A coisa esquento e ela chupo ali mesmo

O Corti�o, de Alu�sio de Azevedo

Fonte:

AZEVEDO, Alu�sio. O corti�o. 30. ed. S�o Paulo: �tica, 1997. (Bom Livro).

Texto proveniente de:

Biblioteca Virtual do Estudante de Língua Portuguesa <//www.bibvirt.futuro.usp.br>

A Escola do Futuro da Universidade de S�o Paulo

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O CORTI�O

Alu�sio de Azevedo

I

Jo�o Rom�o foi, dos treze aos vinte e cinco anos, empregado de um vendeiro que enriqueceu entre as quatro paredes de uma suja e obscura taverna nos refolhos do bairro do Botafogo; e tanto economizou do pouco que ganhara nessa d�zia de anos, que, ao retirar-se o patr�o para a terra, lhe deixou, em pagamento de ordenados vencidos, nem s� a venda com o que estava dentro, como ainda um conto e quinhentos em dinheiro.

Propriet�rio e estabelecido por sua conta, o rapaz atirou-se � labuta��o ainda com mais ardor, possuindo-se de tal del�rio de enriquecer, que afrontava resignado as mais duras priva��es. Dormia sobre o balc�o da pr�pria venda, em cima de uma esteira, fazendo travesseiro de um saco de estopa cheio de palha. A comida arranjava-lha, mediante quatrocentos r�is por dia, uma quitandeira sua vizinha, a Bertoleza, crioula trintona, escrava de um velho cego residente em Juiz de Fora e amigada com um portugu�s que tinha uma carro�a de m�o e fazia fretes na cidade.

Bertoleza tamb�m trabalhava forte; a sua quitanda era a mais bem afreguesada do bairro. De manh� vendia angu, e � noite peixe frito e iscas de f�gado; pagava de jornal a seu dono vinte mil-r�is por m�s, e, apesar disso, tinha de parte quase que o necess�rio para a alforria. Um dia, por�m, o seu homem, depois de correr meia l�gua, puxando uma carga superior �s suas for�as, caiu morto na rua, ao lado da carro�a, estrompado como uma besta.

Jo�o Rom�o mostrou grande interesse por esta desgra�a, fez-se at� participante direto dos sofrimentos da vizinha, e com tamanho empenho a lamentou, que a boa mulher o escolheu para confidente das suas desventuras. Abriu-se com ele, contou-lhe a sua vida de amofina��es e dificuldades. �Seu senhor comia-lhe a pele do corpo! N�o era brinquedo para uma pobre mulher ter de escarrar pr�ali, todos os meses, vinte mil-r�is em dinheiro!� E segredou-lhe ent�o o que tinha juntado para a sua liberdade e acabou pedindo ao vendeiro que lhe guardasse as economias, porque j� de certa vez fora roubada por gatunos que lhe entraram na quitanda pelos fundos.

Da� em diante, Jo�o Rom�o tornou-se o caixa, o procurador e o conselheiro da crioula. No fim de pouco tempo era ele quem tomava conta de tudo que ela produzia e era tamb�m quem punha e dispunha dos seus pec�lios, e quem se encarregava de remeter ao senhor os vinte mil-r�is mensais. Abriu-lhe logo uma conta corrente, e a quitandeira, quando precisava de dinheiro para qualquer coisa, dava um pulo at� � venda e recebia-o das m�os do vendeiro, de �Seu Jo�o�, como ela dizia. Seu Jo�o debitava metodicamente essas pequenas quantias num caderninho, em cuja capa de papel pardo lia-se, mal escrito e em letras cortadas de jornal: �Ativo e passivo de Bertoleza�.

E por tal forma foi o taverneiro ganhando confian�a no esp�rito da mulher, que esta afinal nada mais resolvia s� por si, e aceitava dele, cegamente, todo e qualquer arb�trio. Por �ltimo, se algu�m precisava tratar com ela qualquer neg�cio, nem mais se dava ao trabalho de procur�-la, ia logo direito a Jo�o Rom�o.

Quando deram f� estavam amigados.

Jo�o Rom�o comprou ent�o, com as economias da amiga, alguns palmos de terreno ao lado esquerdo da venda, e levantou uma casinha de duas portas, dividida ao meio paralelamente � rua, sendo a parte da frente destinada � quitanda e a do fundo para um dormit�rio que se arranjou com os cacarecos de Bertoleza. Havia, al�m da cama, uma c�moda de

jacarand� muito velha com ma�anetas de metal amarelo j� mareadas, um orat�rio cheio de santos e forrado de papel de cor, um ba� grande de couro cru tacheado, dois banquinhos de pau feitos de uma s� pe�a e um formid�vel cabide de pregar na parede, com a sua competente coberta de retalhos de chita.

O vendeiro nunca tivera tanta mob�lia.

- Agora, disse ele � crioula, as coisas v�o correr melhor para voc�. Voc� vai ficar forra; eu entro com o que falta.

Nesse dia ele saiu muito � rua, e uma semana depois apareceu com uma folha de papel toda escrita, que leu em voz alta � companheira.

- Voc� agora n�o tem mais senhor! declarou em seguida � leitura, que ela ouviu entre l�grimas agradecidas. Agora est� livre. Doravante o que voc� fizer � s� seu e mais de seus filhos, se os tiver. Acabou-se o cativeiro de pagar os vinte mil-r�is � peste do cego!

- Coitado! A gente se queixa � da sorte! Ele, como meu senhor, exigia o jornal, exigia o que era seu!

- Seu ou n�o seu, acabou-se! E vida nova!

Contra todo o costume, abriu-se nesse dia uma garrafa de vinho do Porto, e os dois beberam-na em honra ao grande acontecimento. Entretanto, a tal carta de liberdade era obra do pr�prio Jo�o Rom�o, e nem mesmo o selo, que ele entendeu de pespegar-lhe em cima, para dar � burla maior formalidade, representava despesa porque o esperto aproveitara uma estampilha j� servida. O senhor de Bertoleza n�o teve sequer conhecimento do fato; o que lhe constou, sim, foi que a sua escrava lhe havia fugido para a Bahia depois da morte do amigo.

- O cego que venha busc�-la aqui, se for capaz... desafiou o vendeiro de si para si. Ele que caia nessa e ver� se tem ou n�o pra p�ras!

N�o obstante, s� ficou tranq�ilo de todo da� a tr�s meses, quando lhe constou a morte do velho. A escrava passara naturalmente em heran�a a qualquer dos filhos do morto; mas, por estes, nada havia que recear: dois p�ndegos de marca maior que, empolgada a legitima, cuidariam de tudo, menos de atirar-se na pista de uma crioula a quem n�o viam de muitos anos �quela parte. �Ora! bastava j�, e n�o era pouco, o que lhe tinham sugado durante tanto tempo!�

Bertoleza representava agora ao lado de Jo�o Rom�o o papel tr�plice de caixeiro, de criada e de amante. Mourejava a valer, mas de cara alegre; �s quatro da madrugada estava j� na faina de todos os dias, aviando o caf� para os fregueses e depois preparando o almo�o para os trabalhadores de uma pedreira que havia para al�m de um grande capinzal aos fundos da venda. Varria a casa, cozinhava, vendia ao balc�o na taverna, quando o amigo andava ocupado l� por fora; fazia a sua quitanda durante o dia no intervalo de outros servi�os, e � noite passava-se para a porta da venda, e, defronte de um fogareiro de barro, fritava f�gado e frigia sardinhas, que Rom�o ia pela manh�, em mangas de camisa, de tamancos e sem meias, comprar � praia do Peixe. E o dem�nio da mulher ainda encontrava tempo para lavar e consertar, al�m da sua, a roupa do seu homem, que esta, valha a verdade, n�o era tanta e nunca passava em todo o m�s de alguns pares de cal�as de zuarte e outras tantas camisas de riscado.

Jo�o Rom�o n�o saia nunca a passeio, nem ia � missa aos domingos; tudo que rendia a sua venda e mais a quitanda seguia direitinho para a caixa econ�mica e da� ent�o para o banco. Tanto assim que, um ano depois da aquisi��o da crioula, indo em hasta p�blica algumas bra�as de terra situadas ao fundo da taverna, arrematou-as logo e tratou, sem perda de tempo, de construir tr�s casinhas de porta e janela.

Que milagres de esperteza e de economia n�o realizou ele nessa constru��o! Servia de pedreiro, amassava e carregava barro, quebrava pedra; pedra, que o velhaco, fora de horas, junto com a amiga, furtavam � pedreira do fundo, da mesma forma que subtraiam o material das casas em obra que havia por ali perto.

Estes furtos eram feitos com todas as cautelas e sempre coroados do melhor sucesso, gra�as � circunst�ncia de que nesse tempo a pol�cia n�o se mostrava muito por aquelas alturas. Jo�o Rom�o observava durante o dia quais as obras em que ficava material para o dia seguinte, e � noite l� estava ele rente, mais a Bertoleza, a removerem t�buas, tijolos, telhas, sacos de cal, para o meio da rua, com tamanha habilidade que se n�o ouvia vislumbre de rumor. Depois, um tomava uma carga e partia para casa, enquanto o outro ficava de alcat�ia ao lado do resto, pronto a dar sinal, em caso de perigo; e, quando o que tinha ido voltava, seguia ent�o o companheiro, carregado por sua vez.

Nada lhes escapava, nem mesmo as escadas dos pedreiros, os cavalos de pau, o banco ou a ferramenta dos marceneiros.

E o fato � que aquelas tr�s casinhas, t�o engenhosamente constru�das, foram o ponto de partida do grande corti�o de S�o Rom�o.

Hoje quatro bra�as de terra, amanh� seis, depois mais outras, ia o vendeiro conquistando todo o terreno que se estendia pelos fundos da sua bodega; e, � propor��o que o conquistava, reproduziam-se os quartos e o n�mero de moradores.

Sempre em mangas de camisa, sem domingo nem dia santo, n�o perdendo nunca a ocasi�o de assenhorear-se do alheio, deixando de pagar todas as vezes que podia e nunca deixando de receber, enganando os fregueses, roubando nos

pesos e nas medidas, comprando por dez r�is de mel coado o que os escravos furtavam da casa dos seus senhores, apertando cada vez mais as pr�prias despesas, empilhando priva��es sobre priva��es, trabalhando e mais a amiga como uma junta de bois, Jo�o Rom�o veio afinal a comprar uma boa parte da bela pedreira, que ele, todos os dias, ao cair da tarde, assentado um instante � porta da venda, contemplava de longe com um resignado olhar de cobi�a.

P�s l� seis homens a quebrarem pedra e outros seis a fazerem lajedos e paralelep�pedos, e ent�o principiou a ganhar em grosso, t�o em grosso que, dentro de ano e meio, arrematava j� todo o espa�o compreendido entre as suas casinhas e a pedreira, isto �, umas oitenta bra�as de fundo sobre vinte de frente em plano enxuto e magn�fico para construir.

Justamente por essa ocasi�o vendeu-se tamb�m um sobrado que ficava � direita da venda, separado desta apenas por aquelas vinte bra�as; de sorte que todo o flanco esquerdo do pr�dio, coisa de uns vinte e tantos metros, despejava para o terreno do vendeiro as suas nove janelas de peitoril. Comprou-o um tal Miranda, negociante portugu�s, estabelecido na Rua do Hosp�cio com uma loja de fazendas por atacado. Corrida uma limpeza geral no casar�o, mudar-se-ia ele para l� com a fam�lia, pois que a mulher, Dona Estela, senhora pretensiosa e com fuma�as de nobreza, j� n�o podia suportar a resid�ncia no centro da cidade, como tamb�m sua menina, a Zulmirinha, crescia muito p�lida e precisava de largueza para enrijar e tomar corpo.

Isto foi o que disse o Miranda aos colegas, por�m a verdadeira causa da mudan�a estava na necessidade, que ele reconhecia urgente, de afastar Dona Estela do alcance dos seus caixeiros. Dona Estela era uma mulherzinha levada da breca: achava-se casada havia treze anos e durante esse tempo dera ao marido toda sorte de desgostos. Ainda antes de terminar o segundo ano de matrim�nio, o Miranda pilhou-a em flagrante delito de adult�rio; ficou furioso e o seu primeiro impulso foi de mand�-la para o diabo junto com o c�mplice; mas a sua casa comercial garantia-se com o dote que ela trouxera, uns oitenta contos em pr�dios e a��es da divida publica, de que se utilizava o desgra�ado tanto quanto lhe permitia o regime dotal. Al�m de que, um rompimento brusco seria obra para esc�ndalo, e, segundo a sua opini�o, qualquer esc�ndalo dom�stico ficava muito mal a um negociante de certa ordem. Prezava, acima de tudo, a sua posi��o social e tremia s� com a id�ia de ver-se novamente pobre, sem recursos e sem coragem para recome�ar a vida, depois de se haver habituado a umas tantas regalias e afeito � hombridade de portugu�s rico que j� n�o tem p�tria na Europa.

Acovardado defronte destes racioc�nios, contentou-se com uma simples separa��o de leitos, e os dois passaram a dormir em quartos separados. N�o comiam juntos, e mal trocavam entre si uma ou outra palavra constrangida, quando qualquer inesperado acaso os reunia a contragosto.

Odiavam-se. Cada qual sentia pelo outro um profundo desprezo, que pouco a pouco se foi transformando em repugn�ncia completa. O nascimento de Zulmira veio agravar ainda mais a situa��o; a pobre crian�a, em vez de servir de elo aos dois infelizes, foi antes um novo isolador que se estabeleceu entre eles. Estela amava-a menos do que lhe pedia o instinto materno por sup�-la filha do marido, e este a detestava porque tinha convic��o de n�o ser seu pai.

Uma bela noite, por�m, o Miranda, que era homem de sangue esperto e or�ava ent�o pelos seus trinta e cinco anos, sentiu-se em insuport�vel estado de lubricidade. Era tarde j� e n�o havia em casa alguma criada que lhe pudesse valer. Lembrou-se da mulher, mas repeliu logo esta id�ia com escrupulosa repugn�ncia. Continuava a odi�-la. Entretanto este mesmo fato de obriga��o em que ele se colocou de n�o servir-se dela, a responsabilidade de desprez�-la, como que ainda mais lhe assanhava o desejo da carne, fazendo da esposa infiel um fruto proibido. Afinal, coisa singular, posto que moralmente nada diminu�sse a sua repugn�ncia pela perjura, foi ter ao quarto dela.

A mulher dormia a sono solto. Miranda entrou p� ante p� e aproximou-se da cama. �Devia voltar!... pensou. N�o lhe ficava bem aquilo!...� Mas o sangue latejava-lhe, reclamando-a. Ainda hesitou um instante, im�vel, a contempl�-la no seu desejo.

Estela, como se o olhar do marido lhe apalpasse o corpo, torceu-se sobre o quadril da esquerda, repuxando com as coxas o len�ol para a frente e patenteando uma nesga de nudez estofada e branca. O Miranda n�o p�de resistir, atirou-se contra ela, que, num pequeno sobressalto, mais de surpresa que de revolta, desviou-se, tornando logo e enfrentando com o marido. E deixou-se empolgar pelos rins, de olhos fechados, fingindo que continuava a dormir, sem a menor consci�ncia de tudo aquilo.

Ah! ela contava como certo que o esposo, desde que n�o teve coragem de separar-se de casa, havia, mais cedo ou mais tarde, de procur�-la de novo. Conhecia-lhe o temperamento, forte para desejar e fraco para resistir ao desejo.

Consumado o delito, o honrado negociante sentiu-se tolhido de vergonha e arrependimento. N�o teve animo de dar palavra, e retirou-se tristonho e murcho para o seu quarto de desquitado.

Oh! como lhe do�a agora o que acabava de praticar na cegueira da sua sensualidade.

- Que cabe�ada!... dizia ele agitado. Que formid�vel cabe�ada!...

No dia seguinte, os dois viram-se e evitaram-se em sil�ncio, como se nada de extraordin�rio houvera entre eles acontecido na v�spera. Dir-se-ia at� que, depois daquela ocorr�ncia, o Miranda sentia crescer o seu �dio contra a esposa. E, � noite desse mesmo dia, quando se achou sozinho na sua cama estreita, jurou mil vezes aos seus brios nunca mais, nunca mais, praticar semelhante loucura.

Mas, da� a um m�s, o pobre homem, acometido de um novo acesso de lux�ria, voltou ao quarto da mulher.

Estela recebeu-o desta vez como da primeira, fingindo que n�o acordava; na ocasi�o, por�m, em que ele se apoderava dela febrilmente, a leviana, sem se poder conter, soltou-lhe em cheio contra o rosto uma gargalhada que a custo sopeava. O pobre-diabo desnorteou, deveras escandalizado, soerguendo-se, brusco, num estremunhamento de son�mbulo acordado com viol�ncia.

A mulher percebeu a situa��o e n�o lhe deu tempo para fugir; passou-lhe r�pido as pernas por cima e, grudando-se-lhe ao corpo, cegou-o com uma metralhada de beijos.

N�o se falaram.

Miranda nunca a tivera, nem nunca a vira, assim t�o violenta no prazer. Estranhou-a. Afigurou-se-lhe estar nos bra�os de uma amante apaixonada: descobriu nela o capitoso encanto com que nos embebedam as cortes�s amestradas na ci�ncia do gozo ven�reo. Descobriu-lhe no cheiro da pele e no cheiro dos cabelos perfumes que nunca lhe sentira; notou-lhe outro h�lito, outro som nos gemidos e nos suspiros. E gozou-a, gozou-a loucamente, com del�rio, com verdadeira satisfa��o de animal no cio.

E ela tamb�m, ela tamb�m gozou, estimulada por aquela circunst�ncia picante do ressentimento que os desunia; gozou a desonestidade daquele ato que a ambos acanalhava aos olhos um do outro; estorceu-se toda, rangendo os dentes, grunhindo, debaixo daquele seu inimigo odiado, achando-o tamb�m agora, como homem, melhor que nunca, sufocando-o nos seus bra�os nus, metendo-lhe pela boca a l�ngua �mida e em brasa. Depois, um arranco de corpo inteiro, com um solu�o gutural e estrangulado, arquejante e convulsa, estatelou-se num abandono de pernas e bra�os abertos, a cabe�a para o lado, os olhos moribundos e chorosos, toda ela agonizante, como se a tivessem crucificado na cama.

A partir dessa noite, da qual s� pela manh� o Miranda se retirou do quarto da mulher, estabeleceu-se entre eles o h�bito de uma felicidade sexual, t�o completa como ainda n�o a tinham desfrutado, posto que no intimo de cada um persistisse contra o outro a mesma repugn�ncia moral em nada enfraquecida.

Durante dez anos viveram muito bem casados; agora, por�m, tanto tempo depois da primeira infidelidade conjugal, e agora que o negociante j� n�o era acometido t�o freq�entemente por aquelas crises que o arrojavam fora de horas ao dormit�rio de Dona Estela; agora, eis que a leviana parecia disposta a reincidir na culpa, dando corda aos caixeiros do marido, na ocasi�o em que estes subiam para almo�ar ou jantar.

Foi por isso que o Miranda comprou o pr�dio vizinho a Jo�o Rom�o.

A casa era boa; seu �nico defeito estava na escassez do quintal; mas para isso havia rem�dio: com muito pouco compravam-se umas dez bra�as daquele terreno do fundo que ia at� � pedreira, e mais uns dez ou quinze palmos do lado em que ficava a venda.

Miranda foi logo entender-se com o Rom�o e prop�s-lhe neg�cio. O taverneiro recusou formalmente.

Miranda insistiu.

- O senhor perde seu tempo e seu latim! retrucou o amigo de Bertoleza. Nem s� n�o cedo uma polegada do meu terreno, como ainda lhe compro, se mo quiser vender, aquele peda�o que lhe fica ao fundo da casa!

