Quais os fatores que contribuíram para a transição do pensamento mítico para o pensamento filosófico?

Considerados há muito tempo como antagônicos, mito e filosofia protagonizam atualmente uma (re)conciliação. Desde os primórdios, a Filosofia, busca do saber, é entendida como um discurso racional que surgiu para se contrapor ao modelo mítico desenvolvido na Grécia Antiga e que serviu como base de sua Paideia (educação). A palavra mito é grega e significa contar, narrar algo para alguém que reconhece o proferidor do discurso como autoridade sobre aquilo que foi dito.

Assim, Homero (Íliada e Odisseia) e Hesíodo (Teogonia e Dos trabalhos e dos Dias) são considerados os educadores da Hélade (como se chamava a Grécia) por excelência, bem como os rapsodos (uma espécie de ator, cantor, recitador) eram tidos como portadores de uma verdade fundamental sobre a origem do universo, das leis etc., por reproduzirem as narrativas contidas nas obras daqueles autores.

Foi somente a partir de determinadas condições (navegações, uso e invenção do calendário e da moeda, a criação da democracia que preconizava o uso da palavra, bem como a publicidade das leis etc.) que o modelo mítico foi sendo questionado e substituído por uma forma de pensar que exigia outros critérios para a confecção de argumentos. Surge a Filosofia como busca de um conhecimento racional, sistemático e com validade universal.

De Aristóteles a Descartes, a Filosofia ganhou uma conotação de ciência, de conhecimento seguro, infalível e essa noção perdurou até o século XIX, quando as bases do que chamamos Razão sofreu duras críticas com o desenvolvimento da técnica e do sistema capitalista de produção. A crença no domínio da natureza, da exploração do trabalho, bem como a descoberta do inconsciente como o grande motivador das ações humanas, evidenciaram o declínio de uma sociedade armamentista, excludente e sugadora desenfreada dos recursos naturais. A tendência racionalista fica, então, abalada e uma nova abordagem do mundo faz-se necessária.

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O que era tido antes como pré-cientifico, primitivo, assistemático, ganha especial papel na formação das culturas. As noções de civilização, progresso e desenvolvimento vão sendo substituídas lentamente pela diversidade cultural, já que aquelas não mais se justificam. A releitura de um dos pensadores tidos como fundadores do idealismo racionalista preconiza que já na Grécia o mito não foi meramente substituído nem de forma radical, nem gradual pelo pensamento filosófico. Os textos de Platão, analisados não somente pela ótica conceitual, mas também dramática, nos proporciona compreender que um certo uso do mito é necessário onde o lógos (discurso, razão, palavra) não consegue atingir ainda seu objeto, ou seja, aquilo que era apenas fantasioso, imaginário, ganha destaque por seu valor prático na formação do homem.

Dito de outro modo, embora o homem deseje conhecer a fundo o mundo em que vive, ele sempre dependerá do aperfeiçoamento de métodos e técnicas de interpretação. A ciência é realmente um saber, mas que também é histórico e sua validade prática depende de como foi construído argumentativamente. Interessa perceber que Filosofia é amor ao saber, busca do conhecimento e nunca posse, como define Platão. Então, nunca devemos confundi-la com ciência, que é a posse de um saber construído historicamente, isto é, determinado pelas condições do seu tempo. Portanto, Mito, Filosofia e Ciência possuem entre si não uma relação de exclusão ou gradação, mas sim de intercomplementaridade, haja vista que um sempre sucede ao outro de forma cíclica no decorrer do tempo.

Por João Francisco P. Cabral
Colaborador Brasil Escola
Graduado em Filosofia pela Universidade Federal de Uberlândia - UFU
Mestrando em Filosofia pela Universidade Estadual de Campinas - UNICAMP

O que é real nos deuses é a ordem transcendental que têm para viverem como vivem. Os deuses são constituídos para serem sempre

Zeus, no começo da Odisséia, faz uma definitiva crítica contra os seres humanos. “Os homens”, dizia então o pai do Olimpo, “dizem que seus males vêm de nós – os deuses – quando em verdade são eles que penam por seus próprios desatinos.” Exime-se, portanto, Zeus, e, além do mais, relembra o que ocorrera com Egisto. Do que morrera Egisto? Este matara Agamêmnon, de cuja mulher se apoderara, sem dar trela para a advertência dos divinos: que não fizesse aquilo, pois que Orestes – filho do assassinado – iria chegar para a vingança. E assim de fato foi.

