Qual foi o primeiro fundo de financiamento da educação pública brasileira?

Qual foi o primeiro fundo de financiamento da educação pública brasileira?

No final de 2020, o Fundeb, nome popular do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação, foi o centro das discussões no Congresso Nacional. O fundo é um importante componente do mecanismo de financiamento da educação pública no Brasil. Para explicar melhor como funciona esse financiamento, o USP Analisa exibe a partir desta semana uma entrevista em duas partes com a consultora da Confederação Nacional de Municípios, ex-secretária da educação do Rio Grande do Sul e consultora legislativa aposentada da Câmara dos Deputados Mariza Abreu.

Ela explica que a Constituição de 1988 determina que uma porcentagem da receita resultante de impostos seja direcionada à manutenção e desenvolvimento do ensino: especificamente 18%, no caso da União, e 25%, no caso de Estados e municípios. Mariza lembra, porém, que há tributos que não são considerados impostos, como a taxa de iluminação pública e a taxa de lixo.

“O Fundeb é uma redistribuição no âmbito de cada Estado de parte desses recursos vinculados. Além dos recursos vinculados e do Fundeb, existe o salário-educação, uma contribuição social paga pelas empresas sobre a folha de pagamento que é arrecadada pelo governo federal. Quarenta por cento do valor fica com ele, 60% volta para cada Estado onde foi arrecadado e é automaticamente redistribuído pela matrícula entre o governo do estado e os municípios”, diz.

O financiamento da educação é composto ainda pelas transferências legais e voluntárias da União, que são feitas com o objetivo de garantir um padrão mínimo de qualidade nas escolas e reduzir a desigualdade. Como exemplo de transferência legal, Mariza cita o Programa Nacional de Alimentação Escolar, que repassa uma contribuição para a oferta da merenda. Já no caso das transferências voluntárias, ela menciona convênios feitos com a União para reformas no prédio da escola.

“Também existem outras fontes. Existe uma parcela dos royalties [do petróleo], que deve ser investido na educação e na saúde. E os entes federados podem buscar outras fontes, por exemplo, parcerias público-privadas, empréstimos internacionais. Só para a gente ter uma ideia, recentemente o Ministério da Educação divulgou que os recursos do Fundeb correspondem a 63% do conjunto dos recursos destinados ao financiamento da educação básica pública, o salário-educação corresponde a 5%, as transferências da União, voluntárias e legais obrigatórias, a 3%, e os recursos que os Estados e municípios têm que investir, a 29%”, afirma a consultora.

Mariza foi uma das palestrantes no no curso Políticas Públicas e a Qualidade da Educação, que é organizado pela Cátedra Sérgio Henrique Ferreira, e deu mais detalhes sobre o financiamento da educação básica pública no País. O vídeo está disponível no canal do IEA-RP no YouTube.

A entrevista vai ao ar nesta quarta (29), a partir das 18h05, com reapresentação no domingo (3), às 11h30. O programa também pode ser ouvido pelas plataformas de áudio iTunes e Spotify. 

O USP Analisa é uma produção conjunta do Instituto de Estudos Avançados Polo Ribeirão Preto (IEA-RP) da USP e da Rádio USP Ribeirão Preto. Para saber mais novidades sobre o programa e outras atividades do IEA-RP, inscreva-se em nosso canal no Telegram.

1. Antecedentes históricos

Após o descobrimento do Brasil em 1500 e um período de “financiamento zero” para a educação de sua população (Monlevade, 2001: 19), O financiamento da educação esteve num primeiro momento, dependente da coroa portuguesa, mesmo com a chegada dos jesuítas, em 1549, cujo papel refletia a simbiose, na colonização do Brasil, entre educação e catequese (Saviani, 2004). Confiantes em seu papel fundamental no projeto colonizador os jesuítas contavam, além das doações de particulares, com o apoio direto do erário real. Aproveitando-se da proximidade com o rei e com habilidade política, ensinaram a primeira lição para o financiamento da educação: a não-dependência de uma fonte única de recursos. Como assinala Mattos:

“Em vez de doação vinculada aos dízimos de uma única fonte fiscal e consequentemente sujeita a oscilações naturais do mercado e aos azares imprevisíveis de sua arrecadação, adotou-se a fórmula do” padrão da redízima “sobre todas as utilidades taxáveis da crescente colônia. Por esta fórmula, dez por cento de toda a arrecadação dos dízimos reais em todas as capitanias da colônia e seus povoados ficariam, in perpetuum, vinculados à manutenção e sustento dos colégios da Companhia de Jesus” (Mattos, 1958: 134).