- O quintal?

- � exato.

- Pois voc� quer que eu fique sem ch�cara, sem jardim, sem nada?

- Para mim era de vantagem...

- Ora, deixe-se disso, homem, e diga l� quanto quer pelo que lhe propus.

- J� disse o que tinha a dizer.

- Ceda-me ent�o ao menos as dez bra�as do fundo.

- Nem meio palmo!

- Isso � maldade de sua parte, sabe? Eu, se fa�o tamanho empenho, � pela minha pequena, que precisa, coitada, de um pouco de espa�o para alargar-se.

- E eu n�o cedo, porque preciso do meu terreno!

- Ora qual! Que diabo pode l� voc� fazer ali? Uma porcaria de um peda�o de terreno quase grudado ao morro e aos fundos de minha casa! quando voc�, ali�s, disp�e de tanto espa�o ainda!

- Hei de lhe mostrar se tenho ou n�o o que fazer ali!

- � que voc� � teimoso! Olhe, se me cedesse as dez bra�as do fundo, a sua parte ficaria cortada em linha reta at� � pedreira, e escusava eu de ficar com uma aba de terreno alheio a meter-se pelo meu. Quer saber? n�o amuro o quintal sem voc� decidir-se!

- Ent�o ficar� com o quintal para sempre sem muro, porque o que tinha a dizer j� disse!

- Mas, homem de Deus, que diabo! pense um pouco! Voc� ali n�o pode construir nada! Ou pensar� que lhe deixarei abrir janelas sobre o meu quintal!...

- N�o preciso abrir janelas sobre o quintal de ningu�m!

- Nem tampouco lhe deixarei levantar parede, tapando-me as janelas da esquerda!

- N�o preciso levantar parede desse lado...

- Ent�o que diabo vai voc� fazer de todo este terreno?...

- Ah! isso agora � c� comigo!... O que for soar�!

- Pois creia que se arrepende de n�o me ceder o terreno!...

- Se me arrepender, paci�ncia! S� lhe digo � que muito mal se sair� quem quiser meter-se c� com a minha vida!

- Passe bem!

- Adeus!

Travou-se ent�o uma lata renhida e surda entre o portugu�s negociante de fazendas por atacado e o portugu�s negociante de secos e molhados. Aquele n�o se resolvia a fazer o muro do quintal, sem ter alcan�ado o peda�o de terreno que o separava do morro; e o outro, por seu lado, n�o perdia a esperan�a de apanhar-lhe ainda, pelo menos, duas ou tr�s bra�as aos fundos da casa; parte esta que, conforme os seus c�lculos, valeria ouro, uma vez realizado o grande projeto que ultimamente o trazia preocupado - a cria��o de uma estalagem em ponto enorme, uma estalagem monstro, sem exemplo, destinada a matar toda aquela miu�alha de corti�os que alastravam por Botafogo.

Era este o seu ideal. Havia muito que Jo�o Rom�o vivia exclusivamente para essa id�ia; sonhava com ela todas as noites; comparecia a todos os leil�es de materiais de constru��o; arrematava madeiramentos j� servidos; comprava telha em segunda m�o; fazia pechinchas de cal e tijolos; o que era tudo depositado no seu extenso ch�o vazio, cujo aspecto tomava em breve o car�ter estranho de uma enorme barricada, tal era a variedade dos objetos que ali se apinhavam acumulados: t�buas e sarrafos, troncos de �rvore, mastros de navio, caibros, restos de carro�as, chamin�s de barro e de ferro, fog�es desmantelados, pilhas e pilhas de tijolos de todos os feitios, barricas de cimento, montes de areia e terra vermelha, aglomera��es de telhas velhas, escadas partidas, dep�sitos de cal, o diabo enfim; ao que ele, que sabia perfeitamente como essas coisas se furtavam, resguardava, soltando � noite um formid�vel c�o de fila.

Este c�o era pretexto de eternas resingas com a gente do Miranda, a cujo quintal ningu�m de casa podia descer, depois das dez horas da noite, sem correr o risco de ser assaltado pela fera.

- � fazer o muro! dizia o Jo�o Rom�o, sacudindo os ombros.

- N�o fa�o! replicava o outro. Se ele � quest�o de capricho eu tamb�m tenho capricho!

Em compensa��o, n�o caia no quintal do Miranda galinha ou frango, fugidos do cercado do vendeiro, que n�o levasse imediato sumi�o. Jo�o Rom�o protestava contra o roubo em termos violentos, jurando vingan�as terr�veis, falando em dar tiros.

- Pois � fazer um muro no galinheiro! repontava o marido de Estela.

Da� a alguns meses, Jo�o Rom�o, depois de tentar um derradeiro esfor�o para conseguir algumas bra�as do quintal do vizinho, resolveu principiar as obras da estalagem.

- Deixa estar, conversava ele na cama com a Bertoleza; deixa estar que ainda lhe hei de entrar pelos fundos da casa, se � que n�o lhe entre pela frente! Mais cedo ou mais tarde como-lhe, n�o duas bra�as, mas seis, oito, todo o quintal e at� o pr�prio sobrado talvez!

E dizia isto com uma convic��o de quem tudo pode e tudo espera da sua perseveran�a, do seu esfor�o inquebrant�vel e da fecundidade prodigiosa do seu dinheiro, dinheiro que s� lhe saia das unhas para voltar multiplicado.

Desde que a febre de possuir se apoderou dele totalmente, todos os seus atos, todos, fosse o mais simples, visavam um interesse pecuni�rio. S� tinha uma preocupa��o: aumentar os bens. Das suas hortas recolhia para si e para a companheira os piores legumes, aqueles que, por maus, ningu�m compraria; as suas galinhas produziam muito e ele n�o comia um ovo, do que no entanto gostava imenso; vendia-os todos e contentava-se com os restos da comida dos trabalhadores. Aquilo j� n�o era ambi��o, era uma mol�stia nervosa, uma loucura, um desespero de acumular; de reduzir tudo a moeda. E seu tipo baixote, socado, de cabelos � escovinha, a barba sempre por fazer, ia e vinha da pedreira para a venda, da venda �s hortas e ao capinzal, sempre em mangas de camisa, de tamancos, sem meias, olhando

para todos os lados, com o seu eterno ar de cobi�a, apoderando-se, com os olhos, de tudo aquilo de que ele n�o podia apoderar-se logo com as unhas.

Entretanto, a rua l� fora povoava-se de um modo admir�vel. Constru�a-se mal, por�m muito; surgiam chal�s e casinhas da noite para o dia; subiam os alugu�is; as propriedades dobravam de valor. Montara-se uma f�brica de massas italianas e outra de velas, e os trabalhadores passavam de manh� e �s Ave-Marias, e a maior parte deles ia comer � casa de pasto que Jo�o Rom�o arranjara aos fundos da sua varanda. Abriram-se novas tavernas; nenhuma, por�m, conseguia ser t�o afreguesada como a dele. Nunca o seu negocio fora t�o bem, nunca o fin�rio vendera tanto; vendia mais agora, muito mais, que nos anos anteriores. Teve at� de admitir caixeiros. As mercadorias n�o lhe paravam nas prateleiras; o balc�o estava cada vez mais lustroso, mais gasto. E o dinheiro a pingar, vint�m por vint�m, dentro da gaveta, e a escorrer da gaveta para a barra, aos cinq�enta e aos cem mil-r�is, e da burra para o banco, aos contos e aos contos.

Afinal, j� lhe n�o bastava sortir o seu estabelecimento nos armaz�ns fornecedores; come�ou a receber alguns g�neros diretamente da Europa: o vinho, por exemplo, que ele dantes comprava aos quintos nas casas de atacado, vinha-lhe agora de Portugal �s pipas, e de cada uma fazia tr�s com �gua e cacha�a; e despachava faturas de barris de manteiga, de caixas de conserva, caix�es de f�sforos, azeite, queijos, lou�a e muitas outras mercadorias.

Criou armaz�ns para dep�sito, aboliu a quitanda e transferiu o dormit�rio, aproveitando o espa�o para ampliar a venda, que dobrou de tamanho e ganhou mais duas portas.

J� n�o era uma simples taverna, era um bazar em que se encontrava de tudo, objetos de armarinho, ferragens, porcelanas, utens�lios de escrit�rio, roupa de riscado para os trabalhadores, fazenda para roupa de mulher, chap�us de palha pr�prios para o servi�o ao sol, perfumarias baratas, pentes de chifre, len�os com versos de amor, e an�is e brincos de metal ordin�rio.

E toda a gentalha daquelas redondezas ia cair l�, ou ent�o ali ao lado, na casa de pasto, onde os oper�rios das f�bricas e os trabalhadores da pedreira se reuniam depois do servi�o, e ficavam bebendo e conversando at� as dez horas da noite, entre o espesso fumo dos cachimbos, do peixe frito em azeite e dos lampi�es de querosene.

Era Jo�o Rom�o quem lhes fornecia tudo, tudo, at� dinheiro adiantado, quando algum precisava. Por ali n�o se encontrava jornaleiro, cujo ordenado n�o fosse inteirinho parar �s m�os do velhaco. E sobre este cobre, quase sempre emprestado aos tost�es, cobrava juros de oito por cento ao m�s, um pouco mais do que levava aos que garantiam a divida com penhores de ouro ou prata.

N�o obstante, as casinhas do corti�o, � propor��o que se atamancavam, enchiam-se logo, sem mesmo dar tempo a que as tintas secassem. Havia grande avidez em alug�-las; aquele era o melhor ponto do bairro para a gente do trabalho. Os empregados da pedreira preferiam todos morar l�, porque ficavam a dois passos da obriga��o.

O Miranda rebentava de raiva.

- Um corti�o! exclamava ele, possesso. Um corti�o! Maldito seja aquele vendeiro de todos os diabos! Fazer-me um corti�o debaixo das janelas!... Estragou-me a casa, o malvado!

E vomitava pragas, jurando que havia de vingar-se, e protestando aos berros contra o p� que lhe invadia em ondas as salas, e contra o infernal baralho dos pedreiros e carpinteiros que levavam a martelar de sol a sol.

O que ali�s n�o impediu que as casinhas continuassem a surgir, uma ap�s outra, e fossem logo se enchendo, a estenderem-se unidas por ali a fora, desde a venda at� quase ao morro, e depois dobrassem para o lado do Miranda e avan�assem sobre o quintal deste, que parecia amea�ado por aquela serpente de pedra e cal.

O Miranda mandou logo levantar o muro.

Nada! aquele dem�nio era capaz de invadir-lhe a casa at� a sala de visitas!

E os quartos do corti�o pararam enfim de encontro ao muro do negociante, formando com a continua��o da casa deste um grande quadrilongo, esp�cie de p�tio de quartel, onde podia formar um batalh�o.

Noventa e cinco casinhas comportou a imensa estalagem.

Prontas, Jo�o Rom�o mandou levantar na frente, nas vinte bra�as que separavam a venda do sobrado do Miranda, um grosso muro de dez palmos de altura, coroado de cacos de vidro e fundos de garrafa, e com um grande port�o no centro, onde se dependurou uma lanterna de vidra�as vermelhas, por cima de uma tabuleta amarela, em que se lia o seguinte, escrito a tinta encarnada e sem ortografia:

�Estalagem de S�o Rom�o. Alugam-se casinhas e tinas para lavadeiras�.

As casinhas eram alugadas por m�s e as tinas por dia; tudo pago adiantado. O pre�o de cada tina, metendo a �gua, quinhentos r�is; sab�o � parte. As moradoras do corti�o tinham prefer�ncia e n�o pagavam nada para lavar.

Gra�as � abund�ncia da �gua que l� havia, como em nenhuma outra parte, e gra�as ao muito espa�o de que se dispunha no corti�o para estender a roupa, a concorr�ncia �s tinas n�o se fez esperar; acudiram lavadeiras de todos os

pontos da cidade, entre elas algumas vindas de bem longe. E, mal vagava uma das casinhas, ou um quarto, um canto onde coubesse um colch�o, surgia uma nuvem de pretendentes a disput�-los.

E aquilo se foi constituindo numa grande lavanderia, agitada e barulhenta, com as suas cercas de varas, as suas hortali�as verdejantes e os seus jardinzinhos de tr�s e quatro palmos, que apareciam como manchas alegres por entre a negrura das limosas tinas transbordantes e o rev�rbero das claras barracas de algod�o cru, armadas sobre os lustrosos bancos de lavar. E os gotejantes jiraus, cobertos de roupa molhada, cintilavam ao sol, que nem lagos de metal branco.

E naquela terra encharcada e fumegante, naquela umidade quente e lodosa, come�ou a minhocar, a esfervilhar, a crescer, um mundo, uma coisa viva, uma gera��o, que parecia brotar espont�nea, ali mesmo, daquele lameiro, e multiplicar-se como larvas no esterco.

II

Durante dois anos o corti�o prosperou de dia para dia, ganhando for�as, socando-se de gente. E ao lado o Miranda assustava-se, inquieto com aquela exuber�ncia brutal de vida, aterrado defronte daquela floresta implac�vel que lhe crescia junto da casa, por debaixo das janelas, e cujas ra�zes, piores e mais grossas do que serpentes, minavam por toda a parte, amea�ando rebentar o ch�o em torno dela, rachando o solo e abalando tudo.

Posto que l� na Rua do Hosp�cio os seus neg�cios n�o corressem mal, custava-lhe a sofrer a escandalosa fortuna do vendeiro �aquele tipo! um miser�vel, um sujo, que n�o pusera nunca um palet�, e que vivia de cama e mesa com uma negra!�

� noite e aos domingos ainda mais recrudescia o seu azedume, quando ele, recolhendo-se fatigado do servi�o, deixava-se ficar estendido numa pregui�osa, junto � mesa da sala de jantar, e ouvia, a contragosto, o grosseiro rumor que vinha da estalagem numa exala��o forte de animais cansados. N�o podia chegar � janela sem receber no rosto aquele bafo, quente e sensual, que o embebedava com o seu fartum de bestas no coito.

E depois, fechado no quarto de dormir, indiferente e habituado �s torpezas carnais da mulher, isento j� dos primitivos sobressaltos que lhe faziam, a ele, ferver o sangue e perder a tramontana, era ainda a prosperidade do vizinho o que lhe obsedava o esp�rito, enegrecendo-lhe a alma com um feio ressentimento de despeito.

Tinha inveja do outro, daquele outro portugu�s que fizera fortuna, sem precisar roer nenhum chifre; daquele outro que, para ser mais rico tr�s vezes do que ele, n�o teve de casar com a filha do patr�o ou com a bastarda de algum fazendeiro fregu�s da casa!

Mas ent�o, ele Miranda, que se supunha a �ltima express�o da ladinagem e da esperteza; ele, que, logo depois do seu casamento, respondendo para Portugal a um ex-colega que o felicitava, dissera que o Brasil era uma cavalgadura carregada de dinheiro, cujas r�deas um homem fino empolgava facilmente; ele, que se tinha na conta de invenc�vel matreiro, n�o passava afinal de um peda�o de asno comparado com o seu vizinho! Pensara fazer-se senhor do Brasil e fizera-se escravo de uma brasileira mal-educada e sem escr�pulos de virtude! Imaginara-se talhado para grandes conquistas, e n�o passava de uma vitima rid�cula e sofredora!... Sim! no fim de contas qual fora a sua �frica?... Enriquecera um pouco, � verdade, mas como? a que pre�o? hipotecando-se a um diabo, que lhe trouxera oitenta contos de r�is, mas incalcul�veis milh�es de desgostos e vergonhas! Arranjara a vida, sim, mas teve de aturar eternamente uma mulher que ele odiava! E do que afinal lhe aproveitar tudo isso? Qual era afinal a sua grande exist�ncia? Do inferno da casa para o purgat�rio do trabalho e vice-versa! Invej�vel sorte, n�o havia d�vida!

Na dolorosa incerteza de que Zulmira fosse sua filha, o desgra�ado nem sequer gozava o prazer de ser pai. Se ela, em vez de nascer de Estela, fora uma enjeitadinha recolhida por ele, � natural que a amasse e ent�o a vida lhe correria de outro modo; mas naquelas condi��es, a pobre crian�a nada mais representava que o documento vivo do ludibrio materno, e o Miranda estendia at� � inocentezinha d'�frica o �dio que sustentava contra a esposa.

Uma espiga a tal da sua vida!

- Fui uma besta! resumiu ele, em voz alta, apeando-se da cama, onde se havia recolhido inutilmente.

E p�s-se a passear no quarto sem vontade de dormir, sentindo que a febre daquela inveja lhe estorricava os miolos.

Feliz e esperto era o Jo�o Rom�o! esse, sim, senhor! Para esse � que havia de ser a vida!... Filho da m�e, que estava hoje t�o livre e desembara�ado como no dia em que chegou da terra sem um vint�m de seu! esse, sim, que era mo�o e podia ainda gozar muito, porque quando mesmo viesse a casar e a mulher lhe sa�sse uma outra Estela era s� mand�-la para o diabo com um pontap�! Podia faz�-lo! Para esse � que era o Brasil!

- Fui uma besta! repisava ele sem conseguir conformar-se com a felicidade do vendeiro. Uma grand�ssima! No fim de contas que diabo possuo eu?... Uma casa de neg�cio, da qual n�o posso separar-me sem comprometer o que l� est� enterrado! um capital metido numa rede de transa��es que n�o se liquidam nunca, e cada vez mais se complicam e mais me grudam ao estupor desta terra, onde deixarei a casca! Que tenho de meu, se a alma do meu cr�dito � o dote, que me trouxe aquela sem-vergonha e que a ela me prende como a peste da casa comercial me prende a esta Costa d��frica?

Foi da supura��o f�tida destas id�ias que se formou no cora��o vazio do Miranda um novo ideal - o t�tulo. Faltando-lhe temperamento pr�prio para os v�cios fortes que enchem a vida de um homem; sem fam�lia, a quem amar e sem imagina��o para poder gozar com as prostitutas, o n�ufrago agarrou-se �quela t�bua, como um agonizante, consciente da morte, que se apega � esperan�a de uma vida futura. A vaidade de Estela, que a principio lhe tirava dos l�bios incr�dulos sorrisos de mofa, agora lhe comprazia � farta. Procurou capacitar-se de que ela com efeito herdara sangue nobre, que ele, por sua vez, se n�o o tinha herdado, trouxera-o por natureza pr�pria, o que devia valer mais ainda; e desde ent�o principiou a sonhar com um baronato, fazendo disso o objeto querido da sua exist�ncia, muito satisfeito no intimo por ter afinal descoberto uma coisa em que podia empregar dinheiro, sem ter, nunca mais, de restitu�-lo � mulher, nem ter de deix�-lo a pessoa alguma.

Semelhante preocupa��o modificou-o em extremo. Deu logo para fingir-se escravo das conveni�ncias, afetando escr�pulos sociais, empertigando-se quanto podia e disfar�ando a sua inveja pelo vizinho com um desdenhoso ar de superioridade condescendente. Ao passar-lhe todos os dias pela venda, cumprimentava-o com prote��o, sorrindo sem rir e fechando logo a cara em seguida, muito s�rio.

Dados os primeiros passos para a compra do titulo abriu a casa e deu festas. A mulher, posto que lhe apontassem j� os cabelos brancos, rejubilou com isso.

Zulmira tinha ent�o doze para treze anos e era o tipo acabado da fluminense; p�lida, magrinha, com pequeninas manchas roxas nas mucosas do nariz, das p�lpebras e dos l�bios, faces levemente pintalgadas de sardas. Respirava o tom �mido das flores noturnas, uma brancura fria de magn�lia; cabelos castanho-claros, m�os quase transparentes, unhas moles e curtas, como as da m�e, dentes pouco mais claros do que a c�tis do rosto, p�s pequeninos, quadril estreito mas os olhos grandes, negros, vivos e maliciosos.

