Zé-do-burro vê diferença entre iansan e santa bárbara por quê

Prefácio em forma de Podcast, por Bianca Rey

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Por Angel Mora, Jessica Lloyd, Simone Koch Costa, Tyler Jansen, Tricia Viveros, Marina Tinone, Nissim Roffe, Krista Arellano e Alexandra Rocha-Alvarez

Introdução

O Pagador de Promessas é uma peça de teatro escrita pelo dramaturgo brasileiro Alfredo de Freitas Dias Gomes no ano de 1960. Dias Gomes foi parte da terceira geração do modernismo brasileiro acompanhado por autores como Clarice Lispector e João Cabral de Melo Neto. Pós-modernistas, também conhecidos como a “Geração de 45”, foram marcados pelo fim do “Estado Novo” de Getúlio Vargas e o fim da Segunda Guerra Mundial. Os primeiros modernistas tiveram um foco na crítica cultural por meio da sátira e ironia, concentrando-se no desenvolvimento da identidade brasileira. A “Geração de 22” realizou uma mudança extrema no mundo artístico, até o ponto de redesenhar completamente a maneira como as pessoas percebiam a arte e suas implicações sociais. A terceira fase do movimento modernista teve como objetivo desfazer a transformação que produziram seus predecessores para poder criar um estilo mais objetivo e capaz de ter influência política dentro do país. Ao fim e ao cabo, a crítica que tão bem caracterizou o primeiro movimento modernista ainda estava presente na terceira fase, mas a forma na qual essa crítica foi feita mudou. Para ressaltar os problemas sociais da época, o regionalismo foi empregado nacionalmente e ajudou a evidenciar as diferenças culturais.

Alfredo de Freitas Dias Gomes nasceu em Salvador da Bahia no ano de 1922, o mesmo ano no qual a Semana de Arte Moderna aconteceu. Realizou seus primeiros estudos em Salvador e a partir de 1935 começou a residir no Rio de Janeiro. Lá, Dias Gomes tentou se formar como engenheiro e advogado, mas não conseguiu terminar nenhuma das duas carreiras. A verdadeira paixão de Dias Gomes surgiu quando tinha 15 anos, quando escreveu sua primeira peça de teatro. Durante os próximos anos, Dias Gomes seguiu desenvolvendo sua carreira como dramaturgo e também expandiu seu repertório de profissões como locutor de rádio e escritor de telenovelas. O distinto autor deu uma pausa ao teatro mas retornou uns anos depois, e escreveu O Pagador de Promessas, a peça que o faria o dramaturgo mais famoso do Brasil. Dias Gomes continuou escrevendo para o teatro e televisão até sua morte em 1999, mas o êxito de sua carreira é representado por sua membresia na Academia Brasileira de Letras iniciada em 1991.

A peça mais famosa de Dias Gomes, O Pagador de Promessas, é dividida em três atos dos quais os primeiros dois são ainda divididos em dois quadros. O protagonista da história, Zé-do-burro, é um “moço, de 30 anos presumíveis, magro” com “feições [que] transmitem bondade, tolerância e há em seu rosto um “quê” de infantilidade”. Ao seu lado está Rosa, sua mulher, com “traços um tanto grosseiros, tal como suas maneiras”. Para cumprir a promessa que fez, Zé-do-burro carrega uma cruz nas costas por sete léguas até chegar à Igreja de Santa Bárbara em Salvador. Na verdade, o homem ingenuamente fez a promessa à Iansã, um orixá da religião do Candomblé. Quando o padre ouve que este homem fez uma promessa a um deus “pagão”, insiste que Zé-do-burro não pode entrar na igreja para finalizar sua promessa. Ao final da obra, olhando o cadáver do protagonista, as pessoas da cidade e os devotos da igreja ficam refletindo sobre a realidade da sociedade.

