específico da espécie do homem: essas experiências parecem não ter sido feitas sobre o pongo e o

orangotango com bastante cuidado para se poder tirar a mesma conclusão. Haveria, contudo, um meio

pelo qual, se o orangotango ou outros fossem da espécie humana, os observadores mais grosseiros

poderiam certificar-se disso, mesmo com demonstração; mas, além de que uma só geração não bastaria

para essa experiência, ela deve passar por impraticável, porque seria preciso que aquilo que é apenas uma

suposição fosse demonstrado como verdadeiro, antes que a prova que deveria constatar o fato pudesse ser

tentada inocentemente.

Os julgamentos precipitados, que não são o fruto de uma razão esclarecida, estão sujeitos a cair no

exagero. Nossos viajantes fazem, sem cerimônia, animais sob o nome de pongos, mandrills,

orangotangos, desses mesmos seres dos quais, sob o nome de sátiros, faunos, silvanos, os antigos faziam

divindades. É possível que, depois de muitas pesquisas, se descubra que não são nem animais nem

deuses, mas homens. Enquanto se espera, parece-me haver tanta razão em recorrer a Merolla, religioso

letrado, testemunha ocular, e que, com toda a sua ingenuidade, não deixava de ser homem de espírito,

como ao negociante Battel, a Drapper, a Purchass e aos outros compiladores.

Que juízo se pensa que tenham feito semelhantes observadores sobre a criança encontrada em 1694,

de que já falei atrás, que não dava nenhum sinal de razão, caminhava sobre os pés e sobre as mãos, não

tinha nenhuma linguagem e formava sons que em nada se pareciam com os de um homem? Levou muito

tempo, continua o mesmo filósofo que me fornece este fato, para poder proferir algumas palavras, e

ainda assim o fez de maneira bárbara. Logo que pode falar, interrogaram-na sobre o seu primeiro estado;

mas, lembrava-se tanto dele quanto nós do que nos aconteceu no berço. Se, desgraçadamente para ela,

essa criança caísse nas mãos dos nossos viajantes, não se pode duvidar de que, depois de notar o seu

silêncio e a sua estupidez, decidiriam fazê-la voltar para o mato ou encerrá-la em uma jaula; depois, em

belas narrativas, falariam dela, sabiamente, como de um animal muito curioso que se parecia com o

homem.

Há trezentos ou quatrocentos anos que os habitantes da Europa inundam as outras partes do mundo, e

publicam sem cessar novas narrativas de viagens o relatórios, e estou persuadido de que só conhecemos

homens europeus; ainda parece, diante dos ridículos preconceitos que não desapareceram mesmo entre os

homens letrados, que cada qual, sob o nome pomposo de estudo do homem, faz apenas o dos homens do

seu país. Os particulares podem ir e vir, mas parece que a filosofia não viaja, de tal maneira a de cada

Discurso sobre a origem da desigualdade

file:///C|/site/livros_gratis/origem_desigualdades.htm (57 of 64) [11/10/2001 19:05:32]

povo é pouco apropriada para outro. A causa disso é manifesta, pelo menos para as regiões afastadas: só

há quatro espécies de homens que fazem viagens de longo curso: os marinheiros, os comerciantes, os

soldados e os missionários. Ora, não se pode esperar que as três primeiras forneçam bons observadores;

e, quanto aos da quarta, ocupados com a vocação sublime que os chama, quando não estivessem sujeitos

a preconceitos de estado como todos os outros, devo-se crer que não se entregariam de boa vontade a

pesquisas que parecem de pura curiosidade e que os desviariam dos trabalhos mais importantes aos quais

se destinam. Aliás, para pregar utilmente o Evangelho, não é preciso senão zelo, dando Deus o resto;

mas, para estudar os homens, é preciso ter talentos que Deus não se compromete a dar a ninguém e que

nem sempre confere aos santos. Não se abre um livro de viagens em que não se encontrem descrições de

caracteres e de costumes; fica-se, porém, admirado de ver que as pessoas que descrevem tantas coisas só

tenham dito o que todos já sabiam, só tenham percebido, no outro extremo do mundo, o que só a elas

seria dado notar sem sair da sua rua, e de que esses traços verdadeiros que distinguem as nações, e que

impressionam os olhos feitos para ver, tenham quase sempre escapado aos seus. Daí veio o belo adágio

de moral, tão repetido pela turba filosófica, de que os homens são os mesmos em toda parte, tendo em

toda parte as mesmas paixões e os mesmos vícios, sendo bastante inútil procurar caracterizar os

diferentes povos. Ora, isso é raciocinar quase tão bem como se se dissesse que não se poderia distinguir

Pedro de Tiago, porque ambos têm nariz, boca e olhos.