Por essa �poca, justamente, chegava de Minas, recomendado ao pai dela, o filho de um fazendeiro important�ssimo que dava belos lucros � casa comercial de Miranda e que era talvez o melhor fregu�s que este possu�a no interior.

O rapaz chamava-se Henrique, tinha quinze anos e vinha terminar na corte alguns preparat�rios que lhe faltavam para entrar na Academia de Medicina. Miranda hospedou-o no seu sobrado da Rua do Hosp�cio mas o estudante queixou-se, no fim de alguns dias, de que ai ficava mal acomodado, e o negociante, a quem n�o convinha desagradar-lhe, carregou com ele para a sua resid�ncia particular de Botafogo.

Henrique era bonitinho, cheio de acanhamentos, com umas delicadezas de menina. Parecia muito cuidadoso dos seus estudos e t�o pouco extravagante e gastador, que n�o despendia um vint�m fora das necessidade de primeira urg�ncia. De resto, a n�o ser de manh� para as aulas, que ia sempre com o Miranda, n�o arredava p� de casa sen�o em companhia da fam�lia, deste. Dona Estela, no cabo de pouco tempo, mostrou por ele estima quase maternal e encarregou-se de tomar conta da sua mesada, mesada posta pelo negociante, visto que o Henriquinho tinha ordem franca do pai.

Nunca pedia dinheiro; quando precisava de qualquer coisa, reclamava-a de Dona Estela, que por sua vez encarregava o marido de compr�-la, sendo o objeto lan�ado na conta do fazendeiro com uma comiss�o de usur�rio. Sua hospedagem custava duzentos e cinq�enta mil-r�is por m�s, do que ele todavia n�o tinha conhecimento, nem queria ter. Nada lhe faltava, e os criados da casa o respeitavam como a um filho do pr�prio senhor.

� noite, �s vezes, quando o tempo estava bom, Dona Estela saia com ele, a filha e um moleque, o Valentim, a darem uma volta ate � praia e, em tendo convite para qualquer festa em casa das amigas, levava-o em sua companhia.

A criadagem da fam�lia, do Miranda compunha-se de Isaura, mulata ainda mo�a, moleirona e tola, que gastava todo o vintenzinho que pilhava em comprar capil� na venda de Jo�o Rom�o; uma negrinha virgem, chamada Leonor, muito ligeira e viva, lisa e seca como um moleque, conhecendo de orelha, sem lhe faltar um termo, a vasta tecnologia da obscenidade, e dizendo, sempre que os caixeiros ou os fregueses da taverna, s� para mexer com ela, lhe davam atraca��es: ��ia, que eu me queixo ao juiz de orfe!�, e finalmente o tal Valentim, filho de uma escrava que foi de Dona Estela e a quem esta havia alforriado.

A mulher do Miranda tinha por este moleque uma afei��o sem limites: dava-lhe toda a liberdade, dinheiro, presentes, levava-o consigo a passeio, trazia-o bem vestido e muita vez chegou a fazer ci�mes � filha, de t�o solicita que se mostrava com ele. Pois se a caprichosa senhora ralhava com Zulmira por causa do negrinho! Pois, se quando se queixavam os dois, um contra o outro, ela nunca dava raz�o � filha! Pois se o que havia de melhor na casa era para o Valentim! Pois, se quando foi este atacado de bexigas e o Miranda, apesar das s�plicas e dos protestos da esposa, mandou-o para um hospital, Dona Estela chorava todos os dias e durante a aus�ncia dele n�o tocou piano, nem cantou, nem mostrou os dentes a ningu�m? E o pobre Miranda, se n�o queria sofrer impertin�ncias da mulher e ouvir sensaborias defronte dos criados, tinha de dar ao moleque toda a considera��o e fazer-lhe humildemente todas as vontades.

Havia ainda, sob as telhas do negociante, um outro h�spede al�m do Henrique, o velho Botelho. Este, por�m, na qualidade de parasita.

Era um pobre-diabo caminhando para os setenta anos, antip�tico, cabelo branco, curto e duro, como escova, barba e bigode do mesmo teor; muito macilento, com uns �culos redondos que lhe aumentavam o tamanho da pupila e davam-lhe � cara uma express�o de abutre, perfeitamente de acordo com o seu nariz adunco e com a sua boca sem l�bios: viam-se-lhe ainda todos os dentes, mas, t�o gastos, que pareciam limados at� ao meio. Andava sempre de preto, com um guarda-chuva debaixo do bra�o e um chap�u de Braga enterrado nas orelhas. Fora em seu tempo empregado do com�rcio, depois corretor de escravos; contava mesmo que estivera mais de uma vez na �frica negociando negros por sua conta. Atirou-se muito �s especula��es; durante a guerra do Paraguai ainda ganhara forte, chegando a ser bem rico; mas a roda desandou e, de malogro em malogro, foi-lhe escapando tudo por entre as suas garras de ave de rapina. E agora, coitado, j� velho, comido de desilus�es, cheio de hemorr�idas, via-se totalmente sem recursos e vegetava �

sombra do Mirada, com quem por muitos anos trabalhou em rapaz, sob as ordens do mesmo patr�o, e de quem se conservara amigo, a principio por acaso e mais tarde por necessidade.

Devorava-o, noite e dia, uma implac�vel amargura, uma surda tristeza de vencido, um desespero impotente, contra tudo e contra todos, por n�o lhe ter sido poss�vel empolgar o mundo com as suas m�os hoje in�teis e tr�mulas. E, como o seu atual estado de mis�ria n�o lhe permitia abrir contra ningu�m o bico, desabafava vituperando as id�ias da �poca.

Assim, eram �s vezes muito quentes as sobremesas do Miranda, quando, entre outros assuntos palpitantes, vinha � discuss�o o movimento abolicionista que principiava a formar-se em torno da lei Rio Branco. Ent�o o Botelho ficava possesso e vomitava frases terr�veis, para a direita e para a esquerda, como quem dispara tiros sem fazer alvo, e vociferava impreca��es, aproveitando aquela v�lvula para desafogar o velho �dio acumulado dentro dele.

- Bandidos! berrava apopl�tico. C�fila de salteadores!

E o seu rancor irradiava-lhe dos olhos em setas envenenadas, procurando cravar-se em todas as brancuras e em todas as claridades. A virtude, a beleza, o talento, a mocidade, a for�a, a sa�de, e principalmente a fortuna, eis o que ele n�o perdoava a ningu�m, amaldi�oando todo aquele que conseguia o que ele n�o obtivera; que gozava o que ele n�o desfrutara; que sabia o que ele n�o aprendera. E, para individualizar o objeto do seu �dio, voltava-se contra o Brasil, essa terra que, na sua opini�o, s� tinha uma serventia: enriquecer os portugueses, e que, no entanto, o deixara, a ele, na pen�ria.

Seus dias eram consumidos do seguinte modo: acordava �s oito da manh�, lavava-se mesmo no quarto com uma toalha molhada em esp�rito de vinho; depois ia ler os jornais para a sala de jantar, � espera do almo�o; almo�ava e sala, tomava o bonde e ia direitinho para uma charutaria da Rua do Ouvidor, onde costumava ficar assentado at� �s horas do jantar, entretido a dizer mal das pessoas que passavam l� fora, defronte dele. Tinha a pretens�o de conhecer todo o Rio de Janeiro e os podres de cada um em particular. �s vezes, poucas, Dona Estela encarregava-o de fazer pequenas compras de armarinho, o que o Botelho desempenhava melhor que ningu�m? Mas a sua grande paix�o, o seu fraco, era a farda, adorava tudo que dissesse respeito a militarismo, posto que tivera sempre invenc�vel medo �s armas de qualquer esp�cie, mormente �s de fogo. N�o podia ouvir disparar perto de si uma espingarda, entusiasmava-se por�m com tudo que cheirasse a guerra; a presen�a de um oficial em grande uniforme tirava-lhe l�grimas de como��o; conhecia na ponta da l�ngua o que se referia � vida de quartel; distinguia ao primeiro lance de olhos o posto e o corpo a que pertencia qualquer soldado e, apesar dos seus achaques, era ouvir tocar na rua a corneta ou o tambor conduzindo o batalh�o, ficava logo no ar, e, muita vez, quando dava por si, fazia parte dos que acompanhavam a tropa. Ent�o, n�o tornava para casa enquanto os militares neo se recolhessem. Quase sempre voltava dessa loucura �s seis da tarde, mo�do a fazer d�, sem poder ter-se nas pernas, estrompado de marchar horas e horas ao som da m�sica de pancadaria. E o mais interessante � que ele, ao vir-lhe a rea��o, revoltava-se furioso contra o maldito comandante que o obrigava �quela estopada, levando o batalh�o por uma infinidade de ruas e fazendo de prop�sito o caminho mais longo.

- S� parece, lamentava-se ele, que a inten��o daquele malvado era dar-me cabo da pele! Ora vejam! Tr�s horas de marche-marche por uma soalheira de todos os diabos!

Uma das birras mais c�micas do Botelho era o seu �dio pelo Valentim. O moleque causava-lhe febre com as suas petul�ncias de mimalho, e, velhaco, percebendo quanto elas o irritavam, ainda mais abusava, seguro na prote��o de Dona Estela. O parasita de muito que o teria estrangulado, se n�o fora a necessidade de agradar � dona da casa.

Botelho conhecia as faltas de Estela como as palmas da pr�pria m�o. O Miranda mesmo, que o via em conta de amigo fiel, muitas e muitas vezes lhas confiara em ocasi�es desesperadas de desabafo, declarando francamente o quanto no intimo a desprezava e a raz�o por que n�o a punha na rua aos pontap�s. E o Botelho dava-lhe toda a raz�o; entendia tamb�m que os s�rios interesses comerciais estavam acima de tudo.

- Uma mulher naquelas condi��es, dizia ele convicto, representa nada menos que o capital, e um capital em caso nenhum a gente despreza! Agora, voc� o que devia era nunca chegar-se para ela...

- Ora! explicava o marido. Eu me sirvo dela como quem se serve de uma escarradeira!

O parasita, feliz por ver quanto o amigo aviltava a mulher, concordava em tudo plenamente, dando-lhe um carinhoso abra�o de admira��o. Mas por outro lado, quando ouvia Estela falar do marido, com infinito desd�m e at� com asco, ainda mais resplandecia de contente.

- Voc� quer saber? afirmava ela, eu bem percebo quanto aquele traste do senhor meu marido me detesta, mas isso tanto se me d� como a primeira camisa que vesti! Desgra�adamente para n�s, mulheres de sociedade, n�o podemos viver sem esposo, quando somos casadas; de forma que tenho de aturar o que me caiu em sorte, quer goste dele quer n�o goste! Juro-lhe, por�m, que, se consinto que o Miranda se chegue �s vezes para mim, � porque entendo que paga mais � pena ceder do que puxar discuss�o com uma besta daquela ordem!

O Botelho, com a sua encanecida experi�ncia do mundo, nunca transmitia a nenhum dos dois o que cada qual lhe dizia contra o outro; tanto assim que, certa ocasi�o, recolhendo-se � casa incomodado, em hora que n�o era do seu

costume, ouviu, ao passar pelo quintal, sussurros de vozes abafadas que pareciam vir de um canto afogado de verdura, onde em geral n�o ia ningu�m.

Encaminhou-se para l� em bicos de p�s e, sem ser percebido, descobriu Estela entalada entre o muro e o Henrique. Deixou-se ficar espiando, sem tugir nem mugir, e, s� quando os dois se separaram, foi que ele se mostrou.

A senhora soltou um pequeno grito, e o rapaz, de vermelho que estava, fez-se cor de cera; mas o Botelho procurou tranq�iliz�-los, dizendo em voz amiga e misteriosa:

- Isso � uma imprud�ncia o que voc�s est�o fazendo!... Estas coisas n�o � deste modo que se arranjam! Assim como fui eu, podia ser outra pessoa... Pois numa casa em que h� tantos quartos, � l� preciso vir meterem-se neste canto do quintal?...

- N�s n�o est�vamos fazendo nada! disse Estela, recuperando o sangue-frio.

- Ah! tornou o velho, aparentando sumo respeito: ent�o desculpe, pensei que estivessem... E olhe que, se assim fosse, para mim seria o mesmo, porque acho isso a coisa mais natural do mundo e entendo que desta vida a gente s� leva o que come!... Se vi, creia, foi como se nada visse, porque nada tenho a cheirar com a vida de cada um!... A senhora est� mo�a, est� na for�a dos anos; seu marido n�o a satisfaz, � justo que o substitua por outro! Ah! isto � o mundo, e, se � torto, n�o fomos n�s que o fizemos torto!... At� certa idade todos temos dentro um bichinho-carpinteiro, que � preciso matar, antes que ele nos mate! N�o lhes doam as m�os!... apenas acho que, para outra vez, devem ter um pouquinho mais de cuidado e...

- Est� bom! basta! ordenou Estela.

- Perd�o! eu, se digo isto, � para deix�-los bem tranq�ilos a meu respeito. N�o quero, nem por sombra, que se persuadam de que...

O Henrique atalhou, com a voz ainda comovida:

- Mas, acredite, seu Botelho, que...

O velho interrompeu-o tamb�m por sua vez, passando-lhe a m�o no ombro e afastando-o consigo:

- N�o tenha receio, que n�o o comprometerei, menino!

E, como j� estivessem distantes de Estela, segredou-lhe em tom protetor:

- N�o torne a fazer isto assim, que voc� se estraga... Olhe como lhe tremem as pernas!

Dona Estela acompanhou-os a distancia, vagarosamente, afetando preocupa��o em compor um ramalhete, cujas flores ela ia colhendo com muita gra�a, ora toda vergada sobre as plantas rasteiras, ora pondo-se na pontinha dos p�s para alcan�ar os heliotr�pios e os manac�s.

Henrique seguiu o Botelho at� ao quarto deste, conversando sem mudar de assunto.

- Voc� ent�o n�o fala nisto, hein? Jura? perguntou-lhe.

O velho tinha j� declarado, a rir, que os pilhara em flagrante e que ficara bom tempo � espreita.

- Falar o qu�, seu tolo?... Pois ent�o quem pensa voc� que eu sou?... S� abrirei o bico se voc� me der motivo para isso, mas estou convencido que n�o dar�... Quer saber? eu at� simpatizo muito com voc�, Henrique! Acho que voc� � um excelente menino, uma flor! E digo-lhe mais: hei de proteger os seus neg�cios com Dona Estela...

Falando assim, tinha-lhe tomado as m�os e afagava-as.

- Olhe, continuou, acariciando-o sempre; n�o se meta com donzelas, entende?... S�o o diabo! Por d� c� aquela palha fica um homem em apuros! agora quanto �s outras, papo com elas! N�o mande nenhuma ao vig�rio, nem lhe doa a cabe�a, porque, no fim de contas, nas circunst�ncias de Dona Estela, � at� um grande servi�o que voc� lhe faz! Meu rico amiguinho, quando uma mulher j� passou dos trinta e pilha a jeito um rapazito da sua idade, � como se descobrisse ouro em p�! sabe-lhe a gaitas! Fique ent�o sabendo de que n�o � s� a ela que voc� faz o obs�quio, mas tamb�m ao marido: quanto mais escovar-lhe voc� a mulher, melhor ela ficar� de g�nio, e por conseguinte melhor ser� para o pobre homem, coitado! que tem j� bastante com que se aborrecer l� por baixo, com os seus neg�cios, e precisa de um pouco de descanso quando volta do servi�o e mete-se em casa! Escove-a, escove-a! que a por� macia que nem veludo! O que � preciso � muito juizinho, percebe? N�o fa�a outra crian�ada como a de hoje e continue para diante, n�o s� com ela, mas com todas as que lhe ca�rem debaixo da asa! V� passando! menos as de casa aberta, que isso � perigoso por causa das mol�stias; nem tampouco donzelas! N�o se meta com a Zulmira! E creia que lhe falo assim, porque sou seu amigo, porque o acho simp�tico, porque o acho bonito!

E acarinhou-o t�o vivamente dessa vez, que o estudante, fugindo-lhe das m�os, afastou-se com um gesto de repugn�ncia e desprezo, enquanto o velho lhe dizia em voz comprimida:

- Olha! Espera! Vem c�! Voc� � desconfiado!...

III

Eram cinco horas da manh� e o corti�o acordava, abrindo, n�o os olhos, mas a sua infinidade de portas e janelas alinhadas.

Um acordar alegre e farto de quem dormiu de uma assentada sete horas de chumbo. Como que se sentiam ainda na indol�ncia de neblina as derradeiras notas da ultima guitarra da noite antecedente, dissolvendo-se � luz loura e tenra da aurora, que nem um suspiro de saudade perdido em terra alheia.

A roupa lavada, que ficara de v�spera nos coradouros, umedecia o ar e punha-lhe um farto acre de sab�o ordin�rio. As pedras do ch�o, esbranqui�adas no lugar da lavagem e em alguns pontos azuladas pelo anil, mostravam uma palidez grisalha e triste, feita de acumula��es de espumas secas.

Entretanto, das portas surgiam cabe�as congestionadas de sono; ouviam-se amplos bocejos, fortes como o marulhar das ondas; pigarreava-se grosso por toda a parte; come�avam as x�caras a tilintar; o cheiro quente do caf� aquecia, suplantando todos os outros; trocavam-se de janela para janela as primeiras palavras, os bons-dias; reatavam-se conversas interrompidas � noite; a pequenada c� fora traquinava j�, e l� dentro das casas vinham choros abafados de crian�as que ainda n�o andam. No confuso rumor que se formava, destacavam-se risos, sons de vozes que altercavam, sem se saber onde, grasnar de marrecos, cantar de galos, cacarejar de galinhas. De alguns quartos saiam mulheres que vinham pendurar c� fora, na parede, a gaiola do papagaio, e os louros, � semelhan�a dos donos, cumprimentavam-se ruidosamente, espanejando-se � luz nova do dia.

Da� a pouco, em volta das bicas era um zunzum crescente; uma aglomera��o tumultuosa de machos e f�meas. Uns, ap�s outros, lavavam a cara, incomodamente, debaixo do fio de �gua que escorria da altura de uns cinco palmos. O ch�o inundava-se. As mulheres precisavam j� prender as saias entre as coxas para n�o as molhar; via-se-lhes a tostada nudez dos bra�os e do pesco�o, que elas despiam, suspendendo o cabelo todo para o alto do casco; os homens, esses n�o se preocupavam em n�o molhar o p�lo, ao contr�rio metiam a cabe�a bem debaixo da �gua e esfregavam com for�a as ventas e as barbas, fossando e fungando contra as palmas da m�o. As portas das latrinas n�o descansavam, era um abrir e fechar de cada instante, um entrar e sair sem tr�guas. N�o se demoravam l� dentro e vinham ainda amarrando as cal�as ou as saias; as crian�as n�o se davam ao trabalho de l� ir, despachavam-se ali mesmo, no capinzal dos fundos, por detr�s da estalagem ou no recanto das hortas.

O rumor crescia, condensando-se; o zunzum de todos os dias acentuava-se; j� se n�o destacavam vozes dispersas, mas um s� ru�do compacto que enchia todo o corti�o. Come�avam a fazer compras na venda; ensarilhavam-se discuss�es e resingas; ouviam-se gargalhadas e pragas; j� se n�o falava, gritava-se. Sentia-se naquela fermenta��o sang��nea, naquela gula vi�osa de plantas rasteiras que mergulham os p�s vigorosos na lama preta e nutriente da vida, o prazer animal de existir, a triunfante satisfa��o de respirar sobre a terra.

Da porta da venda que dava para o corti�o iam e vinham como formigas; fazendo compras.

Duas janelas do Miranda abriram-se. Apareceu numa a Isaura, que se dispunha a come�ar a limpeza da casa.