Em polêmica que o opôs ao franciscano Pe. Luis da Grã, o Padre Manoel da Nóbrega defendeu a necessidade de constituir patrimônio para fortalecer a ação da Companhia na catequese (Assunção, 2004; Mattos, 1958).

Em 1568 houve uma decisão importante da Congregação Provincial: reconheceu que era vital para os colégios possuírem fazendas e terras para continuar a obra missionária (Assunção, 2004). Consolidou-se a empresa jesuítica.

Desta forma, os jesuítas na América não foram apenas missionários - foram também colonizadores, com interesses econômicos que se antagonizaram com o Projeto do Marquês de Pombal, ministro de D. José I. Este confronto teria por desfecho sua expulsão do Brasil, em 1759.

Após mais um período sem garantia de financiamento em que foram criadas as ‘aulas régias’, foi instituído, em 1768, o subsídio literário, imposto de um real em cada arrátel (0,429 KG) de carne que se cortasse nos açougues[1]; e de dez réis em cada canada (2.622 litros) de aguardente. Era o oposto da estratégia dos jesuítas. Olvidou-se a lição de Nóbrega, que insistira na redízima, incidente sobre um conjunto de rendas. Do ponto de vista da arrecadação o subsídio literário padecia de mal que aflige, em qualquer tempo, seja no período colonial ou no século XXI, qualquer forma de financiar a educação baseada em uma única fonte: a) risco de oscilação econômica que afete a atividade sobre a qual incide o imposto; b) necessidade de fiscalização específica, agravada no quadro colonial; c) possível desinteresse dos órgãos arrecadadores; d) sonegação.

Em 1835, o subsídio literário passou a ser receita cuja competência arrecadatória era das províncias (Godoy, 2002). Com a edição, em 1834, do Ato Adicional à Constituição do Império (Lei N°16, 1834), as províncias passaram a ser responsáveis pela Educação. Essa situação não se alterou com o advento da República, em 1889. Para a nascentes Repúblicas da América Latina, que se tornavam independentes, a educação constituía um projeto republicano: educar os cidadãos e formar republicanos.

No Brasil a independência veio sob a liderança do herdeiro do trono português, D. Pedro I. E, mais grave, permanecia o regime escravocrata no Império e a Proclamação da República não trouxe projeto de educação popular para incluir a população afrodescendente por meio da educação. Enquanto no século XIX importantes personalidades apoiaram o promoveram investimento na educação (Sarmiento na Argentina, Andrés Bello na Venezuela e Varela, no Uruguai), o Brasil somente teve uma fração da elite organizada comprometida com a educação, a partir dos anos 20 e 30 do século XX.

1.2 A vinculação de recursos à manutenção e desenvolvimento do ensino

O subfinanciamento da educação no Brasil perdurou por mais um século, até que os educadores vinculados à escola nova reivindicassem mais incisivamente que houvesse uma fonte mais sólida de financiamento da educação e que a União exercesse papel, em socorro aos Estados. Nascia a proposta de vinculação da receita de impostos à educação: o Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova propõe a criação de um fundo “constituído de patrimônios, impostos e rendas próprias, administrado e aplicado exclusivamente no desenvolvimento da obra educacional”. (1932: 51).

A Constituição de 1934, incorporou em seu texto a vinculação de recursos e a criação de fundos (arts. 156 e 157), com a previsão de que a União e os Municípios aplicariam nunca menos de dez por cento, e os Estados e o Distrito Federal nunca menos de vinte por cento, da renda resultante dos impostos, na manutenção e no desenvolvimento dos sistemas educativos. Era uma vitória dos pioneiros, mas uma vitória parcial. Na proposta da Associação Brasileira de Educação (ABE), entidade que congregava os pioneiros da educação nova, os fundos se organizariam por meio das vinculações – o que não foi a formulação da Carta de 1934, em que apareciam dissociados.

