Seria correto afirmar que a mutação constitucional somente pode ser efetuada pelo poder Judiciário?

Ou lado B

Normas constitucionais inconstitucionais"

19 de julho de 2009, 9h00

Em todos estes casos, o mais correto é dizer que não há como determinar a “bondade” ou a “maldade” de um determinado ativismo judicial. O mais correto é dizer que questões como essa que estamos analisando não devem ser deixadas para serem resolvidas pela “vontade de poder” (Wille zur Macht) do Poder Judiciário. Delegar tais questões ao Judiciário é correr um sério risco: o de fragilizar a produção democrática do direito, cerne da democracia. Ou vamos admitir que o direito — produzido democraticamente — possa vir a ser corrigido por argumentações teleológicas-fáticas-e/ou-morais?

Vejamos, resumidamente, como a questão está colocada nos termos da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 178. Tal medida foi interposta no dia 02 de julho de 2009 pela Procuradoria Geral da República, mediante representação do Grupo de Trabalho de Direitos Sexuais e Reprodutivos da Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão, objetivando o reconhecimento de união estável entre pessoas do mesmo sexo e a garantia dos mesmos direitos dos companheiros heterossexuais. De plano, salta aos olhos a seguinte questão: a efetivação de uma tal medida importa(ria) transformar o Tribunal em um órgão com poderes permanentes de alteração da Constituição, estando a afirmar uma espécie caduca de mutação constitucional (Verfassungswandlung) que funcionaria, na verdade, como um verdadeiro processo de alteração formal da Constituição (Verfassungsänderung), reservado ao espaço do Poder Constituinte derivado pela via do processo de emenda constitucional.

Portanto, voltamos ao problema fundamental da questão que passa ao largo das discussões jurídicas empreendidas nessa seara. Ou seja, que tipo de democracia queremos? Não se trata de ser contra ou a favor da proteção dos direitos pessoais e patrimoniais dos homossexuais. Aliás, se for para enveredar por esse tipo de discussão, advertimos desde já que somos absolutamente a favor da regulamentação de tais direitos, desde que efetuados pela via correta, que é a do processo legislativo previsto pela Constituição Federal.

O risco que exsurge desse tipo de ação é que uma intervenção desta monta do Poder Judiciário no seio da sociedade produz graves efeitos colaterais. Quer dizer: há problemas que simplesmente não podem ser resolvidos pela via de uma ideia errônea de ativismo judicial. O Judiciário não pode substituir o legislador.

Explicamos. Em um regime democrático, como bem afirma Ronald Dworkin, em seu A Virtude Soberana, é preciso fazer uma distinção entre preferências pessoais e questões de foro de princípio. O judiciário pode intervir, e deve, sempre que estiver em jogo uma questão de princípio. Mas não cabe a este poder exarar decisões que manifestem preferências pessoais de seus membros ou de uma parcela da sociedade. Isso por um motivo bastante simples: a democracia é algo muito importante para ficar à mercê do gosto pessoal dos representantes do Poder Judiciário. Se assim fosse, os próprios interesses dos homossexuais estariam em risco, posto que a regulamentação das relações entre pessoas do mesmo sexo dependeria da “opinião” e da “vontade” daquele que julga a causa.

Imaginemos: se a questão é analisada por um ministro favorável ao movimentos das minorias e da regulamentação de tais relações, sua decisão seria no sentido da procedência; por outro lado, um ministro conservador e alheio a essa “mutação dos costumes” julgaria improcedente o pedido. E é isso que, num caso como esse, não pode acontecer. A decisão a ser tomada em tais casos precisa ser levada à cabo no espaço político, e não no jurisdicional, justamente para evitar que sua resolução fique à mercê das opiniões pessoais dos ministros da Corte Constitucional. Ou seja, a decisão deve ser construída no contexto de uma sociedade dialogal, em que o Poder Judiciário tem sua função que não consiste em legislar. Em suma, uma questão como essa, justamente pela importância da qual está revestida, não pode ser resolvida por determinação de um Tribunal. É necessário que haja uma discussão mais ampla, que envolva todos os seguimentos da sociedade, cujo locus adequado encontra-se demarcado nos meios democráticos de decisão.