- Nh� Dunga! gritou ela para baixo, a sacudir um pano de mesa; se voc� tem cuscuz de milho hoje, bata na porta, ouviu?

A Leonor surgiu logo tamb�m, enfiando curiosa a carapinha por entre o pesco�o e o ombro da mulata.

O padeiro entrou na estalagem, com a sua grande cesta � cabe�a e o seu banco de pau fechado debaixo do bra�o, e foi estacionar em meio do p�tio, � espera dos fregueses, pousando a canastra sobre o cavalete que ele armou prontamente. Em breve estava cercado por uma nuvem de gente. As crian�as adulavam-no, e, � propor��o que cada mulher ou cada homem recebia o p�o, disparava para casa com este abra�ado contra o peito. Uma vaca, seguida por um bezerro amorda�ado, ia, tilintando tristemente o seu chocalho, de porta em porta, guiada por um homem carregado de vasilhame de folha.

O zunzum chegava ao seu apogeu. A f�brica de massas italianas, ali mesmo da vizinhan�a, come�ou a trabalhar, engrossando o barulho com o seu arfar mon�tono de m�quina a vapor. As corridas at� � venda reproduziam-se, transformando-se num verminar constante de formigueiro assanhado. Agora, no lugar das bicas apinhavam-se latas de todos os feitios, sobressaindo as de querosene com um bra�o de madeira em cima; sentia-se o trapejar da �gua caindo na folha. Algumas lavadeiras enchiam j� as suas tinas; outras estendiam nos coradouros a roupa que ficara de molho. Principiava o trabalho. Rompiam das gargantas os fados portugueses e as modinhas brasileiras. Um carro��o de lixo entrou com grande barulho de rodas na pedra, seguido de uma algazarra medonha algaraviada pelo carroceiro contra o burro.

E, durante muito tempo, fez-se um vaiv�m de mercadores. Apareceram os tabuleiros de carne fresca e outros de tripas e fatos de boi; s� n�o vinham hortali�as, porque havia muitas hortas no corti�o. Vieram os ruidosos mascates, com as suas latas de quinquilharia, com as suas caixas de candeeiros e objetos de vidro e com o seu fornecimento de ca�arolas e chocolateiras, de folha-de-flandres. Cada vendedor tinha o seu modo especial de apregoar, destacando-se o homem das sardinhas, com as cestas do peixe dependuradas, � moda de balan�a, de um pau que ele trazia ao ombro.

Nada mais foi preciso do que o seu primeiro guincho estridente e gutural para surgirem logo, como por encanto, uma enorme variedade de gatos, que vieram correndo acercar-se dele com grande familiaridade, ro�ando-se-lhe nas pernas arrega�adas e miando suplicantemente. O sardinheiro os afastava com o p�, enquanto vendia o seu peixe � porta das casinhas, mas os bichanos n�o desistiam e continuavam a implorar, arranhando os cestos que o homem cuidadosamente tapava mal servia ao fregu�s. Para ver-se livre por um instante dos importunos era necess�rio atirar para bem longe um punhado de sardinhas, sobre o qual se precipitava logo, aos pulos, o grupo dos pedinch�es.

A primeira que se p�s a lavar foi a Leandra, por alcunha a �Machona�, portuguesa feroz, berradora, pulsos cabeludos e grossos, anca de animal do campo. Tinha duas filhas, uma casada e separada do marido, Ana das Dores, a quem s� chamavam a �das Dores� e outra donzela ainda, a Nenen, e mais um filho, o Agostinho, menino levado dos diabos, que gritava tanto ou melhor que a m�e. A das Dores morava em sua casinha � parte, mas toda a fam�lia habitava no corti�o.

Ningu�m ali sabia ao certo se a Machona era vi�va ou desquitada; os filhos n�o se pareciam uns com os outros. A das Dores, sim, afirmavam que fora casada e que largara o marido para meter-se com um homem do com�rcio; e que este, retirando-se para a terra e n�o querendo solt�-la ao desamparo, deixara o s�cio em seu lugar. Teria vinte e cinco anos.

Nenen dezessete. Espigada, franzina e forte, com uma proazinha de orgulho da sua virgindade, escapando como enguia por entre os dedos dos rapazes que a queriam sem ser para casar. Engomava bem e sabia fazer roupa branca de homem com muita perfei��o.

Ao lado da Leandra foi colocar-se � sua tina a Augusta Carne-Mole, brasileira, branca, mulher de Alexandre, um mulato de quarenta anos, soldado de policia, pern�stico, de grande bigode preto, queixo sempre escanhoado e um luxo de cal�as brancas engomadas e bot�es limpos na farda, quando estava de servi�o. Tamb�m tinham filhos, mas ainda pequenos, um dos quais, a Juju, vivia na cidade com a madrinha que se encarregava dela. Esta madrinha era uma cocote de trinta mil-r�is para cima, a L�onie, com sobrado na cidade. Proced�ncia francesa.

Alexandre, em casa, � hora de descanso, nos seus chinelos e na sua camisa desabotoada, era muito ch�o com os companheiros de estalagem, conversava, ria e brincava, mas envergando o uniforme, encerando o bigode e empunhando a sua chibata, com que tinha o costume de fustigar as cal�as de brim, ningu�m mais lhe via os dentes e ent�o a todos falava teso e por cima do ombro. A mulher, a quem ele s� dava tu quando n�o estava fardado, era de uma honestidade proverbial no corti�o, honestidade sem m�rito, porque vinha da indol�ncia do seu temperamento e n�o do arb�trio do seu car�ter.

Junto dela p�s-se a trabalhar a Leoc�dia, mulher de um ferreiro chamado Bruno, portuguesa pequena e socada, de carnes duras, com uma fama terr�vel de leviana entre as suas vizinhas.

Seguia-se a Paula, uma cabocla velha, meio idiota, a quem respeitavam todos pelas virtudes de que s� ela dispunha para benzer erisipelas e cortar febres por meio de rezas e feiti�arias. Era extremamente feia, grossa, triste, com olhos desvairados, dentes cortados � navalha, formando ponta, como dentes de c�o, cabelos lisos, escorridos e ainda retintos apesar da idade. Chamavam-lhe �Bruxa�.

Depois seguiam-se a Marciana e mais a sua filha Florinda. A primeira, mulata antiga, muito seria e asseada em exagero: a sua casa estava sempre �mida das consecutivas lavagens. Em lhe apanhando o mau humor punha-se logo a espanar, a varrer febrilmente, e, quando a raiva era grande, corria a buscar um balde de �gua e descarregava-o com f�ria pelo ch�o da sala. A filha tinha quinze anos, a pele de um moreno quente, bei�os sensuais, bonitos dentes, olhos luxuriosos de macaca. Toda ela estava a pedir homem, mas sustentava ainda a sua virgindade e n�o cedia, nem � m�o de Deus Padre, aos rogos de Jo�o Rom�o, que a desejava apanhar a troco de pequenas concess�es na medida e no peso das compras que Florinda fazia diariamente � venda.

Depois via-se a velha Isabel, isto �, Dona Isabel, porque ali na estalagem lhes dispensavam todos certa considera��o, privilegiada pelas suas maneiras graves de pessoa que j� teve tratamento: uma pobre mulher comida de desgostos. Fora casada com o dono de uma casa de chap�us, que quebrou e suicidou-se, deixando-lhe uma filha muito doentinha e fraca, a quem Isabel sacrificou tudo para educar, dando-lhe mestre at� de franc�s. Tinha uma cara macilenta de velha portuguesa devota, que j� foi gorda, bochechas moles de pelancas rechupadas, que lhe pendiam dos cantos da boca como saquinhos vazios; fios negros no queixo, olhos castanhos, sempre chorosos engolidos pelas p�lpebras. Puxava em bandos sobre as fontes o escasso cabelo grisalho untado de �leo de am�ndoas doces. Quando saia � rua punha um eterno vestido de seda preta, achamalotada, cuja saia n�o fazia rugas, e um xale encarnado que lhe dava a todo o corpo um feitio piramidal. Da sua passada grandeza s� lhe ficara uma caixa de rap� de ouro, na qual a inconsol�vel senhora pitadeava agora, suspirando a cada pitada.

A filha era a flor do corti�o. Chamavam-lhe Pombinha. Bonita, posto que enfermi�a e nervosa ao �ltimo ponto; loura, muito p�lida, com uns modos de menina de boa fam�lia. A m�e n�o lhe permitia lavar, nem engomar, mesmo porque o m�dico a proibira expressamente.

Tinha o seu noivo, o Jo�o da Costa, mo�o do com�rcio, estimado do patr�o e dos colegas, com muito futuro, e que a adorava e conhecia desde pequenita; mas Dona Isabel n�o queria que o casamento se fizesse j�. � que Pombinha,

or�ando ali�s pelos dezoito anos, n�o tinha ainda pago � natureza o cruento tributo da puberdade, apesar do zelo da velha e dos sacrif�cios que esta fazia para cumprir � risca as prescri��es do m�dico e n�o faltar � filha o menor desvelo. No entanto, coitadas! daquele casamento dependia a felicidade de ambas, porque o Costa, bem empregado como se achava em casa de um tio seu, de quem mais tarde havia de ser s�cio, tencionava, logo que mudasse de estado, restitu�-las ao seu primitivo circulo social. A pobre velha desesperava-se com o fato e pedia a Deus, todas as noites, antes de dormir, que as protegesse e conferisse � filha uma gra�a t�o simples que ele fazia, sem distin��o de merecimento, a quantas raparigas havia pelo mundo; mas, a despeito de tamanho empenho, por coisa nenhuma desta vida consentiria que a sua pequena casasse antes de �ser mulher�, como dizia ela. E �que deixassem l� falar o doutor, entendia que n�o era decente, nem tinha jeito, dar homem a uma mo�a que ainda n�o fora visitada pelas regras! N�o! Antes v�-la solteira toda a vida e ficarem ambas curtindo para sempre aquele inferno da estalagem!�

L� no corti�o estavam todos a par desta hist�ria; n�o era segredo para ningu�m. E n�o se passava um dia que n�o interrogassem duas e tr�s vezes a velha com estas frases:

- Ent�o? J� veio?

- Por que n�o tenta os banhos de mar?

- Por que n�o chama outro m�dico?

- Eu, se fosse a senhora, casava-os assim mesmo!

A velha respondia dizendo que a felicidade n�o se fizera para ela. E suspirava resignada.

Quando o Costa aparecia depois da sua obriga��o para visitar a noiva, os moradores da estalagem cumprimentavam-no em sil�ncio com um respeitoso ar de l�stima e piedade, empenhados tacitamente por aquele caiporismo, contra o qual n�o valiam nem mesmo as virtudes da Bruxa.

Pombinha era muito querida por toda aquela gente. Era quem lhe escrevia as cartas; quem em geral fazia o rol para as lavadeiras; quem tirava as contas; quem lia o jornal para os que quisessem ouvir. Prezavam-na com muito respeito e davam-lhe presentes, o que lhe permitia certo luxo relativo. Andava sempre de botinhas ou sapatinhos com meias de cor, seu vestido de chita engomado; tinha as suas joiazinhas para sair � rua, e, aos domingos, quem a encontrasse � missa na igreja de S�o Jo�o Batista, n�o seria capaz de desconfiar que ela morava em corti�o.

Fechava a fila das primeiras lavadeiras, o Albino, um sujeito afeminado, fraco, cor de espargo cozido e com um cabelinho castanho, deslavado e pobre, que lhe caia, numa s� linha, at� ao pescocinho mole e fino. Era lavadeiro e vivia sempre entre as mulheres, com quem j� estava t�o familiarizado que elas o tratavam como a uma pessoa do mesmo sexo; em presen�a dele falavam de coisas que n�o exporiam em presen�a de outro homem; faziam-no at� confidente dos seus amores e das suas infidelidades, com uma franqueza que o n�o revoltava, nem comovia. Quando um casal brigava ou duas amigas se disputavam, era sempre Albino quem tratava de reconcili�-los, exortando as mulheres � conc�rdia. Dantes encarregava-se de cobrar o rol das colegas, por amabilidade; mas uma vez, indo a uma rep�blica de estudantes, deram-lhe l�, ningu�m sabia por qu�, uma d�zia de bolos, e o pobre-diabo jurou ent�o, entre l�grimas e solu�os, que nunca mais se incumbiria de receber os r�is.

E da� em diante, com efeito, n�o arredava os pezinhos do corti�o, a n�o ser nos dias de carnaval, em que ia, vestido de dan�arina, passear � tarde pelas ruas e � noite dan�ar nos bailes dos teatros. Tinha verdadeira paix�o por esse divertimento; ajuntava dinheiro durante o ano para gastar todo com a mascarada. E ningu�m o encontrava, domingo ou dia de semana, lavando ou descansando, que n�o estivesse com a sua cal�a branca engomada, a sua camisa limpa, um len�o ao pesco�o, e, amarrado � cinta, um avental que lhe caia sobre as pernas como uma saia. N�o fumava, n�o bebia esp�ritos e trazia sempre as m�os geladas e �midas.

Naquela manh� levantara-se ainda um pouco mais l�nguido que do costume, porque passara mal a noite. A velha Isabel, que lhe ficava ao lado esquerdo, ouvindo-o suspirar com insist�ncia, perguntou-lhe o que tinha.

Ah! muita moleza de corpo e uma pontada do vazio que o n�o deixava!

A velha receitou diversos rem�dios, e ficaram os dois, no meio de toda aquela vida, a falar tristemente sobre mol�stias.

E, enquanto, no resto da fileira, a Machona, a Augusta, a Leoc�dia, a Bruxa, a Marciana e sua filha conversavam de tina a tina, berrando e quase sem se ouvirem, a voz um tanto cansada j� pelo servi�o, defronte delas, separado pelos jiraus, formava-se um novo renque de lavadeiras, que acudiam de fora, carregadas de trouxas, e iam ruidosamente tomando lagar ao lado umas das outras, entre uma agita��o sem tr�guas, onde se n�o distinguia o que era galhofa e o que era briga. Uma a uma ocupavam-se todas as tinas. E de todos os casulos do corti�o saiam homens para as suas obriga��es. Por uma porta que havia ao fundo da estalagem desapareciam os trabalhadores da pedreira, donde vinha agora o retinir dos alvi�es e das picaretas. O Miranda, de cal�as de brim, chap�u alto e sobrecasaca preta, passou l� fora, em caminho para o armaz�m, acompanhado pelo Henrique que ia para as aulas. O Alexandre, que estivera de servi�o essa madrugada, entrou solene, atravessou o p�tio, sem falar a ningu�m, nem mesmo � mulher, e recolheu-se � casa, para dormir. Um grupo de mascates, o Delporto, o Pompeo, o Francesco e o Andr�a, armado cada qual com a sua grande caixa de bugigangas, saiu para a peregrina��o de todos os dias, altercando e praguejando em italiano.

Um rapazito de palet� entrou da rua e foi perguntar � Machona pela Nh� Rita.

- A Rita Baiana? Sei c�! Faz amanh� oito dias que ela arribou!

A Leoc�dia explicou logo que a mulata estava com certeza de p�ndega com o Firmo.

- Que Firmo? interrogou Augusta.

- Aquele cabravasco que se metia �s vezes ai com ela. Diz que � torneiro.

- Ela mudou-se? perguntou o pequeno.

- N�o, disse a Machona; o quarto est� fechado, mas a mulata tem coisas l�. Voc� o que queria?

- Vinha buscar uma roupa que est� com ela.

- N�o sei, filho, pergunta na venda ao Jo�o Rom�o, que talvez te possa dizer alguma coisa.

- Ali?

- Sim, pequeno, naquela porta, onde a preta do tabuleiro est� vendendo! � diabo! olha que pisas a boneca de anil! J� se viu que sorte? Parece que n�o v� onde pisa este raio de crian�a!

E, notando que o filho, o Agostinho, se aproximava para tomar o lugar do outro que j� se ia:

- Sai da�, tu tamb�m, peste! J� principias na reina��o de todos os dias? Vem para c�, que levas! Mas, � verdade, que fazes tu que n�o vais regar a horta do Comendador?

- Ele disse ontem que eu agora fosse � tarde, que era melhor.

- Ah! E amanh�, n�o te esque�as, recebe os dois mil-r�is, que � fim do m�s. Olha! Vai l� dentro e diz a Nenen que te entregue a roupa que veio ontem � noite.

O pequeno afastou-se de carreira, e ela lhe gritou na pista:

- E que n�o ponha o refogado no fogo sem eu ter l� ido!

Uma conversa cerrada travara-se no resto da fila de lavadeiras a respeito da Rita Baiana.

- � doida mesmo!... censurava Augusta. Meter-se na p�ndega sem dar conta da roupa que lhe entregaram... Assim h� de ficar sem um fregu�s...

- Aquela n�o endireita mais!... Cada vez fica at� mais assanhada!... Parece que tem fogo no rabo! Pode haver o servi�o que houver, aparecendo pagode, vai tudo pro lado! Olha o que saiu o ano passado com a festa da Penha!...

- Ent�o agora, com este mulato, o Firmo, � uma pouca-vergonha! Est�ro dia, pois voc� n�o viu? levaram ai numa bebedeira, a dan�ar e cantar � viola, que nem sei o que parecia! Deus te livre!

- Para tudo h� horas e h� dias!...

- Para a Rita todos os dias s�o dias santos! A quest�o � aparecer quem puxe por ela!

- Ainda assim n�o e m� criatura... Tirante o defeito da vadiagem...

- Bom cora��o tem ela, at� demais, que n�o guarda um vint�m pro dia de amanh�. Parece que o dinheiro lhe faz comich�o no corpo!

- Depois � que s�o elas!... O Jo�o Rom�o j� lhe n�o fia!

- Pois olhe que a Rita lhe tem enchido bem as m�os; quando ela tem dinheiro � porque o gasta mesmo!

E as lavadeiras n�o se calavam, sempre a esfregar, e a bater, e a torcer camisas e ceroulas, esfogueadas j� pelo exerc�cio. Ao passo que, em torno da sua tagarelice, o corti�o se embandeirava todo de roupa molhada, de onde o sol tirava cintila��es de prata.

Estavam em dezembro e o dia era ardente. A grama dos coradouros tinha reflexos esmeraldinos; as paredes que davam frente ao Nascente, caiadinhas de novo, reverberavam iluminadas, ofuscando a vista. Em uma das janelas da sala de jantar do Miranda, Dona Estela e Zulmira, ambas vestidas de claro e ambas a limarem as unhas, conversavam em voz surda, indiferentes � agita��o que ia l� embaixo, muito esquecidas na sua tranq�ilidade de entes felizes.

Entretanto, agora o maior movimento era na venda � entrada da estalagem. Davam nove horas e os oper�rios das f�bricas chegavam-se para o almo�o. Ao balc�o o Domingos e o Manuel n�o tinham m�os a medir com a criadagem da vizinhan�a; os embrulhos de papel amarelo sucediam-se, e o dinheiro pingava sem intermit�ncia dentro da gaveta.

- Meio quilo de arroz!

- Um tost�o de a��car!

- Uma garrafa de vinagre!

- Dois martelos de vinho!

- Dois vint�ns de fumo!

- Quatro de sab�o!

E os gritos confundiam-se numa mistura de vozes de todos os tons.

Ouviam-se protestos entre os compradores:

- Me avie, seu Domingos! Eu deixei a comida no fogo!

- � peste! d� c� as batatas, que eu tenho mais o que fazer!

- Seu Manuel, n�o me demore essa manteiga!