É importante assinalar que a vinculação de recursos de impostos essa constante das constituições democráticas brasileiras (no dizer até de um jurista liberal-conservador como Miguel Reale) foi gestada pelo pioneiros da educação, que não só tinham sólida formação intelectual nas áreas da pedagogia, direito e ciências sócias, como foram, também, gestores e reformadores em vários estados nos anos 20, e nessa condição se convenceram de que é preciso ter uma fonte de financiamento adequada. É comum no debate brasileiro recente que os detratores da vinculação se utilizam do argumento falacioso de que essa seria uma proposta de educadores, poetas que nada entendem de gestão. Ao contrário – foi o resultado da experiência da melhor geração de gestores da educação brasileira.

A adoção de fundos como forma de organização dos recursos vinculados somente seria retomada com os fundos contábeis - o antigo Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério (Fundef) e, posteriormente, o atual Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb).

De qualquer forma, nascia o principal pilar do financiamento educativo no Brasil – a vinculação do conjunto dos impostos (e não apenas de um imposto específico) à manutenção e desenvolvimento do ensino (MDE). Essa regra seria uma constante de todas as Constituições democráticas do Brasil.

A Constituição de 1988 prevê que (art. 212) a União aplicará, anualmente nunca menos de 18% e os Estados, o DF e os Municípios, 25%, no mínimo, da receita resultante de impostos, compreendida a proveniente de transferências, na manutenção e desenvolvimento do ensino (MDE). Em 2017, somente na esfera da União, esse valor correspondeu a R$ 63.198 bilhões de reais.

1.3 Do Fundef ao Fundeb – subvinculação dos recursos de MDE

Em 1996, com a aprovação da emenda constitucional nº 14 foi criado o Fundamental e de Valorização do Magistério (Fundef).

O Fundef, constituiu um mecanismo de redistribuição dos recursos vinculados à manutenção e desenvolvimento do ensino fundamental, no âmbito de cada estado, isto é, a redistribuição era entre cada estado e seus municípios em havendo insuficiência de recursos no âmbito de algum estado, a União procederia a complementação de forma a que todos alcançassem um valor mínimo por aluno/ano. Houve uma mini-reforma tributária e um impulso à municipalização – em alguns estados, como São Paulo – já que o critério de distribuição era pelas matrículas e, num primeiro momento essa era vista como uma forma de atrair recursos. Em regra, houve o aumento do grau de oferta do ensino fundamental pelos Municípios, até que se atingisse um patamar de acomodação entre as duas esferas subnacionais.

Em 2006 foi aprovada a Emenda Constitucional nº 53, que substituiu o Fundef pelo Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb) substituiu o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério (Fundef) com a intenção de estender a abrangência do fundo para todas as etapas e modalidades de educação básica.

Além disso, a experiência do Fundef e o aprendizado que este possibilitou trouxeram a reflexão acerca de quais elementos deste mecanismo deveriam ser preservados ou evitados no novo fundo. Assim, o Fundeb conservou as seguintes características que já integravam os Fundef: a) natureza contábil do fundo; b) contas únicas e específicas com automaticidade de repasses; c) âmbito de cada estado, sem comunicação de recursos para além das fronteiras estaduais; d) aplicação de diferentes ponderações[2] para etapas, modalidades e tipos de estabelecimento; e) controle social e acompanhamento exercido por conselhos nas três esferas federativas; f) destinação a ações de manutenção e desenvolvimento do ensino (MDE) da educação básica (observadas as regras do art. 70 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional – LDB, que previa quais as despesas admissíveis para essa fonte); g) complementação da União, efetuada sempre que no âmbito de cada Estado ou DF o valor por aluno não alcançar o mínimo definido nacionalmente - no caso do Fundeb, 10% do total do que estados e municípios aportam ao fundo (no Fundef o valor deveria ser correspondente à média nacional, mas foi arbitrado, em patamares baixos, pelo poder executivo de todos os governos federais do período – o que gerou recentemente um complexo problema judicial).

