Largados e pelados sem tarja

Grátis

267 pág.

  • Denunciar

Pré-visualização | Página 20 de 50

estou com medo de sair e tenho outros motivos honestos, meu carro está descoberto, não estou bem, com muito sono e não relaxo, estou com medo de acidente, autocinetismo esta estalando. Mas também por estar cheio do tratamento e tudo mais, me sinto um lixo as vezes no tratamento. Depois as filas e protocolos de atendimento, a fila da medicação do alto custo, os papéis de retorno; “Psicóticos e Egressos”, aquela gente doente, a falta de pontualidade, a troca periódica de psiquiatra, o não vinculo com alguns. Nunca imaginei esse futuro, pensava que tudo de bom era para sempre. Cândido foi minha última internação, eu que odeio hospital psiquiátrico público, mas não tenho uma crítica tão negativa quanto a ele, entre todos os públicos ele foi o melhor, não a estadia ou acomodações, mas com o funcionamento e projetos. A chegada é terrível, por precaução, os que tem vem chegar e escutam como você chegou do hospital Geral, temem seu despertar, ai te amarram ao leito e você acorda assim, com outros loucos do seu lado soltos. Se dá para tirar alguma conclusão de internações seria de que elas não funcionam, mas são como um resgate nos tempos de crise grave e uma tentativa quase sempre frustrada com os drogados a longo e médio prazo, e um abrigo para de lidar com doentes crônicos. Sobre minhas impressões dos hospitais psiquiátricos os pacientes crônicos parecem todos mergulhados na própria loucura em estado inacessível, além da doença estão “quimicamente contidos” sem muito espaço para relações de troca e amizade, de algo qualquer que pareça vida excerto quando “tratadores” promovem pequenas festas em períodos comemorativos e surge um espaço de interação social, mas que parece tão artificial embora alguns fiquem eufóricos ao seu modo estranho, parecem com robôs emocionais respondendo ao estímulo de formas estereotipadas. Nos hospitais que estive os tratadores estão sempre cansados, são preguiçosos e violentos as vezes eu mesmo vi agressões sádicas não podemos esquecer que o espaço em questão o manicômio e sua clientela exige tato e paciência, a instituição física e suas práticas orientadas pela psiquiatria se fundam na classificação e tratamento, mas não olham para si e se negam ou omitem uma autocrítica. Sabe o que é um aglomerado de loucos, um quarto para 20, sujeitos bizarros deteriorados pela doença ficam largados pelos pátios pelados as vezes têm os dedos amarelos pelos cigarros e queimados pelas bitucas, deitados no chão andando em círculos fazendo movimentos sem sentido, você odeia o lugar e pensa como pode ir parar num lugar desses depois de 20 anos estudando para atuar neles talvez, você odeia o mundo e a si mesmo nessa 54 HENRI TARJA PRETA MEMÓRIAS DE UM BORDERLINE hora, você está preso onde poderia trabalhar, e lembra que foi tudo a partir de uma primeira dose. Mas reconhecemos que não é a toa que você está lá segregado, pois você se “comportou mal” e ofereceu riscos a si próprio ou aos outros, um velho discurso para legitimar a internação compulsória, usado as vezes por uma família cansada e encontrou um meio eficiente para descansar sabendo que não vai acordar de madrugada para buscá-lo sei lá onde, num hospital, delegacia, numa boca sem dinheiro e devendo, caído na rua ou desmaiado num bar ou por último você está buscando um “tratamento”, entre aspas por que não virá, logo será apenas a reclusão e as amarras químicas, mais honesto reconhecer o limite. No hospital tem sempre alguém surtando para lembrar quem somos e porque estamos ali, e dar sentido aos cuidados todos da disciplina, as regras e as normas, uma explosão de ira ou revolta, uma desobediência, uma tentativa de fuga, cuspir o remédio escondido sob a língua, tentar suicídio, agredir um enfermeiro, coisas que vi muito pouco para que se justifique alguns cuidados, mas que acontecem. Só o Bairral foi exceção, as outras foram todos “instituições” para “alienados severos e dependentes pesados” que precisam de reclusão e vigilância absoluta, tratamento comportamental do século passado com química recente, locais sujos e feios, altos muros e portas de grades, tetos altos e janelas acima da altura média, enfermeiros que parecem seguranças. Bom eu registrar que desde os 30 anos, depois de dez de uso sem parar excerto em internações, eu vivo tentando não usar, já passei um ano sem nada, outras vezes muitos meses e vem uma recaída que me coloca de novo no final da fila. Ou melhor de volta ao início, o trabalho todo de meses é jogado fora, e acabo acordando em um hospital. Que sociedade cara? Se não tem um membro da família com problemas psiquiátricos bem próximos nem sabe que existem loucos, adictos, sabem apenas que existem hospitais para doentes mentais, nesses termos mesmo, doentes mentais e drogados. A lei e o movimento antimanicomial tem mais de 20 anos, foram fechados mais de 100 mil leitos psiquiátricos, no local surgiram os Caps que podem ou não ter Psiquiatra. Contudo o estado não fez crescer, na medida do fechamento de manicômios, a criação de Caps e Naps suficientes para atender a demanda. Assim o estado lava a mão e deixa para as comunidades terapêuticas o serviço. O alívio da demanda por leitos nos Hospitais Psiquiátricos Públicos é também um resultado da atuação das Comunidades Terapêuticas, creio que essa opinião encontraria respaldo numa análise matemática do crescimento de alternativas aliviou Hospitais Psiquiátricos e se implantou como ‘alternativa de primeira escolha’, com a internação nessas ‘residências 55 HENRI TARJA PRETA MEMÓRIAS DE UM BORDERLINE terapêuticas’, que se encarregam até do ‘resgate’. Já estive internado em várias Comunidades Terapêuticas, algumas seguiam apenas NA, sem medicação, apenas o estudo e grupos de NA, fazer os cuidados da casa, da cozinha, da chácara e a limpeza toda, outras associam NA a religião, mas tem problemas, tem que funcionar como um ‘negócio’, o objetivo é dinheiro, e um bom tratamento custa caro. Hoje tem uma infinidade de Comunidades Terapêuticas exclusivas para dependentes químicos, com programa em geral baseado no trabalho com a “espiritualidade” ligadas a igrejas pentecostais ou neo pentecostal, contudo sem instalações confortáveis, digo isso pois não é fácil se tratar em espaços de 30 ocupados por 90 dependentes, se o espaço é para trinta, os cuidadores mal preparados. Outras estritamente com metodologia de tratamento, ou plano de tratamento, baseada em sistemas ou religiões como sua ênfase, acordar as 7 horas, ficar meia hora cantando hinos religiosos e fazendo orações, depois varrer o páteo, limpar os quartos, ao meio dia orar e cantar de novo, um dia ou dois da semana alguém do comitê de serviços de NA vem fazer uma ‘sala’ com uma reunião de NA. Ainda sem fiscalização e avaliação especializada do estado, as vezes nem mesmo sem um profissional responsável. O estado não querer fechar o que tem bancado sua ausência, cresceram na mesma proporção que o consumo e com advento do crack se tornaram um braço ao menos ‘paliativo’. Eu trabalhei em uma que era sinistra, não tinha um programa definido, nem profissionais capacitados, não se trabalhava a doença, era somente cultos e cantos, leituras da bíblia, comida e trabalho, e o pior, um ambiente de morte, mas isso faz muitos anos, eles mesmos evoluíram, espero. Mas tem relação com meu surto? Sim, tem, ainda que mal elaborada

Postagens relacionadas

Toplist

Última postagem

Tag