Ao lado, na casinha de pasto, a Bertoleza, de saias arrepanhadas no quadril, o cacha�o grosso e negro, reluzindo de suor, ia e vinha de uma panela � outra, fazendo pratos, que Jo�o Rom�o levava de carreira aos trabalhadores assentados num compartimento junto. Admitira-se um novo caixeiro, s� para o frege, e o rapaz, a cada comensal que ia chegando, recitava, em tom cantado e estridente, a sua intermin�vel lista das comidas que havia. Um cheiro forte de azeite frito predominava. O parati circulava por todas as mesas, e cada caneca de caf�, de lou�a espessa, erguia um vulc�o de fumo tresandando a milho queimado. Uma algazarra medonha, em que ningu�m se entendia! Cruzavam-se conversas em todas as dire��es, discutia-se a berros, com valentes punhadas sobre as mesas. E sempre a sair, e sempre a entrar gente, e os que saiam, depois daquela comezaina grossa, iam radiantes de contentamento, com a barriga bem cheia, a arrotar.

Num banco de pau tosco, que existia do lado de fora, junto � parede e perto da venda, um homem, de cal�a e camisa de zuarte, chinelos de couro cru, esperava, havia j� uma boa hora, para falar com o vendeiro.

Era um portugu�s de seus trinta e cinco a quarenta anos, alto, espada�do, barbas �speras, cabelos pretos e maltratados caindo-lhe sobre a testa, por debaixo de um chap�u de feltro ordin�rio: pesco�o de touro e cara de H�rcules, na qual os olhos todavia, humildes como os olhos de um boi de canga, exprimiam tranq�ila bondade.

- Ent�o ainda n�o se pode falar ao homem? perguntou ele, indo ao balc�o entender-se com o Domingos.

- O patr�o est� agora muito ocupado. Espere!

- Mas s�o quase dez horas e estou com um gole de caf� no est�mago!

- Volte logo!

- Moro na cidade nova. � um estir�o daqui!

O caixeiro gritou ent�o para a cozinha, sem interromper o que fazia:

- O homem que ai est�, seu Jo�o, diz que se vai embora!

- Ele que espere um pouco, que j� lhe falo! respondeu o vendeiro no meio de uma carreira. Diga-lhe que n�o v�!

- Mas � que ainda n�o almocei e estou aqui a tinir!... observou o H�rcules com a sua voz grossa e sonora.

- � filho, almoce ai mesmo! Aqui o que n�o falta � de comer. J� podia estar aviado!

- Pois v� l�! resolveu o homenzarr�o, saindo da venda para entrar na casa de pasto, onde os que l� se achavam o receberam com ar curioso, medindo-o da cabe�a aos p�s, como faziam sempre com todos os que ai se apresentavam pela primeira vez.

E assentou-se a uma das mesinhas, vindo logo o caixeiro cantar-lhe a lista dos pratos.

- Traga l� o pescado com batatas e veja um martelo de vinho.

- Quer verde ou virgem?

- Venha o verde; mas anda com isso, filho, que j� n�o vem sem tempo!

IV

Meia hora depois, quando Jo�o Rom�o se viu menos ocupado, foi ter com o sujeito que o procurava e assentou-se defronte dele, caindo de fadiga, mas sem se queixar, nem se lhe trair a fisionomia o menor sintoma de cansa�o.

- Voc� vem da parte do Machucas? perguntou-lhe. Ele falou-me de um homem que sabe cal�ar pedra, lascar fogo e fazer lajedo.

- Sou eu.

- Estava empregado em outra pedreira?

- Estava e estou. Na de S�o Diogo, mas desgostei-me dela e quero passar adiante.

- Quanto lhe d�o l�?

- Setenta mil-r�is.

- Oh! Isso � um disparate!

- N�o trabalho por menos...

- Eu, o maior ordenado que fa�o � de cinq�enta.

- Cinq�enta ganha um macaqueiro...

- Ora! tenho a� muitos trabalhadores de lajedo por esse pre�o!

- Duvido que prestem! Aposto a m�o direita em como o senhor n�o encontra por cinq�enta mil-r�is quem dirija a broca, pese a p�lvora e lasque fogo, sem lhe estragar a pedra e sem fazer desastres!

- Sim, mas setenta mil-r�is � um ordenado imposs�vel!

- Nesse caso vou como vim... Fica o dito por n�o dito!

- Setenta mil-r�is � muito dinheiro!...

- C� por mim, entendo que vale a pena pagar mais um pouco a um trabalhador bom, do que estar a sofrer desastres, como o que sofreu sua pedreira a semana passada! N�o falando na vida do pobre de Cristo que ficou debaixo da pedra!

- Ah! O Machucas falou-lhe no desastre?

- Contou-mo, sim senhor, e o desastre n�o aconteceria se o homem soubesse fazer o servi�o!

- Mas setenta mil-r�is � imposs�vel. Des�a um pouco!

- Por menos n�o me serve... E escusamos de gastar palavras!

- Voc� conhece a pedreira?

- Nunca a vi de perto, mas quis me parecer que � boa. De longe cheirou-me a granito.

- Espere um instante.

Jo�o Rom�o deu um pulo � venda, deixou algumas ordens, enterrou um chap�u na cabe�a e voltou a ter com o outro.

- Ande a ver! gritou-lhe da porta do frege, que a pouco e pouco se esvaziara de todo.

O cavouqueiro pagou doze vint�ns pelo seu almo�o e acompanhou-o em sil�ncio.

Atravessaram o corti�o.

A labuta��o continuava. As lavadeiras tinham j� ido almo�ar e tinham voltado de novo para o trabalho. Agora estavam todas de chap�u de palha, apesar das toldas que se armaram. Um calor de c�ustico mordia-lhes os touti�os em brasa e cintilantes de suor. Um estado febril apoderava-se delas naquele rescaldo; aquela digest�o feita ao sol fermentava-lhes o sangue. A Machona altercava com uma preta que fora reclamar um par de meias e destrocar uma camisa; a Augusta, muito mole sobre a sua t�bua de lavar, parecia derreter-se como sebo; a Leoc�dia largava de vez em quando a roupa e o sab�o para co�ar as comich�es do quadril e das virilhas, assanhadas pelo morma�o; a Bruxa monologava, resmungando numa insist�ncia de idiota, ao lado da Marciana que, com o seu tipo de mulata velha, um cachimbo ao canto da boca, cantava toadas mon�tonas do sert�o:

�Maricas t� marimbando,

Maricas t� marimbando,

Na passage do riacho

Maricas t� marimbando.�

A Florinda, alegre, perfeitamente bem com o rigor do sol, a rebolar sem fadigas, assoviava os chorados e lundus que se tocavam na estalagem, e junto dela, a melanc�lica senhora Dona Isabel suspirava, esfregando a sua roupa dentro da tina, automaticamente, como um condenado a trabalhar no pres�dio; ao passo que o Albino, saracoteando os seus quadris pobres de homem linf�tico, batia na t�bua um par de cal�as, no ritmo cadenciado e mi�do de um cozinheiro a bater bifes. O corpo tremia-lhe todo, e ele, de vez em quando, suspendia o len�o do pesco�o para enxugar a fronte, e ent�o um gemido suspirado subia-lhe aos l�bios.

Da casinha n�mero 8 vinha um falsete agudo, mas afinado. Era a das Dores que principiava o seu servi�o; n�o sabia engomar sem cantar. No n�mero 7 Nenen cantarolava em tom muito mais baixo; e de um dos quartos do fundo da estalagem saia de espa�o a espa�o uma nota �spera de trombone.

O vendeiro, ao passar por detr�s de Florinda, que no momento apanhava roupa do ch�o, ferrou-lhe uma palmada na parte do corpo ent�o mais em evid�ncia.

- N�o bula, hein?!... gritou ela, r�pido, erguendo-se tesa.

E, dando com Jo�o Rom�o:

- Eu logo vi. Leva implicando aqui com a gente e depois, vai-se comprar na venda, o safado rouba no peso! Diabo do galego Eu n�o te quero, sabe?

O vendeiro soltou-lhe nova palmada com mais for�a e fugiu, porque ela se armara com um regador cheio de �gua.

- Vem pra c�, se �s capaz! Diabo da peste!

Jo�o Rom�o j� se havia afastado com o cavouqueiro.

- O senhor tem aqui muita gente!... observou-lhe este.

- Oh! fez o outro, sacudindo os ombros, e disse depois com emp�fia: - Houvesse mais cem quartos que estariam cheios! Mas � tudo gente s�ria! N�o h� chinfrins nesta estalagem; se aparece uma rusga, eu chego, e tudo acaba logo! Nunca nos entrou c� a policia, nem nunca a deixaremos entrar! E olhe que se divertem bem com as suas violas! Tudo gente muita boa!

Tinham chegado ao fim do p�tio do corti�o e, depois de transporem uma porta que se fechava com um peso amarrado a uma corda, acharam-se no capinzal que havia antes da pedreira.

- Vamos por aqui mesmo que � mais perto, aconselhou o vendeiro.

E os dois, em vez de procurarem a estrada, atravessaram o capim quente e trescalante.

Meio-dia em ponto. O sol estava a pino; tudo reverberava a luz irreconcili�vel de dezembro, num dia sem nuvens. A pedreira, em que ela batia de chapa em cima, cegava olhada de frente. Era preciso martirizar a vista para descobrir as nuan�as da pedra; nada mais que uma grande mancha branca e luminosa, terminando pela parte de baixo no ch�o coberto de cascalho mi�do, que ao longe produzia o efeito de um betume cinzento, e pela parte de cima na espessura compacta do arvoredo, onde se n�o distinguiam outros tons mais do que n�doas negras, bem negras, sobre o verde-escuro.

� propor��o que os dois se aproximavam da imponente pedreira, o terreno ia-se tornando mais e mais cascalhudo; os sapatos enfarinhavam-se de uma poeira clara. Mais adiante, por aqui e por ali, havia muitas carro�as, algumas em movimento, puxadas a burro e cheias de calhaus partidos; outras j� prontas para seguir, � espera do animal, e outras enfim com os bra�os para o ar, como se acabassem de ser despejadas naquele instante. Homens labutavam.

� esquerda, por cima de um vest�gio de rio, que parecia ter sido bebido de um trago por aquele sol sedento, havia uma ponte de t�buas, onde tr�s pequenos, quase nus, conversavam assentados, sem fazer sombra, iluminados a prumo pelo sol do meio-dia. Para adiante, na mesma dire��o, corria um vasto telheiro, velho e sujo, firmado sobre colunas de pedra tosca; ai muitos portugueses trabalhavam de canteiro, ao barulho met�lico do pic�o que feria o granito. Logo em seguida, surgia uma oficina de ferreiro, toda atravancada de destro�os e objetos quebrados, entre os quais avultavam rodas de carro; em volta da bigorna dois homens, de corpo nu, banhados de suor e alumiados de vermelho como dois diabos, martelavam cadenciosamente sobre um peda�o de ferro em brasa; e ali mesmo, perto deles, a forja escancarava uma goela infernal, de onde saiam pequenas l�nguas de fogo, irrequietas e gulosas.

Jo�o Rom�o parou � entrada da oficina e gritou para um dos ferreiros:

- O Bruno! N�o se esque�a do varal da lanterna do port�o!

Os dois homens suspenderam por um instante o trabalho.

- J� l� fui ver, respondeu o Bruno. N�o vale a pena consert�-lo; est� todo comido de ferragem! Faz-se-lhe um novo, que � melhor!

- Pois veja l� isso, que a lanterna est� a cair!

E o vendeiro seguiu adiante com o outro, enquanto atr�s recome�ava o martelar sobre a bigorna.

Em seguida via-se uma miser�vel estrebaria, cheia de capim seco e excremento de bestas, com lugar para meia d�zia de animais. Estava deserta, mas, no vivo fartum exalado de l�, sentia-se que fora habitada ainda aquela noite. Havia depois um dep�sito de madeiras, servindo ao mesmo tempo de oficina de carpinteiro, tendo � porta troncos de arvore, alguns j� serrados, muitas t�buas empilhadas, restos de cavernas e mastros de navio.

Da� � pedreira restavam apenas uns cinq�enta passos e o ch�o era j� todo coberto por uma farinha de pedra mo�da que sujava como a cal.

Aqui, ali, por toda a parte, encontravam-se trabalhadores, uns ao sol, outros debaixo de pequenas barracas feitas de lona ou de folhas de palmeira. De um lado cunhavam pedra cantando; de outro a quebravam a picareta; de outro afei�oavam lajedos a ponta de pic�o; mais adiante faziam paralelep�pedos a escopro e macete. E todo aquele retintim de ferramentas, e o martelar da forja, e o coro dos que l� em cima brocavam a rocha para lan�ar-lhe fogo, e a surda zoada ao longe, que vinha do corti�o, como de uma aldeia alarmada; tudo dava a id�ia de uma atividade feroz, de uma luta de vingan�a e de �dio. Aqueles homens gotejantes de suor, b�bados de calor, desvairados de insola��o, a quebrarem, a espica�arem, a torturarem a pedra, pareciam um punhado de dem�nios revoltados na sua impot�ncia contra o impass�vel gigante que os contemplava com desprezo, imperturb�vel a todos os golpes e a todos os tiros que lhe desfechavam no dorso, deixando sem um gemido que lhe abrissem as entranhas de granito. O membrudo cavouqueiro havia chegado a fralda do orgulhoso monstro de pedra; tinha-o cara a cara, mediu-o de alto a baixo, arrogante, num desafio surdo.

A pedreira mostrava nesse ponto de vista o seu lado mais imponente. Descomposta, com o escalavrado flanco exposto ao sol, erguia-se altaneira e desassombrada, afrontando o c�u, muito �ngreme, lisa, escaldante e cheia de cordas que mesquinhamente lhe escorriam pela cicl�pica nudez com um efeito de teias de aranha. Em certos lugares, muito alto do ch�o, lhe haviam espetado alfinetes de ferro, amparando, sobre um precip�cio, miser�veis t�buas que, vistas c� de baixo, pareciam palitos, mas em cima das quais uns atrevidos pigmeus de forma humana equilibravam-se, desfechando golpes de picareta contra o gigante.

O cavouqueiro meneou a cabe�a com ar de l�stima. O seu gesto desaprovava todo aquele servi�o.

- Veja l�! disse ele, apontando para certo ponto da rocha. Olhe para aquilo! Sua gente tem ido �s cegas no trabalho desta pedreira. Deviam atac�-la justamente por aquele outro lado, para n�o contrariar os veios da pedra. Esta parte aqui � toda granito, � a melhor! Pois olhe s� o que eles t�m tirado de l� - umas lascas, uns calhaus que n�o servem para nada! � uma dor de cora��o ver estragar assim uma pe�a t�o boa! Agora o que h�o de fazer dessa cascalhada que ai est� sen�o macacos? E brada aos c�us, creia! ter pedra desta ordem para empreg�-la em macacos!

O vendeiro escutava-o em sil�ncio, apertando os bei�os, aborrecido com a id�ia daquele preju�zo.

- Uma porcaria de servi�o! continuou o outro. Ali onde est� aquele homem � que deviam ter feito a broca, porque a explos�o punha abaixo toda esta aba que � separada por um veio. Mas quem tem ai o senhor capaz de fazer isso? Ningu�m; porque � preciso um empregado que saiba o que faz; que, se a p�lvora n�o for muito bem medida, nem s� n�o se abre o veio, como ainda sucede ao trabalhador o mesmo que sucedeu ao outro! � preciso conhecer muito bem o trabalho para se poder tirar partido vantajoso desta pedreira! Boa � ela, mas n�o nas m�os em que est�! � muito perigosa nas explos�es; � muito em p�! Quem lhe lascar fogo n�o pode fugir sen�o para cima pela corda, e se o sujeito n�o for fino leva-o o demo! Sou eu quem o diz!

E depois de uma pausa, acrescentou, tomando na sua m�o, grossa como o pr�prio cascalho, um paralelep�pedo que estava no ch�o:

- Que digo eu?! C� est�! Macacos de granito! Isto at� � uma coisa que estes burros deviam esconder por vergonha!

Acompanhando a pedreira pelo lado direito e seguindo-a na volta que ela dava depois, formando um �ngulo obtuso, � que se via quanto era grande. Suava-se bem antes de chegar ao seu limite com a mata.

- Que mina de dinheiro!... dizia o homenzarr�o, parando entusiasmado defronte do novo pano de rocha viva que se desdobrava na presen�a dele.

- Toda esta parte que se segue agora, declarou Jo�o Rom�o, ainda n�o � minha.

E continuaram a andar para diante.

Deste lado multiplicavam-se as barraquinhas; os macaqueiros trabalhavam � sombra delas, indiferentes �queles dois. Viam-se panelas ao fogo, sobre quatro pedras, ao ar livre, e rapazitos tratando do jantar dos pais. De mulher nem

sinal. De vez em quando, na penumbra de um ensombro de lona, dava-se com um grupo de homens, comendo de c�coras defronte uns dos outros, uma sardinha na m�o esquerda, um p�o na direita, ao lado de uma garrafa de �gua.

- Sempre o mesmo servi�o malfeito e mal dirigido!... resmungou o cavouqueiro.

Entretanto, a mesma atividade parecia reinar por toda a parte. Mas, l� no fim, debaixo dos bambus que marcavam o limite da pedreira, alguns trabalhadores dormiam � sombra, de papo para o ar, a barba espetando para o alto, o pesco�o intumescido de cordoveias grossas como enx�rcias de navio, a boca aberta, a respira��o forte e tranq�ila de animal sadio, num feliz e plet�rico resfolgar de besta cansada.

- Que relaxamento! resmungou de novo o cavouqueiro. Tudo isto est� a reclamar um homem teso que olhe a s�rio para o servi�o!

- Eu nada tenho que ver com este lado! observou Rom�o.

- Mas l� da sua banda h�o de fazer o mesmo! Olar�!

- Abusam, porque tenho de olhar pelo neg�cio l� fora...

- Comigo aqui � que eles n�o fariam cera. isso juro eu! Entendo que o empregado deve ser bem pago, ter para a sua comida � farta, o seu gole de vinho, mas que deve fazer servi�o que se veja, ou, ent�o, rua! Rua, que n�o falta por ai quem queira ganhar dinheiro! Autorize-me a olhar por eles e ver�!

- O diabo � que voc� quer setenta mil-r�is... suspirou Jo�o Rom�o.

- Ah! nem menos um real!... Mas comigo aqui h� de ver o que lhe fa�o entrar para algibeira! Temos c� muita gente que n�o precisa estar. Para que tanto macaqueiro, por exemplo? Aquilo � servi�o para descanso; � servi�o de crian�a! Em vez de todas aquelas lesmas, pagas talvez a trinta mil-r�is...

- � justamente quanto lhes dou.

- ... melhor seria tomar dois bons trabalhadores de cinq�enta, que fazem o dobro do que fazem aqueles monos e que podem servir para outras coisas! Parece que nunca trabalharam! Olhe, � j� a terceira vez que aquele que ali est� deixa cair o escopro! Com efeito!

Jo�o Rom�o ficou calado, a cismar, enquanto voltavam. Vinham ambos pensativos.

- E voc�, se eu o tomar, disse depois o vendeiro, muda-se c� para a estalagem?...

- Naturalmente! n�o hei de ficar l� na cidade nova, tendo o servi�o aqui!...

- E a comida, forne�o-a eu?...

- Isso � que a mulher � quem a faz; mas as compras saem-lhe da venda...

- Pois est� fechado o neg�cio! deliberou Jo�o Rom�o, convencido de que n�o podia, por economia, dispensar um homem daqueles. E pensou l� de si para si: �Os meus setenta mil-r�is voltar-me-�o � gaveta. Tudo me fica em casa!�

- Ent�o estamos entendidos?...

- Estamos entendidos!

- Posso amanh� fazer a mudan�a?

- Hoje mesmo, se quiser; tenho um c�modo que lhe h� de calhar. � o n�mero 35. Vou mostrar-lho.

E aligeirando o passo, penetraram na estrada do capinzal com dire��o ao fundo do corti�o.