Entre os aspectos que representaram aperfeiçoamento, em relação ao Fundef pode-se mencionar: a) todas as etapas da educação básica passaram a contar com um mecanismo de financiamento[3]; b) a regra da complementação da União, antes definida em legislação ordinária, e nunca respeitada pelos governos do período foi constitucionalizada (no mínimo 10% dos recursos dos fundos); c) vedação da utilização da fonte do salário-educação para a complementação da União, para evitar simples substituição de rublicas com recursos já existentes; d) criou-se uma instância de formulação, debate e negociação federativa, a Comissão Intergovernamental de Financiamento para a Educação Básica de Qualidade, que incluiu a dimensão regional; e) aperfeiçoamento do desenho institucional dos conselhos de acompanhamento e controle social, com a criação de impedimentos para que parentes de autoridades integrassem os conselhos, reforço da autonomia, vedação do exercício da presidência por representante do órgão controlado; f) previsão da fixação em lei de piso salarial profissional nacional para o magistério y g) o cômputo das matrículas, para recebimento dos recursos do fundo, tem como critério obrigatório o atendimento ao âmbito de atuação prioritária, isto é à função própria (educação infantil e ensino fundamental, para os municípios e ensino médio e ensino fundamental, para os estados).

O Fundeb não representa recursos adicionais `a MDE, está “dentro da MDE”, é uma subvinculação que organiza os recursos vinculados. O Valor mínimo por aluno/ano no Fundeb, em 2018 foi fixado em. R$ 3.016,67. Aplicadas as ponderações o menor valor mínimo é de R$ 2.413,34, para a educação de jovens e adultos (EJA) e o maior é de R$ 3.921,67, para a creche em período integral.

Em 2018, o valor do Fundeb representa R$ 148,3 bilhões, sendo R$ 136 bilhões aportados por estados e municípios e R$ 12,2 bilhões pelo governo federal pela via da complementação da União. Atualmente, a complementação da União alcança 9 estados: 1) REGIÃO NORTE - Amazonas (AM) e Pará (PA); 2) REGIÃO NORDESTE - Alagoas (AL), Bahia (BA), Ceará (CE), Maranhão (MA), Paraíba (PB), Pernambuco (PE) e Piauí (PI).

1.4 O Salário-educação

Em 1964, já no regime militar, foi criado o Salário-Educação. Ao lado dos recursos de MDE, que são oriundos de impostos, é a outra fonte importante, proveniente de outra espécie de tributos – trata-se de contribuição social recolhida pelas empresas: 2,5% da folha de pagamento.

Do montante dos recursos do salário-educação, dez por cento são previamente recolhidos pela União e contribuem para financiar os programas federais de auxílio à educação básica de estados e municípios. Os outros noventa por cento são divididos em uma cota federal, equivalente a um terço e uma cota estadual e municipal, correspondente a dois terços e distribuída segundo as matrículas de estados e municípios na educação básica. Este foi o resultado de uma longa trajetória de aprimoramento do instrumento. Não havia cota municipal. A cota estadual, via de regra, era retida pelos estados e repassada aos municípios sem critérios claros. Em 2003, foi criada a cota estadual e municipal (Lei N°10.832/03).

O salário-educação era dirigido apenas ao ensino fundamental, passando a contemplar toda a educação básica a partir da Emenda Constitucional nº 53, a mesma que criou o Fundeb.

1.5 O custo aluno qualidade (CAQ), o Plano Nacional de Educação (PNE) e o financiamento da educação

Ao final dos anos 1980, Ediruald de Mello, de forma pioneira, já apresentara uma proposta para o cálculo do custo do padrão de qualidade – uma medida de “necessidade educacional” que denominava custo/aluno/qualidade. Multiplicada pela matrícula resultaria no montante de recursos necessários ao financiamento do ensino (Mello, 1989). Na mesma linha, chamou atenção para a necessidade de prover a qualidade e a quantidade dos insumos existentes na escola pública (Mello e Costa, 1993).