Será que não veremos mais renascer esses tempos felizes em que os povos não se metiam a filosofar,

mas em que os Platão, os Tales, e os Pitágoras, tomados de um desejo ardente de saber, empreendiam as

maiores viagens unicamente para se instruírem, indo sacudir longe o jugo dos preconceitos nacionais,

aprender a conhecer os homens pelas suas conformações e pelas suas diferenças, e adquirir esses

conhecimentos universais que não são os de um século ou de um país exclusivamente, mas que, sendo de

todos os tempos e de todos os lugares, são, por assim dizer, a ciência comum dos sábios?

Admira-se a magnificência de alguns curiosos que fizeram ou mandaram fazer, com grandes despesas,

viagens ao Oriente, com sábios e pintores, para aí desenhar pardieiros e decifrar ou copiar inscrições;

mas, custa-me conceber como, num século em que todos se jactam de belos conhecimentos, não se

encontrem dois homens bem unidos, ricos, um de dinheiro, outro de gênio, ambos amando a glória e

aspirando à imortalidade, que sacrifiquem, um vinte mil escudos de sua fortuna, e o outro, dez anos de

sua vida, numa célebre viagem ao redor do mundo, para estudar, nem sempre pedras e plantas, mas, por

uma vez; os homens e os costumes, e que, depois de tantos séculos empregados em medir e considerar a

casa, se lembrem enfim de procurar conhecer os seus habitantes.

Os acadêmicos que percorreram as partes setentrionais da Europa o meridionais da América tinham

por objeto visitá-las mais como geômetras do que como filósofos. Entretanto, como ao mesmo tempo

eram uma coisa e outra, não se podem olhar como absolutamente desconhecidas as regiões que foram

vistas e descritas pelos La Condamine e os Maupertuis. O joalheiro Chardin, que viajou como Platão,

nada deixou que dizer sobre a Pérsia. A China parece ter sido bem observada pelos jesuítas. Kempfer dá

uma idéia passável do pouco que viu no Japão. Excetuadas essas narrativas, não conhecemos os povos

das Índias orientais, freqüentados unicamente por europeus mais curiosos de encher as suas boinas do

que as suas cabeças. A África inteira e os seus numerosos habitantes, tão singulares pelo caráter como

pela sua cor, estão ainda por examinar; toda a terra está coberta de nações das quais só conhecemos os

nomes, e nos metemos a julgar o gênero humano! Suponhamos um Montesquieu, um Buffon, um

Diderot, um Duclos, um d'Alembert, um Condillac, ou homens dessa têmpera viajando para instruir seus

compatriotas, observando e descrevendo, como sabem fazer, a Turquia, o Egito, a Barbaria, o império de

Marrocos, a Guiné, - o país dos cafres, o interior da África e suas costas orientais, os malabares, a

Mongólia, as margens do Ganges, os reinos do Sião, de Pegú, e de Ava, a China, a Tartária e,

principalmente, o Japão; depois, no outro hemisfério, o México, o Peru, o Chile, as terras magelânicas,

Discurso sobre a origem da desigualdade

file:///C|/site/livros_gratis/origem_desigualdades.htm (58 of 64) [11/10/2001 19:05:32]

sem esquecer os patagões verdadeiros ou falsos, o Tucumã, o Paraguai, se possível, o Brasil; enfim, os

caraibas, a Flórida, e todas as regiões selvagens (seria a mais importante de todas as viagens, e a que

deveria ser feita com mais cuidado). Suponhamos que esses novos Hércules, de volta dessas carreiras

memoráveis, terminassem em seguida, com vagar, a história natural, moral e política do que tivessem

visto; veríamos sair um novo mundo de baixo de sua pena, e aprenderíamos assim a conhecer o nosso.

Repito que, quando semelhantes observadores afirmassem que tal animal é um homem e um outro uma

besta, seria preciso crer; mas, seria grande ingenuidade proceder do mesmo modo com viajantes

grosseiros, sobre os quais se é tentado, às vezes, a colocar a mesma questão que eles se metem a resolver

sobre outros animais.

(11). - Isso me parece a última evidência, e eu não poderia conceber de onde os nossos filósofos

podem fazer nascer todas as paixões que pretendem no homem natural. Excetuado apenas o necessário

físico, que a própria natureza pede, todas as nossas outras necessidades só o são pelo hábito, antes do

qual não eram necessidades, ou pelos desejos, e não se deseja o que não se está em estado do conhecer.

Daí resulta que, como o homem selvagem só deseja as coisas que conhece e como só conhece aquelas

cuja posse está ao seu alcance, ou é fácil adquirir, nada devo ser tão tranqüilo como a sua alma e nada tão

limitado como o seu espírito.