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Lenio Luiz Streck é procurador de Justiça do Rio Grande do Sul, professor de Direito Constitucional e presidente de honra do Instituto de Hermenêutica Jurídica.

Vicente de Paulo Barretto Livre Docente pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ); Professor Universitário

Rafael Tomaz de Oliveira Mestre e doutorando em Direito Público pela Unisinos, bolsista do CNPq e Professor Universitário.

Revista Consultor Jurídico, 19 de julho de 2009, 9h00

Seria correto afirmar que a mutação constitucional somente pode ser efetuada pelo poder Judiciário?

Seria correto afirmar que a mutação constitucional somente pode ser efetuada pelo poder Judiciário?

Você já ouviu falar em Mutação Constitucional? Sabe qual o impacto disso no nosso país? Imagina de que forma essa ferramenta, muito utilizada pelo Supremo Tribunal Federal, influência diretamente em questões cotidianas? Descubra no texto a seguir!

Conceito e importância da Mutação Constitucional

Antes de mais nada, é importante se questionar: se nossa Constituição Federal foi promulgada em 1988, como ela se mantém em harmonia em 2021? O que fazer para aplicá-la de forma atual sem que o texto constitucional sofra mudanças o tempo inteiro?

Sabemos que a única forma de alterar formalmente a nossa Constituição é através de uma PEC (Proposta de Emenda à Constituição), cujo conceito, tramitação e demais peculiaridades são explicadas com muita clareza aqui.

Basicamente, a PEC só pode ser apresentada por no mínimo 1/3 (um terço) dos deputados ou dos senadores, pelo Presidente da República ou por mais da metade das Assembleias Legislativas das Unidades Federativas. Vale lembrar que a proposta não pode afrontar as cláusulas pétreas. Após a apresentação, ela é analisada pela CCJ (Comissão de Constituição de Justiça e Cidadania) e por uma comissão temporária criada pela CCJ.

O objetivo das comissões é verificar se a proposta foi apresentada por alguém que pode (tem legitimidade para a iniciativa), e se o conteúdo da PEC não afronta a Constituição Federal — ou seja, se não fere as cláusulas pétreas.

Depois disso, a PEC é encaminhada para as duas casas do Congresso Nacional, onde precisa ser aprovada com quórum mínimo de 3/5 (três quintos) dos parlamentares tanto da Câmara dos Deputados quanto do Senado Federal, e a discussão precisa ocorrer em dois turnos. E então, apenas em caso de sobrevivência, a PEC será promulgada e publicada.

São muitas formalidades a serem obedecidas, não é? Por conta delas, o tempo entre a apresentação da proposta e a efetiva entrada em vigor da Emenda Constitucional costuma ser bastante longo. E é nesse ponto que a mutação constitucional manifesta sua importância.

A mutação constitucional é a possibilidade de alterar o sentido de uma norma sem precisar fazer uma mudança expressa no texto. Ou seja, a interpretação dada a um determinado artigo vai se adequar às transformações do tempo, sem que haja uma intervenção direta nele; seu teor permanece inalterado, mas o sentido é novo.

Mas por que é tão importante saber disso? 

Esse fenômeno é bem mais comum do que parece! O Supremo Tribunal Federal utiliza a mutação constitucional para proferir inúmeras decisões importantes, até mesmo porque, por ser uma alternativa informal, leva menos tempo para surtir efeitos práticos, diferente da PEC.

Inclusive, sabia que é bem provável que você já tenha visto algum caso notório em que houve mutação constitucional? 

Casos em que o STF fez uso da mutação constitucional 

UNIÃO HOMOAFETIVA

A Constituição Federal trata do reconhecimento da união estável como entidade familiar em seu artigo 226, § 3º, ao dispor que: “Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento”.