Vários temas podem ser usados para descrever a natureza da obra de Dias Gomes. Capitalismo, patriarcado, feminismo, religião e racismo são só uns exemplos do que o autor critica na sua peça de teatro. A aclamada obra de peça de teatro foi adaptada como longa-metragem, projeto encabeçado pelo diretor Anselmo Duarte. O filme é, até hoje, o único filme brasileiro a receber a Palma de Ouro do Festival de Cannes. Todo o sucesso que viveu O Pagador de Promessas como peça de teatro e filme indica o valor social que o conteúdo carrega e nos convida a criticar nossa própria sociedade, sendo que os mesmos problemas, embora não sejam tão óbvios, ainda estão presentes na atualidade.

Capitalismo e Machismo 

Nós, alunos de português, fizemos uma leitura dramática da peça no Jonathan Edwards Theater, da Yale. Marina Tinone representou a personagem principal, Zé-do-burro. Durante a leitura, ela o percebeu como um hipócrita. Para um homem tão obsessivo por cumprir a promessa de Santa Bárbara, ele deixou a promessa do casamento, de dar atenção à mulher dele para trás.

Diálogo entre Zé-do-Burro (Marina) e Rosa (Krista)

Zé-do-burro, como devoto de Santa Bárbara, também mostrou um lado racista ou, pelo menos, pretensioso. No começo, na primeira conversa com o Padre, Zé explica ao Padre que “na capela do meu povoado não tem uma imagem de Santa Bárbara. Mas no candomblé tem uma imagem de Iansã, que é Santa Bárbara” (I.ii). Mas, com o aumento e exacerbação dos problemas, Zé nega o sincretismo entre as santas e diz à Minha Tia que ele não tem outra opção para homenagear a Santa.

Da esquerda à direita: Sacristão (Tyler), o Padre (Simone), e Zé (Marina), com o Bonitão (Nissim) escutando a história do burro.e “Santa Bárbara me abandonou” (III).

 Mesmo que ele ainda tenha a opção de carregar a cruz para Iansã e não à Igreja, Zé declara que “Santa Bárbara me abandonou” (III). Assim, negando o sincretismo e separando o candomblé do catolicismo, os eventos enfatizam este lado obsessivo e hipócrita do Zé.

Ao representar Zé na nossa produção, Marina sentiu que este lado da sua personalidade tinha mais semelhanças com o Bonitão do que eu tinha percebido somente na leitura. Os dois homens deixam as mulheres deles para trás para conseguir o que eles querem no momento. Mas depois do sucesso deste desejo, eu não consegui imaginar como eles poderiam tratar as mulheres depois. Os dois são capitalistas e opressivos–mesmo que o Repórter concluiu que, como Zé dividiu o sítio, que o Zé está “a favor da reforma agrária” (II.i), o Zé só fez isso para cumprir a promessa. Assim, Zé representa uma forma da masculinidade e capitalismo que é passivo–mesmo que ele não tenha diretamente achado ou desenvolvido esquemas para manipular as pessoas, ele só é generoso para cumprir os desejos dele. E o desejo principal representado na peça: carregar a cruz para dentro da Igreja, sem pensar na situação ou nas pessoas além de si mesmo. Ele não rouba as pessoas, mas como ele não faz nada, sentado nos degraus da igreja atrapalhando e interrompendo o dia-a-dia, a obstinação dele rouba todo mundo da lógica, e assim, ele age como um catalisador da loucura trágica da situação. E depois de tudo isso, uma das vítimas é a mulher dele sem outra opção além de ficar com o Bonitão.

Se o Zé-do-burro incorpora a masculinidade passiva, então o Bonitão captura a masculinidade ativa, pela sua imagem como um homenzarrão narcisista e vicioso, que representa uma vitória trágica na obra. Enquanto Zé termina perdendo, o Bonitão emerge triunfante em sua manipulação da vida de Marli e o corpo de Rosa porque ele consegue satisfazer suas duas obsessões: extrair dos outros e promover sua imagem. Ainda, a vitória é trágica, apesar de que Bonitão consegue seus objetivos, porque ao fim do dia Bonitão não melhora sua vida e permanece na mesma posição em que começou, aquela posição de vício e dependência.