(12). Encontro, no Governo Civil, de Locke, uma objeção que me parece muito especiosa para que me

seja permitido dissimulá-la. "Como o fim da sociedade entre o macho e a fêmea, diz esse filósofo, não é

simplesmente procriar, mas continuar a espécie, essa sociedade deve durar, mesmo após a. procriação,

pelo menos tanto tempo quanto é necessário para a nutrição e conservação dos procriados, isto é, até que

eles mesmos sejam capazes de prover às suas necessidades. Vemos que essa regra, que a sabedoria

infinita do Criador estabeleceu sobre as obras de suas mãos, é constantemente observada e com exatidão

pelas criaturas inferiores ao homem. Nos animais que vivem de ervas, a sociedade entre o macho e a

fêmea não dura mais tempo do que o ato da copulação, porque, sendo as maminhas da mãe suficientes

para nutrir os filhos até que sejam capazes de pastar as ervas, o macho se contenta em gerar e não se

preocupa, depois disso, com a fêmea nem com os filhotes, para cuja subsistência em nada pode

contribuir. Mas, em relação aos animais de presa, a sociedade dura mais tempo, porque, não podendo a

mãe bem prover à sua própria subsistência e ao mesmo tempo nutrir os filhos somente com sua presa, o

que é uma maneira de nutrir-se não só mais trabalhosa como mais perigosa do que a de se nutrir de ervas,

a assistência do macho é absolutamente necessária para a manutenção de sua família comum, se se pode

usar esse termo. Os filhos, enquanto não puderem procurar alguma presa, só podem subsistir pelos

cuidados do macho e da fêmea. Nota-se a mesma coisa entre todos os pássaros, salvo alguns pássaros

domésticos que se encontram em lugares nos quais a contínua abundância de nutrição isenta o macho de

nutrir os filhotes. Vê-se que, enquanto os filhotes, ainda no ,ninho, têm necessidade de alimento, o macho

e fêmea para ai o levam até que possam voar e prover à sua subsistência.

"Nisso, a meu ver, consiste a principal, se não a única razão por que o macho e a fêmea, no gênero

humano, são obrigados a uma sociedade mais longa do que a que mantêm as outras criaturas. Essa razão

é que a mulher é capaz de conceber e, de ordinário, ficar grávida outra vez e ter um novo filho antes que

o precedente esteja em condições de dispensar o auxílio dos pais e prover às suas necessidades. Assim,

um pai, sendo obrigado a cuidar durante muito tempo daqueles que gerou, é também obrigado a

continuar a viver na sociedade conjugal com a mesma mulher de quem os teve, e a ficar nessa sociedade

muito mais tempo do que as outras criaturas, cujos filhos podendo subsistir por si mesmos antes de

chegar o tempo de nova procriação, o laço da fêmea e do macho se rompe naturalmente e ambos se

encontram em plena liberdade, até que a estação que costuma solicitar os animais a se juntarem os

Discurso sobre a origem da desigualdade

file:///C|/site/livros_gratis/origem_desigualdades.htm (59 of 64) [11/10/2001 19:05:32]

obrigue a escolher novas companhias. E, nisso, nunca admiraríamos bastante a sabedoria do Criador,

que, tendo dado ao homem qualidades próprias, para prover tão bem ao futuro quanto presente, quis e fez

de maneira que a sociedade do homem durasse muito mais tempo do que a do macho e da fêmea entre as

outra criaturas, a fim de que, desse modo, a indústria do homem e da mulher fosse mais excitada e os

seus interesses mais unidos, com o objetivo de fazer provisões para os filhos e lhes deixar bens, nada

podendo ser mais prejudicial às crianças do que uma conjunção incerta e vaga, ou uma dissolução fácil e

freqüente da sociedade conjugal"

O mesmo amor à verdade, que me faz expor sinceramente essa objeção, me leva a acompanhá-la de

algumas notas, se não para resolvê-la, ao menos para esclarecê-la.

1. Observei, primeiro, que as provas morais não têm grande força em matéria de física, e que servem

antes para explicar fatos existentes do que para constatar a existência real desses fatos. Ora, tal é o gênero

de prova que Locke emprega na passagem que acabo de citar; porque, embora possa ser vantajoso para a

espécie humana que a união do homem e da mulher seja permanente, não se segue que isso tenha sido

estabelecido pela natureza. Do contrário, seria preciso dizer que ela instituiu também a sociedade civil, as

artes, o comércio, e tudo que se pretende que seja útil aos homens.

