Largados e pelados sem tarja

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estou com medo de sair e tenho
outros motivos honestos, meu carro está descoberto, não estou bem, com muito sono e não
relaxo, estou com medo de acidente, autocinetismo esta estalando. Mas também por estar
cheio do tratamento e tudo mais, me sinto um lixo as vezes no tratamento. 
Depois as filas e protocolos de atendimento, a fila da medicação do alto custo, os papéis de
retorno; “Psicóticos e Egressos”, aquela gente doente, a falta de pontualidade, a troca
periódica de psiquiatra, o não vinculo com alguns. Nunca imaginei esse futuro, pensava que
tudo de bom era para sempre.
Cândido foi minha última internação, eu que odeio hospital psiquiátrico público, mas não
tenho uma crítica tão negativa quanto a ele, entre todos os públicos ele foi o melhor, não a
estadia ou acomodações, mas com o funcionamento e projetos. A chegada é terrível, por
precaução, os que tem vem chegar e escutam como você chegou do hospital Geral, temem
seu despertar, ai te amarram ao leito e você acorda assim, com outros loucos do seu lado
soltos. 
Se dá para tirar alguma conclusão de internações seria de que elas não funcionam, mas são 
como um resgate nos tempos de crise grave e uma tentativa quase sempre frustrada com os 
drogados a longo e médio prazo, e um abrigo para de lidar com doentes crônicos. 
Sobre minhas impressões dos hospitais psiquiátricos os pacientes crônicos parecem todos
mergulhados na própria loucura em estado inacessível, além da doença estão “quimicamente
contidos” sem muito espaço para relações de troca e amizade, de algo qualquer que pareça
vida excerto quando “tratadores” promovem pequenas festas em períodos comemorativos e
surge um espaço de interação social, mas que parece tão artificial embora alguns fiquem
eufóricos ao seu modo estranho, parecem com robôs emocionais respondendo ao estímulo
de formas estereotipadas.
Nos hospitais que estive os tratadores estão sempre cansados, são preguiçosos e violentos as
vezes eu mesmo vi agressões sádicas não podemos esquecer que o espaço em questão o
manicômio e sua clientela exige tato e paciência, a instituição física e suas práticas
orientadas pela psiquiatria se fundam na classificação e tratamento, mas não olham para si e
se negam ou omitem uma autocrítica.
Sabe o que é um aglomerado de loucos, um quarto para 20, sujeitos bizarros deteriorados
pela doença ficam largados pelos pátios pelados as vezes têm os dedos amarelos pelos
cigarros e queimados pelas bitucas, deitados no chão andando em círculos fazendo
movimentos sem sentido, você odeia o lugar e pensa como pode ir parar num lugar desses
depois de 20 anos estudando para atuar neles talvez, você odeia o mundo e a si mesmo nessa
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 TARJA PRETA
 MEMÓRIAS DE UM BORDERLINE
hora, você está preso onde poderia trabalhar, e lembra que foi tudo a partir de uma primeira
dose.
Mas reconhecemos que não é a toa que você está lá segregado, pois você se “comportou
mal” e ofereceu riscos a si próprio ou aos outros, um velho discurso para legitimar a
internação compulsória, usado as vezes por uma família cansada e encontrou um meio
eficiente para descansar sabendo que não vai acordar de madrugada para buscá-lo sei lá
onde, num hospital, delegacia, numa boca sem dinheiro e devendo, caído na rua ou
desmaiado num bar ou por último você está buscando um “tratamento”, entre aspas por que
não virá, logo será apenas a reclusão e as amarras químicas, mais honesto reconhecer o
limite.
No hospital tem sempre alguém surtando para lembrar quem somos e porque estamos ali, e
dar sentido aos cuidados todos da disciplina, as regras e as normas, uma explosão de ira ou
revolta, uma desobediência, uma tentativa de fuga, cuspir o remédio escondido sob a língua,
tentar suicídio, agredir um enfermeiro, coisas que vi muito pouco para que se justifique
alguns cuidados, mas que acontecem.