No entanto, que papel teria o divino aviso, já que, enfim, de nada adiantaria? Inútil não fora – diga-se –, pelo menos para Homero e sua poesia: o “caso” Egisto prepara, pelo avesso, as virtudes de Ulisses, assim como do filho seu, Telêmaco, também antecipado na menção a Orestes. As informações narrativas não podem surgir bruscamente. A narrativa tem de dar avisos.

E quanto àquela visita meio à toa? Não soaria algo infamante aos imortais? Talvez não, pois os deuses poderiam querer de Egisto que ele, em vez de morrer como vivera, compreendesse a ironia de sua própria morte e apaziguasse por fim os seus sentidos carregados de loucura e poderio.

Quanto a avisar, os deuses sempre avisam. Pois não suportam o mundo ingovernável. Em geral avisam por migalhas, indícios indecisos. No entanto, avisam, e no caso de Egisto o fizeram claramente. Os homens é que não conseguem perceber, têm seus sentidos embotados. Por isso a tarefa divina é fazê-los compreender a tempo ou, sobretudo, quando é tarde. Isto constituiu a antinomia grega: os homens estão ou muito na frente ou muito atrás desses recados. Estão perdidos no sentido. Os homens são exagerados. São projetados, atirados. Reparem que Zeus não se alongou, e esta isenção metafísica não é rara na mitologia. Os deuses podem até reclamar um com outro, mas justificarem-se, eles não se justificam, porque tal seria banal e perigoso. Sua própria imortalidade, por exemplo, como é que eles a explicariam?

É um imperativo prático que os deuses vivam para sempre. Esse imperativo antecipa-se ao que se possa pensar sobre ele. Deuses não falam sobre sua imortalidade. Se os homens falam da morte, esse é problema deles, homens.

O que é real nos deuses é a ordem transcendental que têm para viverem como vivem. Os deuses são constituídos para serem sempre. Ressalvada essa ordem incondicional, eles são o que mais próximo existe de uma liberdade assegurada. Preferem comentar em vez de analisar, e mostrar em vez de comentar. Grandes deuses como Atena e Apolo raramente analisavam, e menos raramente comentavam (como fizera Zeus há pouco). Tinham, sem embargo, todo saber e toda filosofia em si mesmos, mais ou menos como, para alguns românticos, a natureza tinha em si toda a verdade. Sua filosofia desdobrava-se por recados problemáticos: tinham de se haver com os sentidos infinitos desse mundo, sobretudo os adversos, que são loucos, destrambelhados.

Era pelo modo de esses deuses se mostrarem que os mortais os consagravam como sábios, e os consultavam. Mostrar-se aí quer dizer: pôr-se em uma situação em que os mortais adivinhassem (ou não) o futuro próximo da vida. Esse mostrar-se, que nas artes era icônico, suntuoso –, na vida prática era digital, sutil. Fácil, portanto, era adivinhar a região de um deus, o seu poder, a sua ambiência, merecedores de votos e cultos, danças e competições. Difícil era saber suas decisões ou atitudes próximas. Saber era de certa forma adivinhar, tal como ainda pensa hoje a ciência.

Os deuses erravam? Que algum mortal, vez por outra, desancasse os divinais – tal, quando não desse em desgraça, era coisa de somenos, ninharia acadêmica. Havia quem culpasse os poetas, por perverterem a mitologia. Mas isto era parte do jogo de recados problemáticos.