2. Ignoro onde Locke descobriu que entre os animais de presa a sociedade do macho e da fêmea dura

mais tempo do que entre os que vivem de ervas, e que um ajuda o outro a nutrir os filhos; com efeito, não

se vê o cão, o gato, o urso ou o lobo reconhecerem a fêmea melhor do que o cavalo, o carneiro, o touro, o

veado, ou quaisquer outros animais quadrúpedes. Parece, ao contrário, que, se o socorro do macho fosse

necessário à fêmea para conservar os filhos, assim o seria sobretudo nas espécies que só vivem de ervas,

porque é preciso muito tempo à mãe para pastar, sendo forçada, durante todo esse intervalo, a se

descuidar da prole, ao passo que a presa de uma ursa ou de uma loba é devorada em um instante, tendo

ela, sem sofrer a fome, mais tempo para amamentar os filhos. Esse raciocínio é confirmado por uma

observação sobre o número relativo de mamas e de filhos que distingue as espécies carnívoras, e de que

já falei na nota 8. Se essa observação é justa e geral, só tendo a mulher dois seios, e um filho de cada vez,

eis mais uma forte razão para duvidar que a espécie humana seja naturalmente carnívora; de sorte que

parece que, para tirar a conclusão de Locke, seria necessário raciocinar de modo absolutamente contrário.

Não há mais solidez na mesma distinção aplicada às aves. Porque quem poderá se persuadir de que a

união do macho e da fêmea seja mais durável entre os abutres e os corvos do que entre as rolas? Temos

duas espécies de aves domésticas, o pato e o pombo, que nos fornecem exemplos diretamente contrários

ao sistema desse autor. O pombo, que só vive de grãos, fica unido à fêmea, e nutrem os filhos em

comum. O pato, cuja voracidade é conhecida, não reconhece nem a fêmea nem os filhos, e em nada

auxilia sua subsistência. E, entre as galinhas, espécie que não é menos carnívora, não se vê o galo

incomodar-se com a ninhada. Se, em outras espécies, o macho partilha com a fêmea o cuidado de nutrir

os filhos, é que as aves, que a princípio não podem voar e a mãe não pode aleitar, estão muito menos em

condições de passar sem a assistência do pai do que os quadrúpedes, aos quais basta a maminha da mãe,

pelo menos durante algum tempo.

3. Há muita incerteza sobre o fato principal que serve de base a todo o raciocínio de Locke: porque,

para saber, como ele pretende, se, no puro estado de natureza, a mulher fica, de ordinário, grávida outra

vez e tem um novo filho muito tempo antes que o precedente possa prover suas necessidades, seriam

necessárias experiências que seguramente Locke não fez e que ninguém tem facilidade em fazer. A

coabitação contínua do marido e da mulher é uma ocasião tão próxima de se expor ela a uma nova

gravidez, que é bem difícil acreditar que o encontro fortuito ou o simples impulso de temperamento

produza efeitos tão freqüentes no puro estado de natureza como no da sociedade conjugal. Essa lentidão

contribuiria, talvez, para tornar os filhos mais robustos, e poderia, aliás, ser compensada pela faculdade

de conceber, prolongada a uma idade mais avançada nas mulheres que não tenham abusado dela na

Discurso sobre a origem da desigualdade

file:///C|/site/livros_gratis/origem_desigualdades.htm (60 of 64) [11/10/2001 19:05:32]

juventude. Em relação às crianças, há muitas razões para crer que as suas forças e os seus órgãos se

desenvolvem, entre nós, mais tarde do que no estado primitivo de que falo. A fraqueza original herdada

da constituição dos pais, os cuidados tomados para envolver e estorvar todos os seus membros, a moleza

na qual são educadas, talvez o uso de outro leite que não o de sua mãe, tudo contraria e retarda nelas os

primeiros progressos da natureza. A aplicação que são obrigadas a dar a mil coisas sobre as quais se fixa

continuamente sua atenção, ao passo que não só dá nenhum exercício às suas forças corporais, pode

ainda causar um desvio considerável no seu crescimento; de sorte que, se, em vez de lhes sobrecarregar e

fatigar a princípio o espírito de mil maneiras, se deixasse que exercitassem o corpo nos movimentos

contínuos que a natureza parece reclamar, é de se crer que estariam muito mais cedo em condições de

andar, de agir e de prover às suas necessidades.

4. Finalmente, Locke prova, quando muito, que poderia bem haver no homem um motivo de ficar

ligado à mulher quando ela tem um filho; mas, não prova, de modo algum, que ele lhe deva ficar ligado

antes do parto e durante os nove meses de gravidez. Se tal mulher é indiferente ao homem durante esses

nove meses, se se torna mesmo desconhecida para ele, porque socorrê-la depois do parto? porque

ajudá-la a criar um filho que ele sabe que não pertence somente a ele, e cujo nascimento não resolveu

nem previu? Locke supõe, evidentemente, o que está em discussão, porque não se trata de saber a razão

pela qual o homem ficará ligado à mulher depois do parto, mas, pela qual se ligará a ela depois da

concepção. Satisfeito o apetite, e homem não tem mais necessidade de tal mulher, nem a mulher de tal

homem. Este não tem a menor preocupação, nem talvez a menor idéia das conseqüências do sua ação.