A EC 14/1996, a mesma que criou o antigo Fundef, inseriu em seu texto o objetivo da busca de padrão mínimo de qualidade (art. 60, § 4º). União, estados, Distrito Federal e municípios deveriam ajustar “progressivamente, em um prazo de cinco anos, suas contribuições ao Fundo, de forma a garantir um valor por aluno correspondente a um padrão mínimo de qualidade de ensino, definido nacionalmente”. No mesmo ano era aprovada Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), que definiu (art. 4º, IX) que o dever do Estado com educação escolar pública deveria ser efetivado mediante a garantia de, entre outros itens, “padrões mínimos de qualidade de ensino, definidos como a variedade e quantidade mínimas, por aluno, de insumos indispensáveis ao desenvolvimento do processo de ensino--aprendizagem”.

A proposta do custo aluno qualidade, ancorada na disponibilização de insumos ganhou concretude com o desenvolvimento do conceito operacional de Custo Aluno-Qualidade (CAQ), gestado em 2002, a partir de um movimento de mobilização social iniciado pela Campanha Nacional pelo Direito à Educação (CNDE), com a realização de oficinas, seminários e encontros que reuniram organizações, grupos, movimentos e pesquisadores (Carreira e Pinto, 2007).

Essa foi a base da discussão e defesa dos 10% do PIB, proposta que integrou o Plano Nacional de Educação (PNE), com o objetivo de viabilizar a adoção do CAQ, também consagrado na meta 20 do Plano.

O patamar pode parecer elevado – e o é, porém não excessivo ou sem base – como se pode verificar nos anis da Câmara dos Deputados referentes ao debate do PNE e, mais recentemente, da PEC nº 15/2015. Isto porque, não se pode analisar o investimento no PIB sem considerar – o tamanho do PIB, a população atendida e a ainda não incluída, além dos insumos mínimos para garantir alguma qualidade.

Verifica-se que apesar desse gasto em relação ao PIB que parece levado, quando se considera o investimento por aluno – dados que podem ser conferidos, por exemplo numa publicação Education at a Glance, o gasto por aluno, por exemplo na educação primária é muito baixo (3.799) , menos que a metade da média da OCDE (8.733 dólares americanos ppp).

2. Dificuldades Recorrentes

A vinculação de recursos à educação é, talvez, um dos mais significativos marcadores institucionais do grau de democratização da sociedade brasileira: em todos os momentos de fechamento político o princípio esteve sob ataque e foi retirado da Constituição. Assim, com os golpes do Estado Novo e do regime militar, as respectivas Cartas (1937 e 1967) derrubaram a vinculação. Já na Constituição de 1946, que promoveu a redemocratização após o período Vargas e ao fim do regime de exceção instituído em 1964, a emenda Calmon[4], que traria de volta a vinculação foi aprovada.

Também esteve sempre sob algum tipo de ataque. No processo de revisão constitucional (1994) foram apresentadas cinco emendas que visavam suprimir o art.212. O dispositivo foi preservado, mas não em toda a plenitude, uma vez que se inaugurava a era das desvinculações, com a aprovação da emenda de Revisão nº 1, que criou o Fundo Social de Emergência-FSE, que previa a dedução prévia de 20% do produto da arrecadação da base de cálculo da MDE (Martins, 2008). Ao FSE sucederam-se o Fundo de Estabilização Fiscal-FEF e a Desvinculação das Receitas da União-DRU, que deixou de incidir sobre a educação em 2011.