- Ah! � verdade! como voc� se chama?

- Jer�nimo, para o servir.

- Servir a Deus. Sua mulher lava?

- � lavadeira, sim senhor.

- Bem, precisamos ver-lhe uma tina.

E o vendeiro empurrou a porta do fundo da estalagem, de onde escapou, como de uma panela fervendo que se destapa, uma baforada quente, vozeria tresandante � fermenta��o de suores e roupa ensaboada secando ao sol.

V

No dia seguinte, com efeito, ali pelas sete da manh�, quando o corti�o fervia j� na costumada labuta��o, Jer�nimo apresentou-se junto com a mulher, para tomarem conta da casinha alugada na v�spera.

A mulher chamava-se Piedade de Jesus; teria trinta anos, boa estatura, carne ampla e rija, cabelos fortes de um castanho fulvo, dentes pouco alvos, mas s�lidos e perfeitos, cara cheia, fisionomia aberta; um todo de bonomia toleirona, desabotoando-lhe pelos olhos e pela boca numa simp�tica express�o de honestidade simples e natural.

Vieram ambos � boleia da andorinha que lhes carregou os trens. Ela trazia uma saia de sarja roxa, cabe��o branco de paninho de algod�o e na cabe�a um len�o vermelho de alcoba�a; o marido a mesma roupa do dia anterior.

E os dois apearam-se muito atrapalhados com os objetos que n�o confiaram dos homens da carro�a; Jer�nimo abra�ado a duas formid�veis mangas de vidro, das primitivas, dessas em que se podia � vontade enfiar uma perna; e a Piedade atracada com um velho rel�gio de parede e com uma grande trouxa de santos e palmas bentas. E assim atravessaram o p�tio da estalagem, entre os coment�rios e os olhares curiosos dos antigos moradores, que nunca viam sem uma pontinha de desconfian�a os inquilinos novos que surgiam.

- O que ser� este peda�o de homem? indagou a Machona da sua vizinha de tina, a Augusta Carne-Mole.

- A modos, respondeu esta, que vem para trabalhar na pedreira. Ele ontem andou por l� um ror de tempo com o Jo�o Rom�o.

- Aquela mulher que entrou junto ser� casada com ele?

- � de crer.

- Ela me parece gente das ilhas.

- Eles o que t�m � muito bons trastes de seu! interveio a Leoc�dia. Uma cama que deve ser um regalo e um toucador com um espelho maior do que aquela peneira!

- E a c�moda, voc� viu, Nh� Leoc�dia? perguntou Florinda, gritando para ser ouvida, porque entre ela e a outra estavam a Bruxa e a velha Marciana.

- Vi, Rico traste!

- E o orat�rio, ent�o? Muito bonito!...

- Vi tamb�m. � obra de capricho. N�o! eles sejam l� quem for, s�o gente arranjada... Isso n�o se lhes pode negar!

- Se s�o bons ou maus s� com o tempo se saber�!... arriscou Dona Isabel.

- Quem v� cara n�o v� cora��es... sentenciou o triste Albino, suspirando.

- Mas o n�mero 35 n�o estava ocupado por aquele homem muito amarelo que fazia charutos?... inquiriu Augusta.

- Estava, confirmou a mulher do ferreiro, a Leoc�dia, por�m creio que arribou, devendo n�o sei quanto, e o Jo�o Rom�o ent�o esvaziou-lhe ontem a casa e tomou conta do que era dele.

- �! acudiu a Machona; ontem, pelo cair das duas da tarde, o Rom�o andava a� �s voltas com os cacarecos do charuteiro. Quem sabe, se o pobre homem n�o levou a breca, como sucedeu �quele outro que trabalhava de ourives?

- N�o! Este creio que est� vivo...

- O que lhe digo � que aquele n�mero 35 tem mau agouro! Eu c� por mim n�o o queria nem de gra�a! Foi l� que morreu a Maricas do Farj�o!

Tr�s horas depois, Jer�nimo e Piedade achavam-se instalados e dispunham-se a comer o almo�o, que a mulher preparara o melhor e o mais depressa que p�de. Ele contava aviar at� a noite uma infinidade de coisas, para poder come�ar a trabalhar logo no dia seguinte.

Era t�o met�dico e t�o bom como trabalhador quanto o era como homem.

Jer�nimo viera da terra, com a mulher e uma filhinha ainda pequena, tentar a vida no Brasil, na qualidade de colono de um fazendeiro, em cuja fazenda mourejou durante dois anos, sem nunca levantar a cabe�a, e de onde afinal se retirou de m�os vazias e uma grande birra pela lavoura brasileira. Para continuar a servir na ro�a tinha que sujeitar-se a emparelhar com os negros escravos e viver com eles no mesmo meio degradante, encurralado como uma besta, sem aspira��es, nem futuro, trabalhando eternamente para outro.

N�o quis. Resolveu abandonar de vez semelhante estupor de vida e atirar-se para a Corte, onde, diziam-lhe patr�cios, todo o homem bem disposto encontrava furo. E, com efeito, mal chegou, devorado de necessidades e priva��es, meteu-se a quebrar pedra em uma pedreira, mediante um miser�vel sal�rio. A sua exist�ncia continuava dura e prec�ria; a mulher j� ent�o lavava e engomava, mas com pequena freguesia e mal paga. O que os dois faziam chegava-lhes apenas para n�o morrer de fome e pagar o quarto da estalagem.

Jer�nimo, por�m, era perseverante, observador e dotado de certa habilidade. Em poucos meses se apoderava do seu novo of�cio e, de quebrador de pedra, passou logo a fazer paralelep�pedos; e depois foi-se ajeitando com o prumo e com a esquadria e meteu-se a fazer lajedos; e finalmente, � for�a de dedica��o pelo servi�o, tornou-se t�o bom como os melhores trabalhadores de pedreira e a ter sal�rio igual ao deles. Dentro de dois anos, distinguia-se tanto entre os companheiros, que o patr�o o converteu numa esp�cie de contramestre e elevou-lhe o ordenado a setenta mil-r�is.

Mas n�o foram s� o seu zelo e a sua habilidade o que o p�s assim para a frente; duas outras coisas contribu�ram muito para isso: a for�a de touro que o tornava respeitado e temido por todo o pessoal dos trabalhadores, como ainda, e, talvez, principalmente, a grande seriedade do seu car�ter e a pureza austera dos seus costumes. Era homem de uma honestidade a toda prova e de uma primitiva simplicidade no seu modo de viver. Sala de casa para o servi�o e do servi�o para casa, onde nunca ningu�m o vira com a mulher sen�o em boa paz; traziam a filhinha sempre limpa e bem alimentada, e, tanto um como o outro, eram sempre os primeiros � hora do trabalho. Aos domingos iam �s vezes � missa ou, � tarde, ao Passeio P�blico; nessas ocasi�es, ele punha uma camisa engomada, cal�ava sapatos e enfiava um palet�; ela o seu vestido de ver a Deus, os seus ouros trazidos da terra, que nunca tinham ido ao monte de socorro, malgrado as dificuldades com que os dois lutaram a principio no Brasil.

Piedade merecia bem o seu homem, muito diligente, sadia, honesta, forte, bem acomodada com tudo e com todos, trabalhando de sol a sol e dando sempre t�o boas contas da obriga��o, que os seus fregueses de roupa, apesar daquela mudan�a para Botafogo, n�o a deixaram quase todos.

Jer�nimo, ainda na cidade nova, logo que principiara a ganhar melhor, fizera-se irm�o de uma ordem terceira e tratara de ir pondo alguma coisinha de parte. Meteu a filha em um col�gio, �que a queria com outro saber que n�o ele, a quem os pais n�o mandaram ensinar nada�. Por �ltimo, no corti�o em que ent�o moravam, a sua casinha era a mais decente, a mais respeitada e a mais confort�vel; por�m, com a morte do seu patr�o e com uma reforma est�pida que os sucessores dele realizaram em todo o servi�o da pedreira, o colono desgostou-se dela e resolveu passar para outra.

Foi ent�o que lhe indicaram a do Jo�o Rom�o, que, depois do desastre do seu melhor empregado, andava justamente � procura de um homem nas condi��es de Jer�nimo.

Tomou conta da dire��o de todo o servi�o, e em boa hora o fez, porque dia a dia a sua influ�ncia se foi sentindo no progresso do trabalho. Com o seu exemplo os companheiros tornavam-se igualmente s�rios e zelosos. Ele n�o admitia relaxamentos, nem podia consentir que um pregui�oso se demorasse ali tomando o lagar de quem precisava ganhar o p�o. E alterou o pessoal da pedreira, despediu alguns trabalhadores, admitiu novos, aumentou o ordenado dos que ficaram, estabelecendo-lhes novas obriga��es e reformando tudo para melhor. No fim de dois meses j� o vendeiro esfregava as m�os de contente e via, radiante, quanto lucrara com a aquisi��o de Jer�nimo; tanto assim que estava disposto a aumentar-lhe o ordenado para conserv�-lo em sua companhia. �Valia a pena! Aquele homem era um achado precioso! Aben�oado fosse o Machucas que lho enviara!� E come�ou a distingui-lo e respeit�-lo como n�o fazia a ningu�m.

O prestigio e a considera��o de que Jer�nimo gozava entre os moradores da outra estalagem donde vinha, foi a pouco e pouco se reproduzindo entre os seus novos companheiros de corti�o. Ao cabo de algum tempo era consultado e ouvido, quando qualquer quest�o dif�cil os preocupava. Descobriam-se defronte dele, como defronte de um superior, at� o pr�prio Alexandre abria uma exce��o nos seus h�bitos e fazia-lhe uma ligeira contin�ncia com a m�o no bon�, ao atravessar o p�tio, todo fardado, por ocasi�o de vir ou ir para o servi�o. Os dois caixeiros da venda, o Domingos e o Manuel, tinham entusiasmo por ele. �Aquele � que devia ser o patr�o, diziam. � um homem s�rio e destemido! Com aquele ningu�m brinca!� E, sempre que a Piedade de Jesus ia l� � taverna fazer as suas compras, a fazenda que lhe davam era bem escolhida, bem medida ou bem pesada. Muitas lavadeiras tomavam inveja dela, mas Piedade era de natural t�o bom e benfazejo que n�o deva por isso e a maledic�ncia murchava antes de amadurecer.

Jer�nimo acordava todos os dias �s quatro horas da manh�, fazia antes dos outros a sua lavagem � bica do p�tio, socava-se depois com uma boa palangana de caldo de unto, acompanhada de um p�o de quatro; e, em mangas de camisa de riscado, a cabe�a ao vento, os grossos p�s sem meias metidos em um formid�vel par de chinelos de couro cru, seguia para a pedreira.

A sua picareta era para os companheiros o toque de reunir. Aquela ferramenta movida por um pulso de H�rcules valia bem os clarins de um regimento tocando alvorada. Ao seu retinir vibrante surgiam do caos opalino das neblinas vultos cor de cinza, que l� iam, como sombras, galgando a montanha, para cavar na pedra o p�o nosso de cada dia. E, quando o sol desfechava sobre o p�ncaro da rocha os seus primeiros raios, j� encontrava de p�, a bater-se contra o gigante de granito, aquele m�sero grupo de obscuros batalhadores.

Jer�nimo s� voltava a casa ao descair da tarde, morto de fome e de fadiga. A mulher preparava-lhe sempre para o jantar alguma das comidas da terra deles. E ali, naquela estreita salinha, sossegada e humilde, gozavam os dois, ao lado

um do outro, a paz feliz dos simples, o voluptuoso prazer do descanso ap�s um dia inteiro de canseiras ao sol. E, defronte do candeeiro de querosene, conversavam sobre a sua vida e sobre a sua Marianita, a filhinha que estava no col�gio e que s� os visitava aos domingos e dias santos.

Depois, at� �s horas de dormir, que nunca passavam das nove, ele tomava a sua guitarra e ia para defronte da porta, junto com a mulher, dedilhar os fados da sua terra. Era nesses momentos que dava plena expans�o �s saudades da p�tria, com aquelas cantigas melanc�licas em que a sua alma de desterrado voava das zonas abrasadas da Am�rica para as aldeias tristes da sua inf�ncia.

E o canto daquela guitarra estrangeira era um lamento choroso e dolorido, eram vozes magoadas, mais tristes do que uma ora��o em alto-mar, quando a tempestade agita as negras asas homicidas, e as gaivotas doidejam assanhadas, cortando a treva com os seus gemidos pressagos, tontas como se estivessem fechadas dentro de uma ab�bada de chumbo.

VI

Amanhecera um domingo alegre no corti�o, um bom dia de abril. Muita luz e pouco calor.

As tinas estavam abandonadas; os coradouros despidos. Tabuleiros e tabuleiros de roupa engomada saiam das casinhas, carregados na maior parte pelos filhos das pr�prias lavadeiras que se mostravam agora quase todas de fato limpo; os casaquinhos brancos avultavam por cima das saias de chita de cor. Desprezavam-se os grandes chap�us de palha e os aventais de aniagem; agora as portuguesas tinham na cabe�a um len�o novo de ramagens vistosas e as brasileiras haviam penteado o cabelo e pregado nos cachos negros um ramalhete de dois vint�ns; aquelas trancavam no ombro xales de l� vermelha, e estas de croch�, de um amarelo desbotado. Viam-se homens de corpo nu, jogando a placa, com grande algazarra. Um grupo de italianos, assentado debaixo de uma �rvore, conversava ruidosamente, fumando cachimbo. Mulheres ensaboavam os filhos pequenos debaixo da bica, muito zangadas, a darem-lhes murros, a praguejar, e as crian�as berravam, de olhos fechados, esperneando. A casa da Machona estava num rebuli�o, porque a fam�lia ia sair a passeio; a velha gritava, gritava Nenen, gritava o Agostinho. De muitas outras saiam cantos ou sons de instrumentos; ouviam-se harm�nicas e ouviam-se guitarras, cuja discreta melodia era de vez em quando interrompida por um ronco forte de trombone.

Os papagaios pareciam tamb�m mais alegres com o domingo e lan�avam das gaiolas frases inteiras, entre gargalhadas e assobios. � porta de diversos c�modos, trabalhadores descansavam, de cal�a limpa e camisa de meia lavada, assentados em cadeira, lendo e soletrando jornais ou livros; um declamava em voz alta versos de �Os Lus�adas:, com um empenho feroz, que o punha rouco. Transparecia neles o prazer da roupa mudada depois de uma semana no corpo. As casinhas fumegavam um cheiro bom de refogados de carne fresca fervendo ao fogo. Do sobrado do Miranda s� as duas �ltimas janelas j� estavam abertas e, pela escada que descia para o quintal, passava uma criada carregando baldes de �guas servidas. Sentia-se naquela quieta��o de dia in�til a falta do resfolegar aflito das m�quinas da vizinhan�a, com que todos estavam habituados. Para al�m do solit�rio capinzal do fundo a pedreira parecia dormir em paz o seu sono de pedra; mas, em compensa��o, o movimento era agora extraordin�rio � frente da estalagem e � entrada da venda. Muitas lavadeiras tinham ido para o port�o, olhar quem passava; ao lado delas o Albino, vestido de branco, com o seu len�o engomado ao pesco�o, entretinha-se a chupar balas de a��car, que comprara ali mesmo ao tabuleiro de um baleiro fregu�s do corti�o.

Dentro da taverna, os martelos de vinho branco, os copos de cerveja nacional e os dois vint�ns de parati ou laranjinha sucediam-se por cima do balc�o, passando das m�os do Domingos e do Manuel para as m�os �vidas dos oper�rios e dos trabalhadores, que os recebiam com estrondosas exclama��es de p�ndega. A Isaura, que fora num pulo tomar o seu primeiro capil�, via-se tonta com os apalp�es que lhe davam. Leonor n�o tinha um instante de sossego, saltando de um lado para outro, com uma agilidade de mono, a fugir dos punhos calosos dos cavouqueiros que, entre risadas, tentavam agarr�-la; e insistia na sua amea�a do costume: �que se queixava ao juiz de orfe�, mas n�o se ia embora, porque defronte da venda viera estacionar um homem que tocava cinco instrumentos ao mesmo tempo, com um acompanhamento desafinado de bombo, pratos e guizos.

Eram apenas oito horas e j� muita gente comia e palavreava na casa de pasto ao lado da venda. Jo�o Rom�o, de roupa mudada como os outros, mas sempre em mangas de camisa, aparecia de espa�o em espa�o, servindo os comensais; e a Bertoleza, sempre suja e tisnada, sempre sem domingo nem dia santo, l� estava ao fog�o, mexendo as panelas e enchendo os pratos.

Um acontecimento, por�m, veio revolucionar alegremente toda aquela confedera��o da estalagem. Foi a chegada da Rita Baiana, que voltava depois de uma aus�ncia de meses, durante a qual s� dera noticias suas nas ocasi�es de pagar o aluguei do c�modo.

Vinha acompanhada por um moleque, que trazia na cabe�a um enorme sambur� carregado de compras feitas no mercado; um grande peixe espiava por entre folhas de alface com o seu olhar embaciado e triste, contrastando com as risonhas cores dos rabanetes, das cenouras e das talhadas de ab�bora vermelha.

- P�e isso tudo ai nessa porta. Ai no n�mero 9, pequeno! gritou ela ao moleque, indicando-lhe a sua casa, e depois pagou-lhe o carreto. - Podes ir embora, carapeta!

Desde que do port�o a bisparam na rua, levantou-se logo um coro de sauda��es.

- Olha! quem ai vem!

- Ol�! Bravo! � a Rita Baiana!

- J� te faz�amos morta e enterrada!

- E n�o � que o demo da mulata est� cada vez mais sacudida?...

- Ent�o, coisa-ruim! por onde andaste atirando esses quartos?

- Desta vez a coisa foi de esticar, hein?!

Rita havia parado em meio do p�tio.

Cercavam-na homens, mulheres e crian�as; todos queriam novas dela. N�o vinha em traje de domingo; trazia casaquinho branco, uma saia que lhe deixava ver o p� sem meia num chinelo de polimento com enfeites de marroquim de diversas cores. No seu farto cabelo, crespo e reluzente, puxado sobre a nuca, havia um molho de manjeric�o e um peda�o de baunilha espetado por um gancho. E toda ela respirava o asseio das brasileiras e um odor sensual de trevos e plantas arom�ticas. Irrequieta, saracoteando o atrevido e rijo quadril baiano, respondia para a direita e para a esquerda, pondo � mostra um fio de dentes claros e brilhantes que enriqueciam a sua fisionomia com um realce fascinador.

Acudiu quase todo o corti�o para receb�-la. Choveram abra�os e as chufas do bom acolhimento.

Por onde andara aquele diabo, que n�o aparecia para mais de tr�s meses?

- Ora, nem me fales, cora��o! Sabe? pagode de roga! Que hei de fazer? � a minha cacha�a velha!...

- Mas onde estiveste tu enterrada tanto tempo, criatura?

- Em Jacarepagu�.

- Com quem?

- Com o Firmo...

- Oh! Ainda dura isso?

- Cala a boca! A coisa agora � s�ria!

- Qual! Quem mesmo? Tu? Passa fora!

- Paix�es da Rita! exclamou o Bruno com uma risada. Uma por ano! N�o contando as mi�das!

- N�o! isso � que n�o! Quando estou com um homem n�o olho pra outro!

Leoc�dia, que era perdida pela mulata, saltara-lhe ao pesco�o ao primeiro encontro, e agora, defronte dela, com as m�os nas cadeiras, os olhos �midos de como��o, rindo, sem se fartar de v�-la, fazia-lhe perguntas sobre perguntas:

- Mas por que n�o te metes tu logo por uma vez com o Firmo? por que n�o te casas com ele?