Um vai para um lado, e o outro para outro, não havendo aparência de que, após nove meses, tenham

lembrança de se terem conhecido; porque essa espécie de lembrança, pela qual um indivíduo dá

preferência a outro indivíduo para o ato da geração exige, como provo no texto, mais progressos ou

corrupção no entendimento humano do que se pode supor existir no estado de animalidade de que

tratamos. Uma outra mulher pode, pois, contentar os novos desejos do homem tão comodamente quanto

aquela que ele já conheceu, e outro homem contentar do mesmo modo a mulher, supondo-se que ela seja

premida pelo mesmo apetite durante o estado de gravidez, do que razoavelmente se pode duvidar. É que

se, no estado de natureza, a mulher não sente mais a paixão do amor após a concepção do filho, o

obstáculo à sua sociedade com o homem se torna ainda muito maior, pois que então ela não tem mais

necessidade nem do homem que a fecundou, nem de nenhum outro. Não há, pois, no homem nenhuma

razão para procurar de novo a mesma mulher, nem na mulher nenhuma razão para procurar de novo o

mesmo homem. O raciocínio de Locke cai, pois, em ruínas, e toda a dialética desse filósofo não o livrou

do erro que Hobbes e outros cometeram. Eles tinham que explicar um fato do estado de natureza, isto é,

de um estado em que os homens viviam isolados, e em que um homem não tinha nenhum motivo para

permanecer ao lado de outro, nem talvez os homens nenhum motivo para permanecer ao lado uns dos

outros, o que é muito pior, e não pensaram em se transportar para além dos séculos de sociedade, isto é,

além desses tempos em que os homens têm sempre uma razão para permanecer perto uns dos outros, e

em que um homem tem muitas vezes uma razão para ficar ao lado de outro homem ou de outra mulher.

(13). - Terei bem cuidado em me não comprometer nas reflexões filosóficas que seria necessário fazer

sobre as vantagens e os inconvenientes dessa instituição das línguas: não é a mim que se permite atacar

os erros vulgares, e o povo letrado respeita demais os seus preconceitos para suportar pacientemente os

meus pretensos paradoxos. Deixemos, pois, falar as pessoas às quais não imputamos o crime de tomarem

algumas vezes o partido da razão contra as opiniões da multidão. Nec quidquam felicitati humani generis

decederet, si, pulsa tot linguarum peste et confusione, unam artem callerent mortales, et signis, motibus,

gestibusque, licitum foret quidvis explicare. Nunc vero ita comparatum est, ut animalium quoe vulgo

bruta creduntur melior longe quam nostra hac in parte videatur conditio, utpote quoe promptius, et forsan

Discurso sobre a origem da desigualdade

file:///C|/site/livros_gratis/origem_desigualdades.htm (61 of 64) [11/10/2001 19:05:32]

felicius, sensus et cogitationes suas sine interprete significent, quam ulli queant mortales, proesertim si

peregrino utantur sermone.(Is. Vossius, De Poemat. Cant. et Viribus Rhythmi, pag. 66.)

(14). - Platão, mostrando quanto as idéias da quantidade discreta e de suas relações são necessárias

nas menores artes, ridiculariza com razão os autores do seu tempo que pretendiam que Palamedes

inventara os números no cerco de Tróia, como se, diz o filósofo, Agamemnon pudesse ignorar, até então,

quantas pernas tinha. Efetivamente, sente-se a impossibilidade de que a sociedade e as artes tivessem

chegado aonde estavam já no tempo do cerco do Tróia, sem que os homens tivessem usado os números e

os cálculos: mas, a necessidade de conhecer os números, antes de adquirir outros conhecimentos, não

torna a sua invenção mais fácil de imaginar. Uma vez conhecidos os nomes dos números, é fácil

explicar-lhes o sentido e excitar as idéias que esses nomes representam; mas, para os inventar, foi

preciso, antes de conceber essas mesmas idéias, estar por assim dizer familiarizado com as meditações

filosóficas, exercitado em considerar os seres só por sua essência e independentemente de qualquer outra

percepção. Essa abstração é muito penosa, muito metafísica, muito pouco natural, e, no entanto, sem ela,

essas idéias nunca teriam podido se transportar de uma espécie ou de um gênero a outro, nem os números

tornarem-se universais. Um selvagem podia considerar separadamente sua perna direita e sua perna

esquerda, ou as olhar em conjunto sob a idéia indivisível de um par, sem jamais pensar que tivesse duas;

porque uma coisa é a idéia representativa que nos pinta um objeto, e outra coisa a idéia numérica que o

determina. Menos ainda podia ele calcular até cinco, e, embora aplicando as mãos uma sobre a outra,

pudesse notar que os dedos se correspondiam exatamente, estava bem longe de pensar na sua igualdade

numérica; não sabia mais a soma dos seus dedos que a dos seus cabelos; e, se, depois de lhe haver feito

entender o que são os números, alguém lhe dissesse que ele tinha tantos dedos nos pés quanto nas mãos,

talvez tivesse ficado surpreendido, comparando-os, de ver que era verdade.