A construção de políticas públicas e aprovação de leis e alterações constitucionais recebem diferentes impactos conforme os atores que protagonizam a agenda e o processo. Assim, se de um lado leis oriundas do núcleo duro de agentes econômicos relativizaram e enfraqueceram a agenda educacional, especialmente a vinculação - as reformas constitucionais especificamente referentes à educação (Emendas Constitucionais nº 14/96, 53/06 e 59/09) fortaleceram os instrumentos legais e institucionais de garantia de financiamento. Assim, a EC 14, ao mesmo tempo em que criou o Fundef, o primeiro fundo contábil associado à vinculação, na medida em que organizava os recursos vinculados – retomando a ideia original dos pioneiros da escola nova – promoveu, também, uma mudança qualitativa: a vinculação foi reconhecida não apenas como uma exceção a um princípio do direito financeiro – o princípio da não afetação, como originalmente prevista na Carta de 1988, mas passou a ser considerada um princípio constitucional, trazido do direito educacional, nos seguintes termos:

Art. 34. A União não intervirá nos Estados nem no Distrito Federal, exceto para:

[...]

VII - assegurar a observância dos seguintes princípios constitucionais:

[...]

e) aplicação do mínimo exigido da receita resultante de impostos estaduais, compreendida a proveniente de transferências, na manutenção e desenvolvimento do ensino e nas ações e serviços públicos de saúde.

Um princípio constitucional cuja violação pode levar à intervenção federal nos estados e DF.

Como já observamos

“Há, ainda, uma maneira mais sutil de romper o princípio da vinculação, sem tocar na base de cálculo, e que ocorre frequentemente nas esferas subnacionais. Trata-se do que denominamos “desvinculação branca”, que consiste em inflar o conceito de MDE para assumir novas categorias de gasto” (Martins, 2008: 460)[5].

Mas o maior ataque à vinculação veio com a aprovação da Emenda Constitucional nº 95, que, ao congelar as despesas primárias na esfera federal por vinte anos, suspende a regra e viola o princípio constitucional da vinculação[6].

Em relação ao salário-educação, por recair sobre a folha, é frequentemente proposta sua extinção nos debates acerca da reforma tributária. Há resistência de empresas em relação a esse tributo. Houve arguição de sua inconstitucionalidade na justiça para o período entre a Constituição de 1988 e a Lei N°9.424/96. Com o julgamento da Ação Direta de Constitucionalidade- ADC nº 3, em 1999, o Supremo Tribunal Federal (STF) consolidou o entendimento acerca da constitucionalidade do salário-educação.

Já nos debates da constituinte em 1987/88 alguns pesquisadores propunham que a base de cálculo fosse não a folha de assalariados, mas a receita bruta das empresas (Velloso, 1989), solução também rejeitada no meio empresarial.

E sempre que se discutem propostas de refirma tributária, com o processo legislativo protagonizado por atores da área econômica e empresarial, é proposta a extinção do salário-educação.

Em 2017, os recursos do salário-educação corresponderam a R$ 12.5 bilhões de reais. Com a queda da atividade econômica e em virtude dos efeitos da recente reforma trabalhista brasileira, há preocupação com o declínio dessa importante fonte de recursos para a educação.

3. Perspectivas

A Constituição brasileira de 1988, que selou o pacto da transição democrática foi a matriz dos avanços na educação nesse período. No caso da Educação, tanto no que se refere à explicitação do direito à educação, como os méis opera assegurá-lo, entre eles o financiamento. As emendas constitucionais gestadas no debate educacional – ECFs 14, 53 e 59 seguiram esse espírito. De outro lado as emendas constitucionais referentes a situação fiscal geraram desvinculações – o que havia sido superado em 2011.

Infelizmente, o Brasil vive situação em que foi abalado aquele pacto de 1988 – a Constituição tem sido desfigurada em sua letra e espírito, seja por novas emendas como a EC 95, seja por interpretações que ignoram princípios ou distorcem a letra da lei.

Com a Emenda 95, uma primeira possibilidade, ainda sem que esta tenha sido revogada, é aproveitar a janela que existe – a complementação da União ao Fundeb – que está fora do teto da EC 95, e se majorada pode contribuir para um melhor equilíbrio federativo, com a União assumindo seu papel e para a aproximação do objetivo de atingir o custo aluno qualidade. Mas isso não assegura nada, se o orçamento não utilizar essa claraboia.

Daí a importância da discussão da proposta de emenda constitucional (PEC) nº 15/2015, que tramita na Câmara dos Deputados e de sua similar - EC 24/2017 que tramita no Senado Federal. Ambas tornam o Fundeb um instrumento permanente[7] – atualmente seu prazo de validade se esgota em 2020, o que traria o caos para o financiamento da educação, sobretudo para os municípios.