Só o Bairral foi exceção, as outras foram todos “instituições” para “alienados severos e
dependentes pesados” que precisam de reclusão e vigilância absoluta, tratamento
comportamental do século passado com química recente, locais sujos e feios, altos muros e
portas de grades, tetos altos e janelas acima da altura média, enfermeiros que parecem
seguranças.
Bom eu registrar que desde os 30 anos, depois de dez de uso sem parar excerto em
internações, eu vivo tentando não usar, já passei um ano sem nada, outras vezes muitos
meses e vem uma recaída que me coloca de novo no final da fila. Ou melhor de volta ao
início, o trabalho todo de meses é jogado fora, e acabo acordando em um hospital.
Que sociedade cara? Se não tem um membro da família com problemas psiquiátricos bem
próximos nem sabe que existem loucos, adictos, sabem apenas que existem hospitais para
doentes mentais, nesses termos mesmo, doentes mentais e drogados.
A lei e o movimento antimanicomial tem mais de 20 anos, foram fechados mais de 100 mil
leitos psiquiátricos, no local surgiram os Caps que podem ou não ter Psiquiatra. Contudo o
estado não fez crescer, na medida do fechamento de manicômios, a criação de Caps e Naps
suficientes para atender a demanda. Assim o estado lava a mão e deixa para as comunidades
terapêuticas o serviço.
O alívio da demanda por leitos nos Hospitais Psiquiátricos Públicos é também um resultado
da atuação das Comunidades Terapêuticas, creio que essa opinião encontraria respaldo numa
análise matemática do crescimento de alternativas aliviou Hospitais Psiquiátricos e se
implantou como ‘alternativa de primeira escolha’, com a internação nessas ‘residências
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 HENRI
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 MEMÓRIAS DE UM BORDERLINE
terapêuticas’, que se encarregam até do ‘resgate’.
Já estive internado em várias Comunidades Terapêuticas, algumas seguiam apenas NA, sem
medicação, apenas o estudo e grupos de NA, fazer os cuidados da casa, da cozinha, da
chácara e a limpeza toda, outras associam NA a religião, mas tem problemas, tem que
funcionar como um ‘negócio’, o objetivo é dinheiro, e um bom tratamento custa caro.
Hoje tem uma infinidade de Comunidades Terapêuticas exclusivas para dependentes
químicos, com programa em geral baseado no trabalho com a “espiritualidade” ligadas a
igrejas pentecostais ou neo pentecostal, contudo sem instalações confortáveis, digo isso pois
não é fácil se tratar em espaços de 30 ocupados por 90 dependentes, se o espaço é para
trinta, os cuidadores mal preparados. 
Outras estritamente com metodologia de tratamento, ou plano de tratamento, baseada em
sistemas ou religiões como sua ênfase, acordar as 7 horas, ficar meia hora cantando hinos
religiosos e fazendo orações, depois varrer o páteo, limpar os quartos, ao meio dia orar e
cantar de novo, um dia ou dois da semana alguém do comitê de serviços de NA vem fazer
uma ‘sala’ com uma reunião de NA. 
Ainda sem fiscalização e avaliação especializada do estado, as vezes nem mesmo sem um
profissional responsável. O estado não querer fechar o que tem bancado sua ausência,
cresceram na mesma proporção que o consumo e com advento do crack se tornaram um
braço ao menos ‘paliativo’.
Eu trabalhei em uma que era sinistra, não tinha um programa definido, nem profissionais
capacitados, não se trabalhava a doença, era somente cultos e cantos, leituras da bíblia,
comida e trabalho, e o pior, um ambiente de morte, mas isso faz muitos anos, eles mesmos
evoluíram, espero.
Mas tem relação com meu surto?
Sim, tem, ainda que mal elaborada