Em uma análise literal, parece que a única relação contemplada é a entre homem e mulher, mas não é esse o caso. O sentido desse artigo foi modificado há anos. O STF, em 2011, deu interpretação conforme a Constituição para reconhecer a união estável também entre casais do mesmo sexo.

Perceba que não houve nenhuma alteração na norma constitucional. Ela ainda aparenta contemplar apenas a relação entre o homem e a mulher. Contudo, em termos práticos, por força da decisão da Suprema Corte, a união estável dentro de relacionamentos homoafetivos é igualmente reconhecida há mais de uma década.

AMPLITUDE DO CONCEITO CASA

De igual modo, também houve alteração no artigo 5º, inciso XI da Constituição Federal, que prevê que: “a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial”.

A mudança promovida foi na interpretação do conceito de casa. Isso porque, numa análise prévia, a casa mencionada neste artigo parece tratar apenas da residência em que o indivíduo vive, certo?

Não é o caso, no entanto. O STF entende há anos que, para fins de proteção jurídica, o conceito de “casa” é muito mais abrangente do que parece, abarcando qualquer aposento de habitação coletiva que esteja ocupado.

Inclusive, se você estiver hospedado em um hotel, esse local está incluso na proteção do artigo mencionado acima e também será considerado inviolável, com todas as proteções inerentes.

E possui limites?

Do ponto de vista jurídico, a mutação constitucional não possui nenhuma limitação.

Entretanto, é importante destacar que, como ocorre em toda alteração que envolve a Constituição Federal, as cláusulas pétreas precisam ser observadas  — caso você não saiba o que são cláusulas pétreas, elas são explicadas neste texto.

Além disso, seguindo a lógica de que a mutação constitucional precisa se orientar de modo que a interpretação dada seja conforme a Constituição, o propósito se perde caso não sejam observadas as normas básicas previstas nela, não é? 

Conclusão

Concluímos, portanto, que dentro de um Estado Democrático de Direito, a Constituição Federal representa o documento de maior força do exercício da democracia. E especialmente por conta disso ela precisa estar em harmonia com a realidade social, o que demonstra que a mutação constitucional não é só uma alternativa, mas uma necessidade em um mundo que está em constante mudança.

REFERÊNCIAS

MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de direito constitucional.

MOTTA, Sylvio. Direito Constitucional.

BARROSO, Luís Roberto. Curso de direito constitucional contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo.

NEJAIM, Eduardo Fontes. Três grandes casos de mutação constitucional reconhecidos no STF.

DURÃO, Rodrigo Silva. Mutação constitucional: conceito, histórico e evolução.

CLÈVE, Clèmerson Merlin; LORENZETTO, Bruno Meneses. Mutação constitucional e segurança jurídica: entre mudança e permanência

MILÍCIO, Gláucia. Qualquer que seja o tipo de moradia, ela é inviolável.


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Quem pode fazer a mutação constitucional?

Conceito e importância da Mutação Constitucional Basicamente, a PEC só pode ser apresentada por no mínimo 1/3 (um terço) dos deputados ou dos senadores, pelo Presidente da República ou por mais da metade das Assembleias Legislativas das Unidades Federativas.

Quanto a mutação constitucional é correto afirmar?

A respeito da "mutação constitucional", é correto afirmar que: é a alteração da Constituição por meio de emendas. é o mesmo que revisão constitucional. são as alterações informais feitas na substância da Constituição, especialmente por meio da interpretação judicial.

O que é processo de mutação constitucional?

As mutações constitucionais são decorrentes das modificações do sentido, significado e alcance de algum dispositivo do texto da Constituição, modificações essas que acontecem sem os processos de emenda ou revisão.

Quais são as formas de mutação constitucional admitidas no Brasil?

Doutrinariamente, a Constituição poderá ser modificada por meio de processo formal ou informal. São tipos de modificação formal a emenda e a revisão constitucional. Já o processo informal evidencia-se na mutação constitucional.