Como acontece o desenvolvimento inicial do rúmen?

No primeiro texto efetivo da série “Como o boi funciona”, veremos alguns aspectos interessantes do bovino desde seu nascimento até ele se transformar em um ruminante de fato. O texto publicado no dia 24 do mês passado (http://sites.beefpoint.com.br/sergioraposo/2013/09/24/introducao-como-o-boi-funciona/.) foi a introdução à série e contém um breve relato de todos os dez capítulos

Cerca de nove meses depois da bem sucedida fertilização do óvulo no meio da estação de monta, nasce um novo bezerro neste outubro. O processo de crescimento dentro do útero até o nascimento se dá principalmente por hiperplasia (aumento do número de células) e, após o nascimento, sobretudo pelo aumento do tamanho dessas células (hipertrofia). Apenas recentemente foi reconhecido com mais detalhes como a nutrição da vaca gestante poder afetar o desenvolvimento intrauterino com repercussão por toda a vida do animal, inclusive em  atributos de qualidade da carne.

Como a maior parte do desenvolvimento de células musculares e adiposas ocorre entre o segundo e oitavo mês da gestação, uma restrição alimentar nesta fase pode modificar a composição em termos de tipos de células. Ocorrem alterações em número e tamanho de células de gordura (adipócitos) e tipo de fibras musculares. Estas mudanças podem acarretar em variações no rendimento de porção comestível e, até, no marmoreio. Foi dado a esse fenômeno o nome de programação fetal.

É por isso que um contratempo nutricional nesta fase pode afetar o crescimento do animal também na fase pós-natal. No nosso exemplo do animal nascido em outubro seria entre julho e setembro. Assim, apesar de, em geral, a meta com a vacas seja apenas chegar à parição com bom escore de condição corporal, a sua nutrição deve ser cuidada durante todo o ciclo reprodutivo.

Importância do consumo de colostro:

Uma vez que o bezerro tenha nascido, a ingestão do colostro já nas primeiras horas de vida é crítica. Na verdade, é muito importante que o bezerro ingira o colostro antes de qualquer outra substância, como água e restos de placenta.

O colostro é o leite produzido logo após o parto e tem composição bastante diferenciada. Ele é mais rico em energia, vitaminas, minerais e fatores antimicrobianos que o leite normal, mas, o mais importante, é que ele tem grande quantidade de proteínas de defesa, as imunoglobulinas.

A rápida ingestão dessas imunoglobulinas é essencial, pois o bezerro ainda não desenvolveu seu sistema imune e depende destes anticorpos para defender-se dos patógenos do ambiente nos primeiros meses de vida. Por ser transferida da mãe ao bezerro, é chamada de imunidade passiva.

O bezerro deve consumir cerca de 10% do seu peso em colostro (algo em torno de 3-4 kg) nas primeiras 24 horas de vida. A capacidade absortiva do intestino delgado do bezerro é alterada de maneira a permitir passagem de grandes moléculas, como as imunoglobulinas, mas essa capacidade vai decrescendo após o primeiro dia de vida. Uma vez que o pico da absorção ocorre entre seis a dez horas do nascimento, a ingestão não deve ocorrer muito depois desse período para que haja maior aproveitamento e melhor imunização do animal.

No caso de bovinos de corte, a mamada do colostro ocorre naturalmente, bastando que o homem não atrapalhe. Caso se observe que o bezerro não tenha ingerido, porque a vaca não produziu o colostro ou por qualquer outro motivo, recomenda-se oferecer o colostro de outra vaca recém-parida.

A goteira esofageana:

Já do ponto de vista da nutrição, o bezerro ao nascer equivale a qualquer outro animal monogástrico, ou seja, que tem apenas um estômago, como o porco, o cachorro ou aquele animal bípede que tem por hábito a leitura. Ele não tem qualquer funcionalidade de ruminante, pois ainda não tem microrganismos no rúmen e não realiza o ato de ruminar (remastigar o material ingerido). No início da sua vida, o alimento que será responsável pelo seu crescimento basicamente é o leite materno.

Como o leite é um alimento de elevada digestibilidade, a fermentação no rúmen seria apenas um fator de perda de energia e queda na qualidade da dieta. Em função disso, existe uma estrutura muscular no ruminante chamada goteira esofageana que evita o fluxo do leite pelo rúmen. Esse músculo se contrai formando um “canudo” que leva o leite do esôfago direto para o omaso. O omaso é a terceira câmara do ruminante que serve como uma transição entre a grande dorna de fermentação que é o retículo-rúmen (primeira e segunda câmaras) e o abomaso que é a última das quatro câmaras e seria equivalente ao estômago dos monogástricos.

Com o passar do tempo, por causa da menor importância relativa do leite no atendimento das exigências nutricionais do animal, a goteira esofageana vai sendo cada vez menos estimulada. Com a desmama, sem estímulo, deixa de funcionar. Um detalhe interessante é que dois estímulos são importantes para o acionamento da goteira esofageana: a posição da cabeça do bezerro e a sucção que ele faz ao mamar. Isso explica porque, nos casos em que o bezerro não mame diretamente na vaca (aleitamento artificial, mais usual para gado de leite), recomenda-se colocar o balde de leite em local elevado e tendo um bico por onde o animal deve sugar o leite.

Portanto, logo no início da vida, o rúmen não tem qualquer importância. Isso fica bem ilustrado pelo fato de, ao nascimento, o rumen-retículo corresponder a apenas 25% do estômago inteiro, em comparação a 60-80% no ruminante adulto.