As PECs propugnam por uma maior atuação da União, que atualmente se limita a 10% do valor dos recursos aportados aos fundos por estados e municípios[8] para contribuir com sua complementação. É o grande debate da próxima legislatura atual.

Assim, uma possível agenda para os próximos anos seria primeiro, retomar os compromissos da Constituição de 1988, segundo, retomar a vinculação de recursos à educação – MDE plenamente e rejeitar as propostas de desvinculação expressa ou “branca” (aumento artificial dos gastos permitidos ou mistura comi os gastos em saúde), terceiro observar e aprimorar o salário-educação y quarto implementar o Fundeb permanente com participação significativa da União na complementação ao Fundeb, ao menos nos termos propostos pela relatora da PEC 15/2015.

Referências

A Reconstrução Educacional no Brasil – ao povo e ao governo. Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova. Companhia Editora Nacional. 1932.

Assunção, P. (2004), Negócios Jesuíticos – o cotidiano da administração dos bens divinos, Edusp, São Paulo.

Brasil Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm (acesso em 14 de março. de 2020).

Carreira, D. e Pinto, J. M. R. (2007), Custo aluno-qualidade inicial: rumo à educação pública de qualidade no Brasil, São Paulo, Editora Global.

Davies, N. (2014), “Levantamento Bibliográfico sobre financiamento da educação no Brasil de 1988 a 2014”, em Educação em Revista, 15(1), pp. 91-162.

Godoy, J. E. P. (2002), Dicionário de história tributária do Brasil, Brasília, ESAF.

Martins, P. S. (2008), “O financiamento da educação e a Constituição de 1988: a vinculação de recursos à manutenção e ao desenvolvimento do ensino”, em Araújo et al. (Orgs.) Ensaios sobre impactos da Constituição de 1988 na sociedade brasileira, vol. 1, Brasília, DF, Câmara dos Deputados/Consultoria Legislativa, pp. 449-461.

Mattos, L. A. (1958) Primórdios da educação no Brasil – o período heroico (1549 a 1570), Rio de Janeiro, Gráfica Editora Aurora Ltda.

Mello, E. (1989), “Implicações do financiamento da educação na gestão democrática do ensino público de primeiro grau”, em Em Aberto, Brasília, núm. 42.

Mello, E. e Costa, M. (1993), “Padrões Mínimos de Oportunidades Educacionais: Uma Proposta”, em R. bras. list. pedag., Brasília, 7-1(l), pp. 1-24.

Monlevade, J. (2001), Educação pública no Brasil: Contos & De$contos, 2ª edição, Idéa Editora.

OCDE. Education at a Glance 2017 -OECD INDICATORS. Disponível em https://www.oecd-ilibrary.org/education/education-at-a-glance-2017_eag-2017-en (acesso em 14 de março de 2020).

Reale, M. (1984), “Educação e Cultura na Constituição Brasileira”, em Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, núm. 151, Brasília, INEP.

Saviani, D. (2004), “Educação e Colonização: as ideias pedagógicas no Brasil”, em Stephanou, M. e Bastos, M. H. C. (Orgs.) Histórias e Memórias da Educação no Brasil, vol. I, Séculos XVI – XVIII, Rio de Janeiro, Vozes.

Sena Martins, P. (2008), “A legislação do FUNDEB”, em Cadernos de Pesquisa, São Paulo, 38(134), pp. 319-340.

Sena Martins, P. (2011), FUNDEB, federalismo e regime de colaboração, Campinas, Autores Associados.

Velloso, J. (1989), “O financiamento da educação na Transição Democrática”, em Mello, G. N. et al. (Org.), Educação e Transição Democrática, São Paulo, Cortez/Autores Associados.

Notas

[1] Monlevade constrói imagem contundente: “basta refletir que de um boi com duzentos quilos de carne se destinava um ‘arrátel”, ou seja, o valor de 450 gramas para as despesas da educação” (2001: 27).