Marli enfrentando a Bonitão diante de Rosa. Representa a atitude paternalista de Bonitão e sua insistência em suprimir as vozes das personagens femininas na obra. 

Primeiro, no vídeo acima se observa como Bonitão se orienta em sua posição socioeconômica; ele depende do trabalho de Marli, mas a controla como seu cafetão e amante, explorando seu trabalho e sua sexualidade. O trágico é que o leitor entende que Bonitão depende dela e de outras mulheres para sobreviver, só preservando sua masculinidade agigantada porque se apresenta como o chefe do trabalho e sexo de Marli.

O próximo clip apresenta a conversa entre Rosa e Bonitão onde ele tenta convencê-la a deixar seu marido e a se subjugar a seu mando laboral e sexual. Como qualquer obsessão, sua manifestação de masculinidade parece não ter um fim, pois ele segue exigindo mais e mais das mulheres para seu benefício.

Bonitão tentando convencer a Rosa que deve deixar seu marido e seu estilo de vida para uma vida com ele, que o leitor entende como prostituição sob a supervisão de Bonitão.

Em conclusão, Bonitão demonstra que não precisa ter moral para ser um homem bem-sucedido no sistema capitalista. Além disso, se interpretasse o personagem de Bonitão como uma justificativa da ideologia individualista do capitalismo, então também personificaria os padrões sociais de exploração. Bonitão, como diz seu nome, é caracterizado por seus triunfos individuais e não por como piora as vidas de outros, um testemunho de que se pudesse ampliar pelo resto do sistema capitalista e temas de masculinidade onde o dano externo é simplesmente apagado pelo triunfo individual quando é necessário compartilhar recursos e poder. O leitor pode observar como seu individualismo exploratório se propaga na obra, corrompendo o casamento e até o enfrentamento do Estado com Zé (III.ii).

Um sistema capitalista só permite que certos tipos de pessoas tenham sucesso. Em O pagador de promessas, o Bonitão foi quem mais aproveitou do sistema capitalista—um sistema que depende da exploração de outros. Isto é mais óbvio no seu tratamento de Marli. Ela é pra ele, mais que tudo, um meio de obter lucro. Num sistema capitalista, o valor é medido por dinheiro e poder. Não é coincidência que Bonitão consiga a ajuda e apoio do secreta, um representante do poder do governo. O capitalismo é um sistema relativo que requer a opressão de alguns para o deleite de outros. O amor—um tipo de promessa—é algo intangível, e por isso, Bonitão não demonstra amor por ninguém, e nunca cumpre as suas promessas.

Além disso, o capitalismo depende do individualismo para operar efetivamente. A profissão de Bonitão como cafetão é uma posição de poder individual sobre várias pessoas que trabalham abaixo dele. Do mesmo jeito, até Zé existe de uma maneira mais individualista do que coletivista. Ele ignora as necessidades da Rosa, não cumprindo a promessa matrimonial que ele fez ela como marido. Quando ele chega à igreja da Santa Bárbara, ele rejeita a ajuda de Minha Tia, e mais tarde, dos capoeiristas. Ele quer cumprir a promessa dele sozinho—mas ele não percebe que talvez o coletivismo (aceitar a ajuda dos outros) é a única coisa que pode suplantar o poder sistemático do capitalismo (representados por Bonitão, o sistema da igreja, e Secreta).

No fim da peça, é o coletivo dos capoeiristas e vendedores que trazem juntos a cruz e o corpo de Zé para dentro da igreja, depois da sua morte.

Feminismo e Patriarcado

         Na maioria das culturas da América Latina, as mulheres ainda não são vistas como seres independentes. Em vez disso, sua identidade é derivada de uma extensão dos homens que as cercam. Uma mulher é filha, depois esposa, depois mãe ou tia ou avó. E isso é apenas lidar com as opções aceitáveis para as mulheres. A ideologia de gênero também oferece maneiras pelas quais as mulheres podem deixar de cumprir seu papel, resultando no que os teóricos de gênero chamam de “párias de gênero,” uma categoria que engloba as prostitutas, os gays e transgêneros, por exemplo. Em O pagador de promessas, um drama do ano de 1960, somos confrontados com três arquétipos da feminilidade: a esposa, a prostituta e a santa. As três mulheres que demonstram esses arquétipos são, em ordem, Rosa, Marli, e Minha Tia; embora sejam muito diferentes, as três estão em busca de agência dentro de uma sociedade altamente religiosa e patriarcal no Brasil. Sua busca por empoderamento é restringida por seus opressores do sexo masculino, e elas devem equilibrar seus próprios interesses com a possibilidade de cair na categoria de “pária de gênero”.