Inoculação ruminal de microrganismos, consumo de sólidos, fermentação e  crescimento das papilas ruminais:

O bezerro, ainda muito novo, começa a copiar os hábitos alimentares dos animais mais velhos e inicia o consumo de alimentos sólidos. O seu crescimento acelerado faz com que tenha muita fome e, assim, ele começa a complementar o leite com a ingestão de forragens e outros alimentos que estejam disponíveis.

Ocorre que os bezerros nascem livres de microrganismos no rúmen. É na interação com outros animais adultos que eles garantem essa contaminação, passo fundamental para se tornarem ruminantes. A inoculação ocorre de forma natural e muito eficiente principalmente pelo contato do bezerro com a saliva da mãe. Em função disso, não existe nenhuma vantagem em oferecer produtos à base de bactérias ruminais liofilizadas[1] existentes no mercado, cuja alegação dos fabricantes seria acelerar esse processo.

Para ocorrer o desenvolvimento do rúmen, além dos microrganismos ruminais, há necessidade de substrato para fermentação, que são os alimentos ingeridos. Esses substratos são fermentados pelos microrganismos cujos subprodutos são ácidos graxos voláteis (AGVs) que são a principal fonte de energia para os bovinos. A ingestão de alimentos sólidos e a produção de AGVs estimulam o desenvolvimento do rúmen. Há, por exemplo, uma parte do leite que escapa da goteira esofageana e é fermentado. A fermentação gera ácido lático como AGV e estimula muito pouco o desenvolvimento.

Dos AGV produzidos, o ácido acético e o butírico são preferencialmente fonte de energia para os tecidos, como as células do epitélio ruminal, a camada do rúmen responsável pela absorção dos nutrientes. Assim, seria de se esperar que uma dieta com alimentos volumosos fosse melhor para um bom desenvolvimento das estruturas absortivas do epitélio ruminal, chamadas papilas ruminais. Todavia os experimentos mostram que o butírico é o mais eficiente em estimular o desenvolvimento, seguido do propiônico e do acético. Esse é o motivo pelo qual a inclusão de concentrados para os bezerros, que estimulam a produção destes ácidos graxos por terem mais carboidratos não fibrosos e proteína, ajudam no desenvolvimento das suas papilas ruminais. Apesar disso, essa é uma linha de pesquisa que não se manteve ativa, demonstrando falta de interesse neste benefício no longo prazo. Deve-se ainda lembrar que uma dieta com excesso de  concentrado pode, inclusive, piorar a absorção ruminal, por conta da queratinização das papilas [2].

Assim, com a ingestão de alimentos sólidos e devidamente inoculado, o bezerro, vai crescendo e desenvolvendo seu rúmen. Isso ocorre de maneira harmônica com a redução na ingestão do leite e o aumento de consumo de forragem (e/ou concentrado). O aumento de consumo de material sólido ocorre, pois, ao mesmo tempo em que há um aumento da exigência, uma vez que o bezerro está crescendo rápido, a produção de leite das vacas também vai declinando com o tempo, ainda que essa redução seja modesta em vacas de corte.

Ruminante funcional:

A idade média em que o bezerro é considerado ruminante funcional pleno é quatro meses. Nesta idade, o leite contribuiria ainda com mais da metade da energia, mas declina até chegar aos sete meses de idade, época em que normalmente é feita a desmama. Nela, o leite contribuiria com a menor parte dos nutrientes, ainda que, no caso da energia, possa representar cerca de 40%. Apesar disso e do estresse da desmama, os bezerros tem uma boa capacidade de adaptação ao novo regime alimentar.

Da desmama em diante, toda energia disponível para o animal será proveniente da dieta (forragem e/ou concentrado), o que aumenta a importância do bom desenvolvimento e funcionamento do rúmen, em particular, e do trato gastrointestinal como um todo, para o bom aproveitamento dos alimentos.

No próximo texto da série, vamos abordar a parceria entre o bovino e os microrganismos que habitam seu rúmen que faz com que ele consiga transformar capim em deliciosas picanhas.


[1] Secas à baixíssimas pressões, sem necessidade de uso de calor.

[2] Esse parágrafo, bem como a última linha do parágrafo anterior (que, obviamentem, já foi apagada!) da versão original, publicada em 24/10/13 continham informações equivocadas sobre AGVs e desenvolvimento das papilas. A falha foi apontada pelo leitor Cahuê Fagundes a quem agradeço a correção.

Como ocorre o desenvolvimento do rúmen?

Para ocorrer o desenvolvimento do rúmen, além dos microrganismos ruminais, há necessidade de substrato para fermentação, que são os alimentos ingeridos. Esses substratos são fermentados pelos microrganismos cujos subprodutos são ácidos graxos voláteis (AGVs) que são a principal fonte de energia para os bovinos.

Quais processos ocorrem no rúmen?

O rúmen funciona como um combinado de reservatório e câmara fermentativa dos alimentos ingeridos. Os alimentos que chegam ao rúmen pela deglutição são digeridos ou degradados por processos fermentativos realizados pelos microrganismos que vivem dentro do órgão: bactérias, protozoários e fungos.

Como ocorre o desenvolvimento do rúmen em animais jovens?

O desenvolvimento do rúmen em idade precoce está intimamente associado ao consumo de alimentos sólidos. A ingestão de alimentos concentrados por animais ruminantes, irá estimular o desenvolvimento da mucosa do rúmen aumentando o tamanho e o número de papilas ruminais.

Como ocorre a fermentação no rúmen?

A fermentação ruminal é o resultado de atividades microbiológicas, responsáveis pela conversão dos componentes dos alimentos (car- boidratos e nitrogênio) em subprodutos utilizados no metabolismo animal tais como os ácidos gra- xos voláteis (AGVs), a proteína microbiana e as vitaminas do complexo B.