(15). - É preciso não confundir o amor-próprio e o amor de si mesmo, duas paixões muito diferentes

por sua natureza e por seus efeitos. O amor de si mesmo é um sentimento natural que leva todo animal a

velar por sua própria conservação, e que, dirigido no homem pela razão e modificado pela piedade,

produz a humanidade e a virtude. O amor-próprio é apenas um sentimento relativo, factício e nascido na

sociedade, que leva cada indivíduo a fazer mais caso de si do que de qualquer outro, que inspira aos

homens todos os males que se fazem mutuamente, e que é a verdadeira fonte da honra. Bem entendido

isso, repito que, no nosso estado primitivo, no verdadeiro estado de natureza, o amor-próprio não existe;

porque, cada homem em particular olhando a si mesmo como o único espectador que o observa, como o

único ser no universo que toma interesse por ele, como o único juiz do seu próprio mérito, não é possível

que um sentimento que teve origem em comparações que ele não é capaz de fazer possa germinar em sua

alma. Pela mesma razão, esse homem não poderia ter ódio nem desejo de vingança, paixões que só

podem nascer da opinião de alguma ofensa recebida. E, como é o desprezo ou a intenção de prejudicar, e

não o mal, que constitui a ofensa, homens que não sabem se apreciar nem se comparar podem fazer-se

muitas violências mútuas para tirar alguma vantagem, sem jamais se ofenderem reciprocamente. Em uma

palavra, cada homem, vendo seus semelhantes apenas como veria os animais de outra espécie, pode

arrebatar a presa ao mais fraco ou ceder a sua ao mais forte, sem encarar essas rapinagens senão como

acontecimentos naturais, sem o menor movimento de insolência ou de despeito, e sem outra paixão que a

dor ou a alegria de um bom ou mau sucesso.

(16). - É uma coisa extremamente notável que, após tantos anos que os europeus se atormentam para

conduzir os selvagens de diversas regiões do mundo à sua maneira de viver, não tenham podido ainda

ganhar um só item mesmo a favor do cristianismo; porque os missionários têm feito algumas vezes

Discurso sobre a origem da desigualdade

file:///C|/site/livros_gratis/origem_desigualdades.htm (62 of 64) [11/10/2001 19:05:32]

cristãos, mas jamais homens civilizados. Nada pode sobrepujar a invencível repugnância que têm eles em

tomar os nossos costumes e em viver à nossa maneira. Se esses pobres selvagens são tão desgraçados

como se pretende, por que inconcebível depravação de julgamento recusam constantemente policiar-se

como nós, ou aprender a viver felizes entre nós, quando se lê, em milhares de passagens, que os franceses

e outros europeus se refugiaram voluntariamente nessas nações e nelas passaram a vida inteira sem poder

mais deixar tão estranha maneira de viver, e quando se vêem até missionários sensatos ter saudades dos

dias calmos e inocentes que passaram entre povos tão desprezados. Se se responde que eles não têm

bastantes luzes para julgar de maneira sã o seu estado e o nosso, replicarei que a estima da felicidade é

menos negócio da razão que do sentimento. Aliás, essa resposta pede voltar-se contra nós com mais força

ainda; porque as nossas idéias estão mais longe da disposição de espírito necessária para conceber o

gosto que encontram os selvagens na sua maneira de viver do que as idéias dos selvagens das que lhes

podem fazer conceber a nossa. Com efeito, depois de algumas observações, é-lhes fácil ver que todos os

nossos trabalhos se dirigem para dois únicos objetivos, a saber: as comodidades da vida para si, e a

consideração para os outros. Mas, para nós, qual é o meio de imaginar a espécie de prazer que um

selvagem tem em passar a vida só no meio das florestas, ou pescando, ou soprando em uma péssima

flauta, sem jamais saber tirar dela um único som e sem se importar de aprendê-lo?

Muitas vezes, têm-se trazido selvagens a Paris, a Londres e a outras cidades, e tido pressa em lhes

expor o nosso luxo, as nossas riquezas e todas as nossas artes mais úteis e mais curiosas: tudo isso lhes

despertou uma admiração estúpida, sem o menor movimento de cobiça. Lembro-me, entre outras, da

história de um chefe de alguns americanos setentrionais levados à corte da Inglaterra, há uns trinta anos:

fizeram-lhe passar milhares de coisas diante dos olhos, para lhe fazerem presente do que lhe pudesse

agradar, sem que se achasse nada que parecesse impressioná-lo. Nossas armas lhe pareciam pesadas e

incômodas, nossos sapatos lhe feriam os pés, nossas roupas o incomodavam, e tudo ele recusava.