Na peça, Rosa, a esposa de Zé-do-Burro, é uma das personagens principais e a mulher que ouvimos com mais frequência ao longo da peça. Rosa, uma mulher religiosa e a esposa de Zé, que é tão religioso que ele coloca sua promessa a Santa Bárbara antes de suas próprias necessidades e as necessidades de sua esposa, funciona como o papel oposto de Marli, que é uma prostituta que trabalha com Bonitão, seu cafetão. Como mencionado anteriormente, na cultura religiosa e patriarcal do Brasil desta época, os únicos papéis para as mulheres são frequentemente os estereótipos da prostituta, como Marli, ou das mães virgens como Rosa ou Minha Tia.

Como oposto de Marli, Rosa é mais tradicional e religiosa. Rosa é uma mulher casada com um homem muito “bom” para os padrões da sociedade. Zé é honesto, religioso demais, e tinha um sítio, embora contra os desejos de Rosa ele deu a maior parte do sítio a outros. No início da peça, a audiência é apresentada a Rosa enquanto ela segue Zé, contra sua própria vontade, para que ele possa pagar sua promessa e salvar seu burro.

Rosa apresenta pela primeira vez para a audiência o papel estereotipado da boa e santa esposa. Como vemos no primeiro ato e durante os primeiros diálogos entre Zé e Rosa, as necessidades e desejos de Rosa são inferiores às de seu marido. Ela o seguiu por sete léguas caminhando e dormiu no chão fora da igreja com ele, somente porque ela é a mulher dele. Rosa representa o papel esperado da mulher na sua sociedade e, assim, ela não tem muita agência para fazer as coisas por si mesma sem a permissão do marido.

Rosa quebra o estereótipo um pouco pela primeira vez quando ela conhece Bonitão, mostrando uma qualidade dinâmica ao seu papel e afirmando alguma agência para ela mesma. Embora Bonitão seja um cafetão e tenha segundas intenções em falar com Rosa, ao falar com ele, Rosa se sente ouvida e fortalecida pela primeira vez. Quando ela sai com Bonitão para o hotel, o que ela só pode fazer com a permissão do marido, Rosa quebra seu estereótipo da santa e obediente esposa e mostra mais complexidade ao seu caráter e papel como mulher na peça. Mas depois de seu momento de infidelidade, ela volta a Zé e retorna ao seu estereótipo original da “boa” esposa. Por exemplo, ao final da peça, Rosa apoia Zé contra a igreja e lamenta sua morte.

Enquanto Rosa é uma santa, Marli é uma degenerada. Ela é apresentada para contrastar com Rosa, mas também para ser uma extensão dela: Marli é o que Rosa pode se tornar se ela cair na nas armadilhas de Bonitão. Ela trabalha para ele como prostituta, mas não é capaz de colher os benefícios de seu trabalho. Isso traz à luz a questão do trabalho menos reconhecido, o trabalho sexual que as mulheres fazem para o benefício dos homens. Nesse caso, é muito óbvio—Marli é forçada a realizar trabalho sexual para o cafetão que rouba o dinheiro dela. Mas fora da prostituição, também se espera que muitas mulheres que não são trabalhadoras do sexo façam trabalho sexual para seus cônjuges como parte do casamento. A diferença é que, quando as mulheres recebem dinheiro por esse trabalho, elas são estigmatizadas como sujas. Marli, no entanto, não é uma agente passiva. Na primeira cena em que ela aparece, ela tenta manter mais de seus ganhos, o que mostra que ela está tentando ativamente melhorar sua vida. O importante é reconhecer que seu trabalho não é o problema. Se ela pudesse ficar com uma maior parte de seus ganhos, ela poderia alcançar independência como prostituta; o problema é a sociedade patriarcal que não valoriza esse tipo de trabalho e os homens que a mantém.