Pois o mito é antinômico e vive (como vivemos) de seu desdobrar-se para fora de si mesmo. Uns e outros, tanto defensores como detratores dos deuses, assinalavam, sem ver ou perceber, o começo de uma discursiva ética, paralela, mas um pouco irônica também, em relação ao mito e seus imperativos, e foi esta que em parte patrocinaria o movimento iluminista da era clássica em Atenas (século 5 a.C.), de que surgiram a Ciência e a Filosofia, setores que, a rigor – e para surpresa de muitos –, prefeririam tratar de seus problemas, e não da essência da mitologia. Por quê? Porque, a rigor, o mito era imbatível, era o interpretante final de toda a história grega. Tal como as sementes, em que vão contidas todas árvores e talvez toda botânica.

Hegel, em um passo de sua Fenomenologia, diz – em prol do Iluminismo – que o advento da tragédia clássica abriria um espaço bem difícil para a penetração dos deuses, que estariam, por causa disso, com os dias contados.  Mas Hegel nessa hora explica a história humana pela estética na história, como se a segunda determinasse a primeira. Ora, sabemos que a história da arte não detém a história inteira. “A lírica não tem história”, dizia Dámaso Alonso, e Hesíodo é sempre mais moderno na visão dos deuses. Os deuses em Hesíodo não precisam de palco. Estão no cântico das musas, estritamente no cântico – e este é o elo entre mortais e divinais. Daí é que vinham, pois, todos os recados, inclusive os que se problematizavam.

Problematizavam? Não há de parte dos divinos um Decálogo. Há sim uma regra, uma instrução intuitiva, esquecida por Egisto e tantas outras figuras: não exagerar nem perverter qualquer relíquia da sabedoria prática mas, ao contrário, procurar a phrónesis (“sensatez”), e evitar o acaso puro ou puramente especular. Tal foi o grande pensamento negativo dos helenos.  Egisto exagerara. Seria punido, pois, e não pelos divinos, mas por “aquilo” que fizera, a perversão vindicando o perversor. Fora deste sentimento da hýbris (“desmedida”), o resto era týkhe, incerteza. O homem era o agente de seus males. Isto, se não evitava as coisas trágicas, uma esperança sempre dava. Era a tese de Zeus.

A sabedoria, portanto, era antinômica, e desde -Homero buscaram os helenos conviver com a fortuna e suas reviravoltas. Não eram contra o risco, mas contra a falta de virtude, embora não raro atropelassem suas virtudes. As musas tinham advertido a Hesíodo: que não se enganasse, pois tanto diziam verdades quanto falsidades. Mas o cantar em si mesmo, em sua musicalidade absoluta, e bem acima de qualquer outra divisão – era a voz apodíctica de todas as divindades.

Antonio Medina Rodrigues
é professor titular de Língua e Literatura grega da Universidade de São Paulo (USP), poeta, tradutor e ensaísta, autor de Utopias gregas (São Paulo, Brasiliense), Lírica de Camões (São Paulo, Ática), e da edição comentada da Odisséia de Homero, na tradução de Odorico Mendes, São Paulo: Edusp)

Como foi a transição do pensamento mítico para o filosófico?

O pensamento filosófico-científico representa assim uma ruptura bastante radical com o pensamento mítico, enquanto forma de explicar a realidade. Entretanto, se o pensamento filosófico-científico surge pro volta do séc. VI a.C., essa ruptura com o pensamento mítico não se dá de forma completa e imediata.

Quais são as principais diferenças entre o pensamento mítico e o pensamento filosófico?

Enquanto o mito pressupõe uma incondicional adesão e aceitação de sua narrativa, que apela para uma realidade sobrenatural, divina ou misteriosa, o pensamento filosófico-científico pretende alcançar o conhecimento a partir de argumentos lógicos e racionais sobre o homem e a natureza.

Qual a importância da passagem do pensamento mítico para o pensamento filosófico?

Por ser parte de uma tradição cultural, o mito configura assim a própria visão de mundo dos indivíduos, a sua maneira mesmo de vivencia esta realidade. Nesse sentido, o pensamento mítico pressupõe a adesão, aceitação dos individuas, na medida em que constitui as formas de sua experiência do real.

Quais são as principais características do pensamento filosófico?

A principal preocupação do conhecimento filosófico é questionar e encontrar respostas racionais para determinadas questões, mas não necessariamente comprovar algo. Neste sentido, pode-se afirmar que este modelo de conhecimento é crítico e especulativo.

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