Finalmente, percebeu-se que, tendo tomado um cobertor de lã, parecia sentir prazer em envolver com ele

os ombros. - "Convence-se ao menos, - perguntaram-lhe, - da utilidade disso," - "Sim, - respondeu, - isso

me parece quase tão bom como uma pele de animal". Mas, nem isso diria se tivesse levado as duas coisas

à chuva.

- Dir-me-ão, talvez, que é o hábito que, ligando cada um à sua maneira de viver, impede os selvagens

de sentir o que há de bom na nossa: e, sendo assim, deve parecer ao menos bem extraordinário que o

hábito tenha mais força para manter os selvagens no gosto de sua miséria do que os europeus no gozo de

sua felicidade. Mas, para dar a essa última objeção uma resposta para a qual não haja uma palavra que

replicar, sem alegar todos os jovens selvagens que inutilmente se tem procurado civilizar e sem falar dos

groenlandeses e dos habitantes da Islândia, que se tentou educar e nutrir na Dinamarca, e que morreram

todos de tristeza e desespero, ou por causa do langor, ou no mar, porque tentaram fugir a nado,

contentar-me-ei de citar um só exemplo bem atestado, e que dou aos admiradores da polícia européia

para examinar.

"Todos os esforços dos missionários holandeses do Cabo da Boa Esperança jamais foram capazes de

converter um só hotentote. Van der Stel, governador do Cabo, tendo tomado um desde a infância, fê-lo

educar nos princípios da religião cristã, e na prática dos usos da Europa. Vestiram-no ricamente,

ensinaram-lhe diversas línguas, e seus progressos corresponderam muito bem aos cuidados tomados com

sua educação. O governador, esperando muito de seu espírito, enviou-o às Índias com um comissário

geral que o empregou utilmente nos negócios da companhia. Ele voltou ao Cabo depois da morte do

comissário. Poucos dias depois da sua volta, em uma visita que fez a uns hotentotes sem parentes, tomou

a decisão de se despojar dos seus ornamentos europeus para se vestir com uma pele de carneiro. Voltou

ao forte nesses novos trajes, carregando um pacote contendo as suas roupas; e, apresentando-as, ao

governador, lhe disse:

Discurso sobre a origem da desigualdade

file:///C|/site/livros_gratis/origem_desigualdades.htm (63 of 64) [11/10/2001 19:05:32]

Tende a bondade, senhor, de prestar atenção a que renuncio para sempre, a todo esse aparelhamento;

renuncio também, para toda a vida, à religião cristã; minha resolução é viver e morrer na religião,

maneiras e usos dos meus ancestrais. A graça único que vos peço é deixar-me o colar e o cutelo que

trago; eu os guardarei por amor a vós. Logo que acabou de falar, sem esperar a resposta de Van der Stel,

saiu em fuga, e jamais foi visto no Cabo." (História das Viagens, tomo V, pag. 175.)

(17). - Poderiam objetar-me que, em uma semelhante desordem, os homens, em vez de se degolarem

mútua e obstinadamente, se dispersariam, se não houvesse limites à sua dispersão; mas, primeiramente,

esses limites seriam pelo menos os do mundo; e, se se pensa na excessiva população que resulta do

estado de natureza, julgar-se-á que a terra, nesse estado, não tardaria a ser coberta de homens assim

forçados a se manter reunidos. Aliás, eles se dispersariam se o mal fosse rápido, e se a mudança fosse

feita da noite para o dia: mas, nasciam sob o jugo; tinham o hábito de o conduzir, quando lhe sentiam o

peso, e se contentavam em esperar a ocasião de o sacudir. Enfim, já acostumados a mil comodidades que

os forçavam a se manter reunidos, a dispersão não era assim tão fácil como nos primeiros tempos, em

que, ninguém tendo necessidade senão de si mesmo, cada qual tomava seu partido sem esperar o

consentimento do outro.

(18). - O marechal de Villars contava que, em uma de suas campanhas, as excessivas ladroeiras de um

comissário de víveres tendo feito sofrer e murmurar o exército, ele o repreendeu rudemente e o ameaçou

de mandar enforcá-lo. "Essa ameaça nada tem que ver comigo, - respondeu-lhe ousadamente o velhaco, e

me é muito fácil dizer-lhe que não se enforca um homem que dispõe de cem mil escudos." -- "Não sei

como foi, - acrescenta ingenuamente o marechal, - mas, com efeito, ele não foi enforcado, embora tivesse

merecido cem vezes o castigo."