No espectro dos sucessos e fracassos de gênero, Rosa e Marli estão em lados opostos. Em algum lugar no meio, preso em um papel aceitável, mas marginalizado também, está Minha Tia. Como uma mulher solteira, ela é capaz de encontrar agência fora de seu relacionamento com os homens. Minha Tia, como visto ao longo da peça, tem o respeito de muitas pessoas da cidade. Essa agência, no entanto, é derivada de seu relacionamento com a religião. Como praticante de candomblé, Minha Tia faz parte de um sistema religioso que valoriza as mulheres muito mais do que a norma cristã. Dentro da sociedade brasileira—altamente branca, cristã e patriarcal—o fato de Minha Tia ser capaz de receber o respeito das pessoas da cidade não é pouca coisa. Ela é, no entanto, a única personagem feminina no enredo que é capaz de alcançar independência, e isso se deve em parte ao fato de ela não ter feito promessas a nenhum homem.

Embora os papéis das mulheres na peça O Pagador de Promessas sejam limitados, ao analisá-los, podemos aprender muito sobre como os papéis de gênero estão inter-relacionados com outros tópicos discutidos nesta revista, como machismo, capitalismo, religião e racismo. Por causa dos legados do colonialismo europeu, a cultura popular no Brasil e também na América Latina é predominantemente católica, patriarcal, racialmente dividida e capitalista. Através dos papéis diminutos e estereotipados desempenhados pelas únicas mulheres na peça, Dias Gomes retrata e critica as desigualdades estruturais inerentes à cultura popular e dominante neste momento histórico no Brasil. Por isso, as mulheres na peça, como a maioria das brasileiras desse período, eram limitadas a papéis subordinados. A única mudança que vemos nesses personagens é quando Rosa “trai” Zé com Bonitão, apesar de ser completamente infeliz e invalidada por Zé anteriormente. Mesmo assim, ela reconhece o erro de suas ações por causa de sua religiosidade e seu “dever” como esposa e volta para ele e começa a apoiá-lo ainda mais.

A crítica feminista de Dias Gomes em O Pagador de Promessas é proeminente e importante, no entanto, poderia ter sido mais forte se Dias Gomes tivesse dado à  Rosa, Marli, Minha Tia ou outra personagem feminina um papel e uma voz mais forte para contradizer aos homens, como Zé-do-Burro, Bonitão e o Padre que controlavam a maioria das cenas a história da peça.

Racismo e Religião

Um grande elemento da peça é a relação entre a religião e o racismo. O conflito da história vem da diferença entre o candomblé e o catolicismo, e as perspetivas de que santos católicos são, ou não são, também orixás. Em O Pagador de Promessas, Zé-do-Burro acredita que a promessa que ele fez à Iansã pode ser cumprida na igreja de Santa Bárbara porque as duas são a mesma deidade. Padre Olavo acredita no contrário, e não deixa Zé entrar na sua igreja porque o candomblé é condenado pela igreja católica. As origens deste conflito religioso são altamente raciais.

A religião do candomblé foi criada pelos escravos africanos no Brasil que queriam disfarçar suas religiões tradicionais dentro do catolicismo que os seus senhores e a igreja os ensinaram. Nesse caso, o candomblé serve como uma maneira de manter a identidade africana. Raça é uma construção social para controlar a sociedade, então essa religião africana não podia ser considerada verdadeira sem ameaçar os poderosos que se beneficiavam do racismo. Uma religião centrada em uma raça “inferior” causaria problemas para as pessoas no poder que queriam controlar os escravos e estratificação social. Catolicismo era a religião do Estado, e outras religiões ameaçavam a autoridade da instituição. Para proteger a imagem e poder social concentrados no Estado e na igreja, a pessoas que praticavam candomblé foram perseguidas.