[2] Ponderações são fatores matemáticos que incidem sobre o valor por aluno de referência do fundo (séries iniciais do ensino fundamental urbano – fator 1), de forma que as demais etapas e modalidades contêm ou não com acréscimo de recursos por aluno, segundo estejam acima ou abaixo do valor de referência. A competência para determinar as ponderações, dentro de uma banda que varia de 0,7 a 1,3, é da Comissão Intergovernamental de Financiamento para a Educação Básica de Qualidade, que conta com um representante de cada uma das cinco regiões político-administrativas brasileiras (Norte, Nordeste, Centro-Oeste, Sudeste e Sul) , tanto no nível estadual como na esfera municipal, indicados, respectivamente, por Conselho Nacional de Secretários de Educação (CONSED) e União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação (UNDIME), que são as associações dos secretários de educação de cada esfera.

[3] A inclusão das creches não estava prevista na proposição enviada pelo Poder Executivo e deu-se a partir de ampla mobilização da comunidade educacional, particularmente do denominado movimento ‘fraldas pintadas “e do compromisso assumido pelo Congresso Nacional).

[4] Emenda Constitucional nº 24/83, à Constituição de 1967.

[5] Uma nova forma de desvinculação branca – o que mostra a criatividade dos ataques ao financiamento à educação, é a mistura da vinculação da educação com a da saúde, obrigando os gestores a promover uma “escolha de Sofia”.

[6] A regra geral da EC 95 (art. 107, §1º, II ADCT) prevê que os limites equivalerão, para os exercícios posteriores a 2017, ao valor do limite referente ao exercício imediatamente anterior, corrigido pela inflação. Já em 2018, segundo calculou a consultoria de orçamento e fiscalização financeira da Câmara dos Deputados (Conof/CD), o piso constitucional MDE (18% receita líquida de impostos) equivaleria a R$ 51.157,4 milhões de reais, enquanto o piso compulsório da EC 95 equivale a R$ 49.640,3 milhões de reais.

[7] A PEC 15/2015 já teve uma série de audiências na Câmara dos Deputados, material acessível no site da câmara: www.camara.leg.br – atividade legislativa – comissões – comissões temporárias – especiais– Pec 15 de 2915 – FUNDEB permanente. A PEC nº 24/2017, que tramitou no Senado, na legislatura passada, foi arquivada.

[8] A proposta inicial da PEC 15 mantinha o mínimo de 10%, mas isso tinha um sentido estratégico, para evitar a imediata oposição feroz do ministério da fazenda, antes que se fizessem as audiências públicas – que levaram a um consenso entre atores de diferentes posições, no sentido de que a maior participação da União é uma necessidade. A relatora na Câmara propôs o mínimo 30%, a ser atingido gradualmente, partindo de 15% no primeiro ano. A PEC 24 indica 50%. Paulo Sena Martins es Consultor legislativo, Câmara dos Deputados, área de Educação, Cultura e Desporto. E-mail:

Quando foi criado o financiamento educacional no Brasil?

A história do financiamento da educação brasileira Com a Constituição Federal de 1934, teve início, no Brasil, a vinculação constitucional de recursos para a manutenção e o desenvolvimento do ensino.

Quais os principais fundos de financiamento da educação brasileira?

Os fundos – o Fundef, criado em 1996 para manutenção e desenvolvimento do ensino fundamental, e o Fundeb, substituindo o anterior a partir de 2007 e visando à educação básica como um todo – representam uma tentativa de racionalização do gasto educação.

Quais são os fundos de financiamento da educação?

Fundeb – Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação: é um conjunto de 27 fundos contábeis independentes dedicados ao financiamento da Educação Básica. Entrou em vigor em 2007, quando substituiu o Fundef (dedicado ao Ensino Fundamental).

Em que ano foi fundado o Fundeb?

Com vigência estabelecida para o período 2007-2020, sua implantação começou em 1º de janeiro de 2007, sendo plenamente concluída em 2009, quando o total de alunos matriculados na rede pública foi considerado na distribuição dos recursos e o percentual de contribuição dos estados, Distrito Federal e municípios para a ...