- Casar? protestou a Rita. Nessa n�o cai a filha de meu pai! Casar? Livra! Para qu�? para arranjar cativeiro? Um marido � pior que o diabo; pensa logo que a gente � escrava! Nada! qual! Deus te livre! N�o h� como viver cada um senhor e dono do que � seu!

E sacudiu todo o corpo num movimento de desd�m que lhe era peculiar.

- Olha s� que peste! considerou Augusta, rindo, muito mole, na sua honestidade pregui�osa.

Esta tamb�m achava infinita gra�a na Rita Baiana e seria capaz de levar um dia inteiro a v�-la dan�ar o chorado.

Florinda ajudava a m�e a preparar o almo�o, quando lhe cheirou que chegara a mulata, e veio logo correndo, a rir-se desde longe, cair-lhe nos bra�os. A pr�pria Marciana, de seu natural sempre triste e metida consigo, apareceu � janela, para saud�-la. A das Dores, com as saias arrepanhadas no quadril e uma toalha por cima amarrada pela parte de tr�s e servindo de avental, o cabelo ainda por pentear, mas entrouxado no alto da cabe�a, abandonou a limpeza que fazia em casa e veio ter com a Rita, para dar-lhe uma palmada e gritar-lhe no nariz:

- Desta vez tomaste um fart�o, hein, mulata assanhada?...

E, ambas a ca�rem de riso, abra�aram-se em intimidade de amigas, que n�o t�m segredos de amor uma para a outra.

A Bruxa veio em sil�ncio apertar a m�o de Rita e retirou-se logo.

- Olha a feiticeira! bradou esta �ltima, batendo no ombro da idiota. Que diabo voc� tanto reza, tia Paula? Eu quero que voc� me d� um feiti�o para prender meu homem!

E tinha uma frase para cada um que se aproximasse. Ao ver Dona Isabel, que apareceu toda cerimoniosa na sua saia da missa e com o seu velho xale de Macau, abra�ou-a e pediu-lhe uma pitada, que a senhora recusou, resmungando:

- Sai da� diabo!

- Cad� Pombinha? perguntou a mulata.

Mas, nessa ocasi�o, Pombinha acabava justamente de sair de casa, muito bonita e asseada com um vestido novo de cetineta. As m�os ocupadas com o livro de rezas, o len�o e a sombrinha.

- Ah! Como est� chique! exclamou a Rita, meneando a cabe�a. � mesmo uma flor! - e logo que Pombinha se p�s ao seu alcance, abra�ou-lhe a cintura e deu-lhe um beijo. - O Jo�o Costa se n�o te fizer feliz como os anjos sou capaz de abrir-lhe o casco com o salto do chinelo! Juro pelos cabelos do meu homem! - E depois, tornando-se s�ria,

perguntou muito em voz baixa a Dona Isabel: - J� veio?... ao que a velha respondeu negativamente com um desconsolado e mudo abanar de orelhas.

O circunspecto Alexandre, sem querer declinar da sua gravidade, pois que estava fardado e pronto para sair, contentou-se em fazer com a m�o um cumprimento � mulata, ao qual retrucou esta com uma contin�ncia militar e uma gargalhada que o desconcertaram.

Iam fazer coment�rios sobre o caso, mas a Rita, voltando-se para o outro lado, gritou:

- Olha o velho Lib�rio! Como est� cada vez mais duro!... N�o se entrega por nada o dem�nio do judeu!

E correu para o lugar, onde estava, aquecendo-se ao belo sol de abril, um octogen�rio, seco, que parecia mumificado pela idade, a fumar num resto de cachimbo, cujo pipo desaparecia na sua boca j� sem l�bios.

- �h! �h! fez ele, quando a mulata se aproximou.

- Ent�o? perguntou Rita, abaixando-se para tocar-lhe no ombro. Quando � o nosso neg�cio?... Mas voc� h� de deixar-me primeiro abrir o bauzinho de folha!...

Lib�rio riu-se com as gengivas, tentando apalpar as coxas da Baiana, por ca�oada, afetando lux�ria.

Todos acharam gra�a nesta pantomimice do velhinho, e ent�o, a mulata, para completar a brincadeira, deu uma volta entufando as saias e sacudiu-as depois sobre a cabe�a dele, que se fingiu indignado, a fungar exageradamente.

E entre a alegria levantada pela sua reapari��o no corti�o, a Rita deu conta de que pintara na sua aus�ncia; disse o muito que festou em Jacarepagu�; o entrudo que fizera pelo carnaval. Tr�s meses de folia! E, afinal abaixando a voz, segredou �s companheiras que � noite teriam um pagodinho de viol�o. Podiam contar como certo!

Esta �ltima noticia causou verdadeiro j�bilo no audit�rio. As patuscadas da Rita Baiana eram sempre as melhores da estalagem. Ningu�m como o diabo da mulata para armar uma fun��o que ia pelas tantas da madrugada, sem saber a gente como foi que a noite se passou t�o depressa. Al�m de que �era aquela franqueza! enquanto houvesse dinheiro ou cr�dito, ningu�m morria com a tripa marcha ou com a goela seca!�

- Diz-me c�, � Leocadinha! quem s�o aqueles jururus que est�o agora no 35? indagou ela, vendo o Jer�nimo � porta da casa com a mulher.

- Ah! explicou a interrogada, � o Jeromo e mais a Piedade, um casal que inda n�o conheces. Entrou ao depois que arribaste. Boa gente, coitados!

Rita carregou para dentro do seu c�modo as provis�es que trouxera; abriu logo a janela e p�s-se a cantar. Sua presen�a enchia de alegria a estalagem toda.

O Firmo, o mulato com quem ela agora vivia metida, o dem�nio que a desencabe�ara para aquela maluqueira, de Jacarepagu�, ia l� jantar esse dia com um amigo. Rita declarava isto �s companheiras, amolando uma faquinha no tijolo da sua porta, para escamar o peixe; enquanto os gatos, aqueles mesmos que perseguiam o sardinheiro, vinham, um a um, chegando-se todos s� com o ru�do da afia��o do ferro.

Ao lado direito da casinha da mulata, no n�mero 8, a das Dores preparava-se tamb�m para receber nesse dia o seu amigo e dispunha-se a fazer uma limpeza geral nas paredes, nos tetos, no ch�o e nos m�veis, antes de meter-se na cozinha. Descal�a, com a saia levantada at� ao joelho, uma toalha na cabe�a, os bra�os arrega�ados, viam-na passar de carreira, de casa para a bica e da bica outra vez para casa, carregando pesados baldes cheios de �gua. E da� a pouco apareciam ajudantes gratuitos para os arranjos do jantar, tanto do lado da das Dores, como do lado da Rita Baiana. O Albino encarregou-se de varrer e arrumar a casa desta, entretanto que a mulata ia para o fog�o preparar os seus quitutes do Norte. E veio a Florinda, e veio a Leoc�dia, e veio a Augusta, impacientes todas elas pelo pagode que havia de sair � noite, depois do jantar. Pombinha n�o apareceu durante o dia, porque estava muito ocupada, aviando a correspond�ncia dos trabalhadores e das lavadeiras: servi�o este que ela deixava para os domingos.

Numa pequena mesa, coberta por um peda�o de chita, com o tinteiro ao lado da caixinha de papel, a menina escrevia, enquanto o dono ou dona da carta ditava em voz alta o que queria mandar dizer � fam�lia. ou a algum mau devedor de roupa lavada. E ia lan�ando tudo no papel, apenas com algumas ligeiras modifica��es, para melhor, no modo de exprimir a id�ia. Pronta uma carta, sobrescritava-a, entregava-a ao dono e chamava por outro, ficando a s�s com um de cada vez, pois que nenhum deles queria dar o seu recado em presen�a de mais ningu�m sen�o de Pombinha. De sorte que a pobre rapariga ia acumulando no seu cora��o de donzela toda a s�mula daquelas paix�es e daqueles ressentimentos, �s vezes mais f�tidos do que a evapora��o de um lameiro em dias de grande calor.

- Escreva l�, Nh� Pombinha! disse junto dela um cavouqueiro, co�ando a cabe�a; mas fa�a letra grande, que � pra mulher entender! Diga-lhe que n�o mando desta feita o dinheiro que me pediu, porque agora n�o o tenho e estou muito acossado de apertos; mas que lho prometo pro m�s. Ela que se v� arranjando por l�, que eu c� sabe Deus como me co�o; e que, se o Lu�s, o irm�o, resolver de vir, que mo mande dizer com tempo, para ver se se lhe d� furo � vida por aqui; que isto de vir sem inda ter p�ronde, � fraco neg�cio, porque as coisas por c� n�o correm l� para que digamos!

E depois que a Pombinha escreveu, acrescentou:

- Que eu tenho sentido muito a sua falta dela; mas tamb�m sou o mesmo e n�o me meto em porcarias e relaxamento; e que tenciono mandar busc�-la, logo que Deus me ajude, e a Virgem! Que ela n�o tem de que se arreliar por mor do dinheiro n�o ir desta; que, como l� diz o outro: quando n�o h� el-rei o perde! Ah! (ia esquecendo!) quanto � Lib�nia, � tirar da� o ju�zo! que a Lib�nia se atirou aos c�es e faz hoje m� vida na Rua de S�o Jorge; que se esque�a dela por vez e perca o amor �s duas coroas que lhe emprestou!

E a menina escrevia tudo, tudo, apenas interrompendo o seu trabalho para fitar, com a m�o no queixo, o cavouqueiro, � espera de nova frase.

VII

E assim ia correndo o domingo no corti�o at� �s tr�s da tarde, horas em que chegou mestre Firmo, acompanhado pelo seu amigo Porfiro, trazendo aquele o viol�o e o outro o cavaquinho.

Firmo, o atual amante de Rita Baiana, era um mulato pachola, delgado de corpo e �gil como um cabrito; capad�cio de marca, pern�stico, s� de ma�adas, e todo ele se quebrando nos seus movimentos de capoeira. Teria seus trinta e tantos anos, mas n�o parecia ter mais de vinte e poucos. Pernas e bra�os finos, pesco�o estreito, por�m forte; n�o tinha m�sculos, tinha nervos. A respeito de barba, nada mais que um bigodinho crespo, petulante, onde reluzia cheirosa a brilhantina do barbeiro; grande cabeleira encaracolada, negra, e bem negra, dividida ao meio da cabe�a, escondendo parte da testa e estufando em grande gaforina por debaixo da aba do chap�u de palha, que ele punha de banda, derreado sobre a orelha esquerda.

Vestia, como de costume, um palet� de lustrina preta j� bastante usado, cal�as apertadas nos joelhos, mas t�o largas na bainha que lhe engoliam os pezinhos secos e ligeiros. N�o trazia gravata, nem colete, sim uma camisa de chita nova e ao pesco�o, resguardando o colarinho, um len�o alvo e perfumado; � boca um enorme charuto de dois vint�ns e na m�o um grosso porrete de Petr�polis, que nunca sossegava, tantas voltas lhe dava ele a um tempo por entre os dedos magros e nervosos.

Era oficial de torneiro, oficial perito e vadio; ganhava uma semana para gastar num dia; �s vezes, por�m, os dados ou a roleta multiplicavam-lhe o dinheiro, e ent�o ele fazia como naqueles �ltimos tr�s meses: afogava-se numa boa p�ndega com a Rita Baiana. A Rita ou outra. �O que n�o faltava por a� eram saias para ajudar um homem a cuspir o cobre na boca do diabo!� Nascera no Rio de Janeiro, na Corte; militara dos doze aos vinte anos em diversas maltas de capoeiras; chegara a decidir elei��es nos tempos do voto indireto. Deixou nome em v�rias freguesias e mereceu abra�os, presentes e palavras de gratid�o de alguns importantes chefes de partido. Chamava a isso a sua �poca de paix�o pol�tica; mas depois desgostou-se com o sistema de governo e renunciou �s lutas eleitorais, pois n�o conseguira nunca o lugar de continuo numa reparti��o p�blica - o seu ideal! -Setenta mil-r�is mensais: trabalho das nove �s tr�s.

Aquela amiga��o com a Rita Baiana era uma coisa muito complicada e vinha de longe; vinha do tempo em que ela ainda estava chegadinha de fresco da Bahia, em companhia da m�e, uma cafuza dura, capaz de arrancar as tripas ao Manduca da Praia. A cafuza morreu e o Firmo tomou conta da mulata; mas pouco depois se separaram por ci�mes, o que ali�s n�o impediu que se tornassem a unir mais tarde, e que de novo brigassem e de novo se procurassem. Ele tinha �paixa� pela Rita, e ela, apesar de vol�vel como toda a mesti�a, n�o podia esquec�-lo por uma vez; metia-se com outros, � certo, de quando em quando, e o Firmo ent�o pintava o caneco, dava por paus e por pedras, enchia-a de bofetadas, mas, afinal, ia procur�-la, ou ela a ele, e ferravam-se de novo, cada vez mais ardentes, como se aquelas turras constantes refor�assem o combust�vel dos seus amores.

O amigo que Firmo trazia aquele domingo em sua companhia, o Porfiro, era mais velho do que ele e mais escuro. Tinha o cabelo encarapinhado. Tip�grafo. Afinavam-se muito os dois tipos com as suas cal�as de boca larga e com os seus chap�us ao lado; mas o Porfiro tinha outra linha: n�o dispensava a sua gravata de cor saltando em la�o frouxo sobre o peito da camisa; fazia quest�o da sua bengalinha com cabe�a de prata e da sua piteira de �mbar e espuma, em que ele equilibrava um cigarro de palha.

Desde a entrada dos dois, a casa de Rita esquentou. Ambos tiraram os palet�s e mandaram vir parati, �a abrideira para muqueca baiana�. E n�o tardou que se ouvissem gemer o cavaquinho e o viol�o.

Ao lado chegava tamb�m o homem da das Dores, com um companheiro do com�rcio; vinham vestidos de fraque e chap�u alto. A Machona, Nenen e o Agostinho, j� de volta do seu passeio � cidade, l� estavam ajudando. Ficariam para o rega-bofe.

Um rumor quente, de dia de festa, ia-se formando naquele ponto da estalagem.

Tanto numa casa, como na outra, o jantar seria �s cinco horas. Rita �botou� vestido branco, de cambraia, encanudado a ferro. Leoc�dia, Augusta, o Bruno, o Alexandre e o Albino jantariam com ela no n�mero 9; e no n�mero 8, com a das Dores, ficariam, al�m dos parentes desta, Dona Isabel, Pombinha, Marciana e Florinda.

Jer�nimo e sua mulher foram convidados para ambas as mesas, mas n�o aceitaram o convite para nenhuma, dispostos a passar a tarde ao lado um do outro, tranq�ilamente como sempre, comendo em boa paz o seu cozido � moda da terra e bebendo o seu quartilho de verde pela mesma infusa.

Entretanto, os dois jantares vizinhos principiaram ruidosos logo desde a sopa e assanharam-se progressivamente.

Meia hora depois vinha das duas casas uma algazarra infernal. Falavam e riam todos ao mesmo tempo; tilintavam os talheres e os copos. C� de fora sentia-se perfeitamente o prazer que aquela gente punha em comer e beber � farta, com a boca cheia, os bei�os envernizados de molho gordo. Alguns c�es rosnavam � porta, roendo os ossos que traziam l� de dentro. De vez em quando, da janela de uma das casas aparecia uma das moradoras, chamando a vizinha, para entregar um prato cheio, permutando as duas entre si os quitutes e as petisqueiras em que eram mais peritas.

- Olha! gritava a das Dores para o n�mero 9, diz � Rita que prove deste zor�, pra ver que tal o acha, e que o vatap� estava muito gostoso! Se ela tem pimentas, que me mande algumas!

Do meio para o fim do jantar o baralho em ambas as casas era medonho. No n�mero 8 berravam-se brindes e cantos desafinados. O portugu�s amigo da das Dores, j� desengravatado e com os bra�os � mostra, vermelho, lustroso de suor, intumescido de vinho virgem e leit�o de forno, repotreava-se na sua cadeira, a rir forte, sem calar a boca, com a camisa a espipar-lhe pela braguilha aberta. O sujeito que a acompanhara fazia fosquinhas a Nenen, protegido no seu namoro por toda a roda, desde a respeit�vel Machona at� ao endemoninhado Agostinho, que n�o ficava quieto um instante, nem deixava sossegar a m�e, gritando um contra o outro como dois possessos. Florinda, sempre muito risonha e esperta, divertia-se a valer e, de vez em quando, levantava-se da mesa, para ir de carreira levar l� fora ao n�mero 12 um prato de comida � sua velha que, � �ltima hora, vindo-lhe o aborrecimento, resolvera n�o ir ao jantar. � sobremesa o esfogueado amigo da dona da casa exigiu que a amante se lhe assentasse nas coxas e dava-lhe beijos em presen�a de toda a companhia, o que fez com que Dona Isabel, impaciente por afastar a filha daquele inferno, declarasse que sentia muito calor e que ia l� para a porta esperar mais � fresca o caf�.

Em casa de Rita Baiana a anima��o era inda maior. Firmo e Porfiro faziam o diabo, cantando, tocando bestial�gicos, arremedando a fala dos pretos cassanges. Aquele n�o largava a cintura da mulata e s� bebia no mesmo copo com ela; o outro divertia-se a perseguir o Albino, galanteando-o afetadamente, para fazer rir � sociedade. O lavadeiro indignava-se, dava o cavaco�. Leoc�dia, a quem o vinho produzira del�rios hilaridade, torcia-se em gargalhadas, t�o fortes e sacudidas que desconjuntavam a cadeira em que ela estava; e, muito lubrificada pela bebedeira, punha os pesados p�s sobre os de Porfiro, ro�ando as pernas contra as dele e deixando-se apalpar pelo capad�cio. O Bruno, defronte dela, rubro e suado como se estivesse a trabalhar na forja, falava e gesticulava sem se levantar, praguejando ningu�m sabia contra quem. O Alexandre, � paisana, assentado ao lado da mulher, conservava quase toda a sua seriedade e pedia que n�o fizessem tanto barulho porque podiam ouvir da rua. E notou, em voz misteriosa, que o Miranda tinha vindo j� espiar por v�rias vezes da janela do sobrado.

- Que espie as vezes que quiser! bradou a Rita. Pois ent�o a gente n�o � senhora de estar um domingo em casa a seu gosto e com os amigos que entender?!... Que v� pro diabo que o lixe! Eu n�o como nem bebo do que � dele!

Os dois mulatos e o Bruno tamb�m eram da mesma opini�o. �Pois ent�o! Desde que se n�o ofendia, nem prejudicava a safardana nenhum com aquele divertimento, n�o havia de que falar!�

- E que n�o entiquem muito, amea�ou o Firmo, que comigo � nove! E o trunfo � paus!

O Porfiro exclamou:

- Se se incomodam com a gente... os incomodados s�o os que se mudam! Ora pistolas!

- O domingo fez-se pra gozar!... resmungou o Bruno, deixando cair a cabe�a nos bra�os cruzados sobre a mesa.

Mas ergueu-se logo, cambaleando, e acrescentou, despindo o bra�o direito at� o ombro:

- Eles que se fa�am finos, que os racho!

O Alexandre procurou acalm�-lo, dando-lhe um charuto.

Em uma outra casinha do corti�o acabava de estalar uma nova sobremesa, engrossando o barulho geral: era o jantar de um grupo de italianos mascates, onde o Delporto, o Pompeo, o Francesco e o Andr�a representavam as principais figuras. Todos eles cantavam em coro, mais afinados que nas outras duas casas; quase, por�m, que se lhes n�o podia ouvir as vozes, tantas e t�o estrondosas eram as pragas que soltavam ao mesmo tempo. De quando em quando, de entre o grosso e macho vozear dos homens, esguichava um falsete feminino, t�o estridente que provocava r�plica aos papagaios e aos perus da vizinhan�a. E, daqui e dali, iam rebentando novas algazarras em grupos formados c� e l� pela estalagem. Havia nos oper�rios e nos trabalhadores decidida disposi��o para pandegar, para aproveitar bem, at� ao fim, aquele dia de folga. A casa de pasto fermentava revolucionada, como um est�mago de b�bedo depois de grande br�dio, e arrotava sobre o p�tio uma baforada quente e ruidosa que entontecia.