O Candomblé também desenvolve um papel importante na história do Brasil porque é um exemplo da assimilação dos escravos africanos para sobreviver sob um sistema de racismo colonial. Os escravos que chegaram ao Brasil trouxeram suas próprias religiões e crenças da África. Apesar da perseguição da Igreja Católica, os escravos conseguiram preservar suas crenças e práticas culturais através do sincretismo do Candomblé. Combinaram seus orixás com santos católicos, mantendo sua cultura e suas tradições apesar do controle dos europeus. Os europeus queriam apagar a história e a cultura dos escravos, mas o Candomblé forneceu uma ferramenta extremamente útil para preservar essa história e cultura de uma maneira criativa.

Se Padre Olavo deixasse Zé entrar na igreja para cumprir a promessa para Iansã, seria como um reconhecimento do candomblé como uma religião verdadeira—mas para ele o catolicismo é a única verdade. Esse conflito fica óbvio nas falas do Padre Olavo: “A igreja é a casa de Deus. Candomblé é o culto do Diabo!” “Não se pode servir a dois senhores, a Deus e ao Diabo!” e quando o Zé desafiou suas ideias, ele disse “Vai desrespeitar a minha autoridade?” (Primeiro Ato, Segundo Quadro).

As relações entre as personagens da peça também nos ajudam a entender como uma sociedade pós-colonial mantém diferenças forçadas entre as crenças de grupos e raças diversas. Essas diferenças forçadas contribuem às ideias sobre as distinções raciais porque criam uma separação ainda maior entre as crenças “corretas” dos descendentes dos colonizadores europeus e as crenças “atrasadas” e “perigosas” dos descendentes dos escravos africanos. Na época da peça, não existe mais a escravidão nem o colonialismo europeu. Apesar disso, ainda se podem observar os efeitos da história colonial através do conflito principal.

No terceiro ato da peça, observamos os efeitos das diferenças forçadas entre o Candomblé e o Catolicismo tradicional. Enquanto o Galego, Coca e Dedé discutiam sobre o que eles achavam que iria acontecer com o Zé, o Galego falava que ele não poderia entrar na igreja para pagar sua promessa porque “candomblé é candomblé e igreja é igreja” (Terceiro Ato). Essa declaração mostra como a distinção oficial entre as crenças afro-brasileiras e as crenças católicas tradicionais tem se difundido na imaginação popular no Brasil.

Apesar das conexões fortes que existem entre o Candomblé e o Catolicismo, a igreja Católica tem imposto essa distinção entre as duas crenças ao decorrer dos séculos. As palavras do Padre Olavo já mencionadas (caracterizando Candomblé como “o culto do Diabo”) mostram como retórica oficial da igreja enfatiza essa distinção. Embora pareça  ser somente uma distinção entre crenças e religiões, devemos lembrar que o Candomblé é, sobretudo, uma representação da cultura afro-brasileira. Criar e enfatizar a diferença entre o Catolicismo é mais do que uma briga entre religiões diferentes; é uma maneira de enfatizar e impor uma distinção racial entre os afro-brasileiros e o resto da sociedade.

Cena final de O pagador de promessas. 


Todos os integrantes da peça O pagador de promessas, encenada no Jonathan Edwards Theater, no dia 05 de março de 2020, às 19h30.

Em pé, da esquerda para a direita: Jéssica Lloyd (Beata), Tyler Jansen (Sacristão e Galego), Marina Tinone (Zé do Burro), Krista Arellano (Rosa), Simone Koch (Padre Olavo), Alexandra Rocha Alvarez (Marli), Tricia Viveros (Minha Tia), Angel Mora (Mestre Coca), Nissim Roffe (Bonitão).
Agachados, da esquerda para a direita: Karina Lopez (Delegado), Ivo Cruz (Secreta), Raquel Silva (Dedé Cospe Rima), Giseli Tordin (Repórter), Yuri Teleginski (Guarda).

Agradecimento especial a João Cardoso, por sua assistência na iluminação e sonoplastia cênicas.

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