(19). - A justiça distributiva se oporia mesmo a essa igualdade rigorosa do estado de natureza, quando

fosse praticável na sociedade civil; e, como todos os membros do Estado lhe devem serviços

proporcionais aos seus talentos e às suas forças, os cidadãos, por sua vez, devem ser distinguidos e

favorecidos à proporção dos seus serviços. É nesse sentido que é preciso compreender uma passagem de

Isócrates na qual louva ele os primeiros atenienses por terem sabido bem distinguir qual era a mais

vantajosa das duas espécies de igualdade, uma das quais consiste em conceder as mesmas vantagens a

todos os cidadãos indiferentemente, e a outra em distribuí-las segundo o mérito de cada um. Esses hábeis

políticos, acrescenta o orador, banindo essa injusta igualdade que não estabelece nenhuma diferença

entre os maus e os bons, apegaram-se inviolavelmente àquela que recompensa e pune cada um segundo o

seu mérito. Mas, primeiramente, jamais existiu sociedade, por maior que tenha sido o grau de corrupção

a que tivesse podido chegar, na qual não se fizesse nenhuma diferença entre os maus e os bons; e, em

matéria de costumes, em que a lei não pode fixar medida bastante exata para servir de regra ao

magistrado, é muito sabiamente que, para não deixar a sorte ou a posição dos cidadãos à sua discrição,

ela lhe não permite o julgamento das pessoas, para só lhe deixar o das ações. Não há costumes tão puros,

como os dos antigos romanos, que possam suportar censores; e semelhantes tribunais logo teriam

transtornado tudo entre nós. Cabe à estima pública estabelecer a diferença entre os maus e os bons. O

magistrado só é juiz do direito rigoroso: mas, o povo é o verdadeiro juiz dos costumes, juiz íntegro e

mesmo esclarecido sobre esse ponto, do qual se abusa algumas vezes, porém que jamais se consegue

corromper. As posições dos cidadãos devem, pois, ser reguladas, não segundo o seu mérito pessoal, o

que seria deixar ao magistrado o meio de fazer uma aplicação quase arbitrária da lei, mas segundo os

serviços reais que prestam ao Estado, e que são suscetíveis de uma estimação mais exata.

Discurso sobre a origem da desigualdade

file:///C|/site/livros_gratis/origem_desigualdades.htm (64 of 64) [11/10/2001 19:05:32]

O Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens pdf

Livros Grátis

( http://www.livrosgratis.com.br )

Milhares de Livros para Download:

Baixar livros de Administração

Baixar livros de Agronomia

Baixar livros de Arquitetura

Baixar livros de Artes

Baixar livros de Astronomia

Baixar livros de Biologia Geral

Baixar livros de Ciência da Computação

Baixar livros de Ciência da Informação

Baixar livros de Ciência Política

Baixar livros de Ciências da Saúde

Baixar livros de Comunicação

Baixar livros do Conselho Nacional de Educação - CNE

Baixar livros de Defesa civil

Baixar livros de Direito

Baixar livros de Direitos humanos

Baixar livros de Economia

Baixar livros de Economia Doméstica

Baixar livros de Educação

Baixar livros de Educação - Trânsito

Baixar livros de Educação Física

Baixar livros de Engenharia Aeroespacial

Baixar livros de Farmácia

Baixar livros de Filosofia

Baixar livros de Física

Baixar livros de Geociências

Baixar livros de Geografia

Baixar livros de História

Baixar livros de Línguas

O Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens pdf

Baixar livros de Literatura

Baixar livros de Literatura de Cordel

Baixar livros de Literatura Infantil

Baixar livros de Matemática

Baixar livros de Medicina

Baixar livros de Medicina Veterinária

Baixar livros de Meio Ambiente

Baixar livros de Meteorologia

Baixar Monografias e TCC

Baixar livros Multidisciplinar

Baixar livros de Música

Baixar livros de Psicologia

Baixar livros de Química

Baixar livros de Saúde Coletiva

Baixar livros de Serviço Social

Baixar livros de Sociologia

Baixar livros de Teologia

Baixar livros de Trabalho

Baixar livros de Turismo

Qual é a origem da desigualdade entre os homens?

Assim, segundo Rousseau, as desigualdades entre os homens têm como base a noção de propriedade privada e a necessidade de um superar o outro, numa busca constante de poder e riquezas, para subjugar os seus semelhantes.

O que afirmava Rousseau em seu Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens?

Segundo o autor, é preciso procurar um fundamento do direito natural primitivo, já que a oposição entre poderosos e fracos só superficialmente explica a evolução das sociedades. Existem dois tipos de desigualdades: a natural ou física e a desigualdade natural e política.

Qual a obra que o autor fala sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens?

Discurso sobre a Origem e os Fundamentos da Desigualdade entre os Homens. Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens (em françes: Discours sur l'origine et les fondements de l'inégalité parmi les hommes) é uma obra do filósofo Jean-Jacques Rousseau.

Quais são os tipos de desigualdades entre os homens segundo Rousseau?

Rousseau acreditava que existia dois tipos de desigualdade:A primeira, a desigualdade física ou natural, que é estabelecida pela força física, pela idade, saúde e até mesmo a qualidade do espírito e a segunda desigualdade era moral e política, que dependia de uma espécie de convenção e que era autorizada e consentida ...