O Miranda apareceu furioso � janela, com o seu tipo de comendador, a barriga empinada para a frente, de palet� branco, um guardanapo ao pesco�o e um trinchante empunhado na destra, como uma espada.

- V�o gritar pra o inferno, com um milh�o de raios! berrou ele, amea�ando para baixo. Isto tamb�m j� � demais! Se n�o se calam, vou daqui direito chamar a policia! S�cia de brutos!

Com os berros do Miranda muita gente chegou � porta de casa, e o coro de gargalhadas, que ningu�m podia conter naquele momento de alegria, ainda mais o p�s fora de si.

- Ah, canalhas! O que eu devia fazer era atirar-lhes daqui, como a c�es danados!

Uma vaia un�ssona ecoou em todo o p�tio da estalagem, enquanto em volta do negociante surgiam v�rias pessoas, puxando-o para dentro de casa.

- Que � isso, Miranda! Ent�o! Est�s agora a dar palha?...

- O que eles querem � que encordoes!...

- Saia da� papai!

- Olhe alguma pedrada, esta gente � capaz de tudo!

E via-se de relance Dona Estela, com a sua palidez de flor meia fanada, e Zulmira, l�vida, um ar de fastio a faz�-la feia, e o Henriquinho, cada vez mais bonito, e o velho Botelho, indiferente, a olhar para toda esta porcaria do mundo com o profundo desprezo dos que j� n�o esperam nada dos outros, nem de si pr�prios.

- Canalhas! repisava o Miranda.

O Alexandre, que fora de carreira enfiar a sua farda, apresentou-se ent�o e disse ao negociante que n�o era prudente atirar insultos c� pra baixo. Ningu�m o tinha provocado! Se os moradores da estalagem jantavam em companhia de amigos, l� em cima o Miranda tamb�m estava comendo com os seus convidados! Era mau insultar, porque palavra puxa palavra, e, em caso de ter de depor na policia, ele, Alexandre, deporia a favor de quem tivesse raz�o!...

- Fomente-se! respondeu o negociante, voltando-lhe as costas.

- J� se viu chubregas mais atrevido?! exclamou Firmo, que at� ai estivera calado, � porta da Rita, com as m�os nas cadeiras, a fitar provocadoramente o Miranda.

E gritando mais alto, para ser bem ouvido:

- Facilita muito, meu boi manso, que te escorvo os galhos na primeira ocasi�o!

O Miranda foi arrancado com viol�ncia da janela, e esta fechada logo em seguida com estrondo.

- Deixa l� esse labrego! resmungou Porfiro, tomando o amigo pelo bra�o e fazendo-o recolher-se � casa da mulata. Vamos ao caf�, � o que �, antes que esfrie!

Defronte da porta de Rita tinham vindo postar-se diversos moradores do corti�o, jornaleiros de baixo sal�rio, pobre gente miser�vel, que mal podia matar a fome com o que ganhava. Ainda assim n�o havia entre eles um s� triste. A mulata convidou-os logo a comer um bocado e beber um trago. A proposta foi aceita alegremente.

E a casa dela nunca se esvaziava.

Anoitecia j�.

O velho Lib�rio, que jamais ningu�m sabia ao certo onde almo�ava ou jantava, surgiu do seu buraco, que nem jabuti quando v� chuva.

Um tip�o, o velho Lib�rio! Ocupava o pior canto do corti�o e andava sempre a fariscar os sobejos alheios, filando aqui, filando ali, pedindo a um e a outro, como um mendigo, chorando mis�rias eternamente, apanhando pontas de cigarro para fumar no cachimbo, cachimbo que o sum�tico roubara de um pobre cego decr�pito. Na estalagem diziam todavia que Lib�rio tinha dinheiro aferrolhado, contra o que ele protestava ressentido, jurando a sua extrema penaria. E era t�o feroz o dem�nio naquela fome de c�o sem dono, que as m�es recomendavam �s suas crian�as todo o cuidado com ele, porque o diabo do velho, quando via algum pequeno desacompanhado, punha-se logo a rond�-lo, a cerc�-lo de festas e a fazer-lhe ratices para o engabelar, at� conseguir furtar-lhe o doce ou o vintenzinho que o pobrezito trazia fechado na m�o.

Rita f�-lo entrar e deu-lhe de comer e de beber; mas sob condi��o de que o esfomeado n�o se socasse demais, para n�o rebentar ali mesmo.

Se queria estourar, fosse estourar para longe!

Ele p�s-se logo a devorar, sofregamente, olhando inquieto para os lados, como se temesse que algu�m lhe roubasse a comida da boca. Engolia sem mastigar, empurrando os bocados com os dedos, agarrando-se ao prato e escondendo nas algibeiras o que n�o podia de uma s� vez meter para dentro do corpo.

Causava terror aquela sua implac�vel mand�bula, assanhada e devoradora; aquele enorme queixo, �vido, ossudo e sem um dente, que parecia ir engolir tudo, tudo, principiando pela pr�pria cara, desde a imensa batata vermelha que amea�ava j� entrar-lhe na boca, at� as duas bochechinhas engelhadas, os olhos, as orelhas, a cabe�a inteira, inclusive a sua grande calva, lisa como um queijo e guarnecida em redor por uns p�los pu�dos e ralos como farripas de coco.

Firmo prop�s embebed�-lo, s� para ver a sorte que ele daria. O Alexandre e a mulher opuseram-se, mas rindo muito; nem se podia deixar de rir, apesar do espanto, vendo aquele resto de gente, aquele esqueleto velho, coberto por uma pele seca, a devorar, a devorar sem tr�guas, como se quisesse fazer provis�o para uma outra vida.

De repente, um peda�o de carne, grande demais para ser ingerido de uma vez, engasgou-o seriamente. Lib�rio come�ou a tossir, aflito, com os olhos sumidos, a cara tingida de uma vermelhid�o apopl�tica. A Leoc�dia, que era quem lhe ficava mais perto, soltou-lhe um murro nas costas.

O glut�o arremessou sobre a toalha da mesa o bocado de carne j� meio triturado.

Foi um nojo geral.

- Porco! gritou Rita, arredando-se.

- Pois se o bruto quer socar tudo ao mesmo tempo! disse Porfiro. Parece que nunca viu comida, este animal!

E notando que ele continuava ainda mais s�frego por ter perdido um instante:

- Espere um pouco, lobo! Que diabo! A comida n�o foge! H� muito ai com que te fartares por uma vez! Com efeito!

- Beba �gua, tio Lib�rio! aconselhou Augusta.

E, boa, foi buscar um copo de �gua e levou-lho a boca.

O velho bebeu, sem despregar os olhos do prato.

Arre diabo! resmungou Porfiro, cuspindo para o lado. Este � mesmo capaz de comer-nos a todos n�s, sem achar espinhas!

Albino, esse, coitado! � que n�o comia quase nada e o pouco que conseguia meter no est�mago fazia-lhe mal. Rita, para bolir com ele, disse que semelhante fastio era gravidez com certeza.

- Voc� j� come�a, hein?... balbuciou o pobre mo�o, esgueirando-se com a sua x�cara de caf�.

- Olha, cuidado! gritou-lhe a mulata. Pouco caf�, que faz mal ao leite, e a crian�a pode sair trigueira!

O Albino voltou para dizer muito s�rio � Rita que n�o gostava dessas brincadeiras.

Alexandre, que havia acendido um charuto, depois de oferecer outros, galantemente, aos companheiros, arriscou, para tamb�m fazer a sua pilh�ria, que o sonso do Albino fora pilhado �s voltas com a Bruxa no capinzal dos fundos da estalagem, debaixo das mangueiras.

S� a Leoc�dia achou gra�a nisto e riu a bandeiras despregadas. Albino declarou, quase chorando, que ele n�o mexia com pessoa alguma, e que ningu�m, por conseguinte, devia mexer com ele.

- Mas afinal, perguntou Porfiro, � mesmo exato que este pamonha n�o conhece mulher?...

- Ele � quem pode responder! acudiu a mulata. E esta hist�ria vai ficar hoje liquidada! Vamos l�, � Albino! confessa-nos tudo, ou mal te ter�s de haver com a gente!

- Se eu soubesse que era para isto que me chamaram n�o tinha vindo c�, sabe? gaguejou o lavadeiro, amuado. Eu n�o sirvo de palito!

E ter-se-ia retirado chorando, se a Rita n�o lhe cortasse a sa�da, dizendo, como se falasse a uma criatura do seu sexo, mais fraca do que ela:

- Ora n�o sejas tolo! Deixa-te ficar ai! Se deres o cavaco � pior!

Albino limpou as l�grimas e foi sentar-se de novo.

Entretanto, a noite fechava-se, refrescando a tarde com o sudoeste. Bruno roncava no lugar em que tinha jantado. A Leoc�dia passara livremente a perna para cima da de Porfiro, que a abra�ava, bebendo parati aos c�lices.

Mas o Firmo lembrou que seria melhor irem l� para fora; e todos, menos o Bruno, dispuseram-se a deixar a sala, enquanto o velho Lib�rio! pedia a Alexandre um cigarro para despejar no cachimbo. Servido, o filante desapareceu logo, correndo ao faro de outros jantares. Rita, Augusta e Albino ficaram lavando a lou�a e arrumando a casa.

L� fora o coro dos italianos se prolongava numa cad�ncia mon�tona e arrastada, em que havia muito peso de embriaguez. Junto � porta de v�rias casas faziam-se grupos de pessoas assentadas em cadeiras ou no ch�o; mas a roda da Rita Baiana era a maior, porque fora engrossada pelos convivas da das Dores. O fumo dos cachimbos e dos charutos elevava-se de toda a parte. Decrescera o ru�do geral; fazia-se a digest�o; j� ningu�m discutia e todos conversavam.

Acendeu-se o lampi�o do p�tio. Iluminaram-se diversas janelas das casinhas.

Agora, no sobrado do Miranda � que era o maior barulho. Saia de l� uma terr�vel gritaria de hipes e hurras, virgulada pelo desarrolhar de garrafas de champanha.

- Como eles atacam!... observou Alexandre, j� de novo sem farda.

- E, no entanto, reprovam que a gente coma o que � seu com um pouco mais de alegria! comentou a Rita. Uma s�cia!

Falou-se ent�o largamente a respeito da fam�lia do Miranda, principalmente de Dona Estela e do Henrique. A Leoc�dia afian�ou que, numa ocasi�o, espiando por cima do muro, trepada num mont�o de garrafas vazias que havia no

p�tio do corti�o, vira a sirigaita com a cara agarrada � do estudante, aos beijos e aos abra�os, que era obra; e assim que os dois deram f� que ela os espreitava, deitaram a fugir que nem c�es apedrejados.

A Augusta Carne-Mole benzeu-se, com uma invoca��o � Virgem Sant�ssima, e o companheiro do amigo da das Dores, que insistia no seu namoro com a Nenen, mostrou-se muito admirado com a noticia, �supunha Dona Estela um modelo de seriedade�.

- Qual! negou Alexandre. Isso por ai � tudo uma pouca-vergonha, que faz descrer um homem de si mesmo! Eu tamb�m j� vi de uma feita bem boas coisas pela sombra dela na parede; mas n�o era com o estudante, era com um sujeito que l� ia �s vezes, um barbado, careca e comido de bexigas. E a pequena vai pelo mesmo conseguinte...

Esta novidade produziu grande surpresa no grupo inteiro. Quiseram os pormenores e o Alexandre n�o se fez de rogado: o namoro da Zulmira era com um rapazola magro, de lunetas, bigode louro, bem vestido, que lhe rondava a casa � noite e �s vezes de madrugada. Parecia estudante!

- O que eles t�m feito? inquiriu a das Dores.

- Por enquanto a coisa n�o passa de namorico da janela para a rua. Conversam sempre naquela �ltima do lado de l� de fora. J� os tenho apreciado quando estou de servi�o. Ele fala muito em casamento e a pequena o quer; mas, pelo jeito, o velho � que lhe corta as asas.

- Ele n�o tem entrada na casa?

- N�o! Pois isso � que eu acho feio...! Se ele quer casar com a menina, devia entender-se com a fam�lia e n�o estar agora daqui debaixo a fazer-lhe fosquinhas!

- Sim, intrometeu-se o Firmo; mas n�o v� que aquele mesmo, o Miranda, vai dar a filha a um estudante! Guarda-a para um dos seus... Quem sabe at� se o bruto n�o tem j� de olho por ai algum cafezista p�-de-boi!... Eu sei o que � essa gente!

- Por isso � que se v� tanta porcaria por esse mundo de Cristo! disse a Augusta. Filha minha s� se casar� com quem ela bem quiser; que isto de casamentos empurrados � for�a acabam sempre desgra�ando tanto a mulher como o homem! Meu marido � pobre e � de cor, mas eu sou feliz, porque casei por meu gosto!

- Ora! Mais vale um gosto que quatro vint�ns!

Nisto come�ou a gemer � porta do 35 uma guitarra; era de Jer�nimo. Depois da ruidosa alegria e do bom humor, em que palpitara �quela tarde toda a rep�blica do corti�o, ela parecia ainda mais triste e mais saudosa do que nunca:

�Minha vida tem desgostos,

Que s� eu sei compreender...

Quando me lembro da terra

Parece que vou morrer...�

E, com o exemplo da primeira, novas guitarras foram acordando. E, por fim, a mon�tona cantiga dos portugueses enchia de uma alma desconsolada o vasto arraial da estalagem, contrastando com a barulhenta alacridade que vinha l� de cima, do sobrado do Miranda.

�Terra minha, que te adoro,

Quando � que eu te torno a ver?

Leva-me deste desterro;

Basta j� de padecer.�

Abatidos pelo fadinho harmonioso e nost�lgico dos desterrados, iam todos, at� mesmo os brasileiros, se concentrando e caindo em tristeza; mas, de repente, o cavaquinho do Porfiro, acompanhado pelo viol�o do Firmo, romperam vibrantemente com um chorado baiano. Nada mais que os primeiros acordes da m�sica crioula para que o sangue de toda aquela gente despertasse logo, como se algu�m lhe fustigasse o corpo com urtigas bravas. E seguiram-se outras notas, e outras, cada vez mais ardentes e mais delirantes. J� n�o eram dois instrumentos que soavam, eram l�bricos gemidos e suspiros soltos em torrente, a correrem serpenteando, como cobras numa floresta incendiada; eram ais convulsos, chorados em frenesi de amor; m�sica feita de beijos e solu�os gostosos; car�cia de fera, car�cia de doer, fazendo estalar de gozo.

E aquela m�sica de fogo doidejava no ar como um aroma quente de plantas brasileiras, em torno das quais se nutrem, girando, moscardos sensuais e besouros venenosos, freneticamente, b�bedos do delicioso perfume que os mata de vol�pia.

E � viva crepita��o da m�sica baiana calaram-se as melanc�licas toadas dos de al�m-mar. Assim � refulgente luz do tr�picos amortece a fresca e doce claridade dos c�us da Europa, como se o pr�prio sol americano, vermelho e esbraseado, viesse, na sua lux�ria de sult�o, beber a l�grima medrosa da deca�da rainha dos mares velhos.

Jer�nimo alheou-se de sua guitarra e ficou com as m�os esquecidas sobre as cordas, todo atento para aquela m�sica estranha, que vinha dentro dele continuar uma revolu��o come�ada desde a primeira vez em que lhe bateu em cheio no rosto, como uma bofetada de desafio, a luz deste sol orgulhoso e selvagem, e lhe cantou no ouvido o estribilho da primeira cigarra, e lhe acidulou a garganta o suco da primeira fruta provada nestas terras de brasa, e lhe entonteceu a alma o aroma do primeiro bogari, e lhe transtornou o sangue o cheiro animal da primeira mulher, da primeira mesti�a, que junto dele sacudiu as saias e os cabelos.

- Que tens tu, Jeromo?... perguntou-lhe a companheira, estranhando-o.

- Espera, respondeu ele, em voz baixa: deixa ouvir!

Firmo principiava a cantar o chorado, seguido por um acompanhamento de palmas.

Jer�nimo levantou-se, quase que maquinalmente, e seguido por Piedade, aproximou-se da grande roda que se formara em torno dos dois mulatos. Ai, de queixo grudado �s costas das m�os contra uma cerca de jardim, permaneceu, sem tugir nem mugir, entregue de corpo e alma �quela cantiga sedutora e voluptuosa que o enleava e tolhia, como � robusta gameleira brava o cip� flex�vel, carinhoso e trai�oeiro.

E viu a Rita Baiana, que fora trocar o vestido por uma saia, surgir de ombros e bra�os nus, para dan�ar. A lua destoldara-se nesse momento, envolvendo-a na sua coma de prata, a cujo refulgir os meneios da mesti�a melhor se acentuavam, cheios de uma gra�a irresist�vel, simples, primitiva, feita toda de pecado, toda de para�so, com muito de serpente e muito de mulher.

Ela saltou em meio da roda, com os bra�os na cintura, rebolando as ilhargas e bamboleando a cabe�a, ora para a esquerda, ora para a direita, como numa sofreguid�o de gozo carnal, num requebrado luxurioso que a punha ofegante; j� correndo de barriga empinada; j� recuando de bra�os estendidos, a tremer toda, como se se fosse afundando num prazer grosso que nem azeite, em que se n�o toma p� e nunca se encontra fundo. Depois, como se voltasse � vida, soltava um gemido prolongado, estalando os dedos no ar e vergando as pernas, descendo, subindo, sem nunca parar com os quadris, e em seguida sapateava, mi�do e cerrado, freneticamente, erguendo e abaixando os bra�os, que dobrava, ora um, ora outro, sobre a nuca, enquanto a carne lhe fervia toda, fibra por fibra, tirilando.

Em torno o entusiasmo tocava ao del�rio; um grito de aplausos explodia de vez em quando, rubro e quente como deve ser um grito sa�do do sangue. E as palmas insistiam, cadentes, certas, num ritmo nervoso, numa persist�ncia de loucura. E, arrastado por ela, pulou � arena o Firmo, �gil, de borracha, a fazer coisas fant�sticas com as pernas, a derreter-se todo, a sumir-se no ch�o, a ressurgir inteiro com um pulo, os p�s no espa�o, batendo os calcanhares, os bra�os a querer fugirem-lhe dos ombros, a cabe�a a querer saltar-lhe. E depois, surgiu tamb�m a Florinda, e logo o Albino e at�, quem diria! o grave e circunspecto Alexandre.

O chorado arrastava-os a todos, despoticamente, desesperando aos que n�o sabiam dan�ar. Mas, ningu�m como a Rita; s� ela, s� aquele dem�nio, tinha o m�gico segredo daqueles movimentos de cobra amaldi�oada; aqueles requebros que n�o podiam ser sem o cheiro que a mulata soltava de si e sem aquela voz doce, quebrada, harmoniosa, arrogante, meiga e suplicante.

E Jer�nimo via e escutava, sentindo ir-se-lhe toda a alma pelos olhos enamorados.

Naquela mulata estava o grande mist�rio, a s�ntese das impress�es que ele recebeu chegando aqui: ela era a luz ardente do meio-dia; ela era o calor vermelho das sestas da fazenda; era o aroma quente dos trevos e das baunilhas, que o atordoara nas matas brasileiras; era a palmeira virginal e esquiva que se n�o torce a nenhuma outra planta; era o veneno e era o a��car gostoso; era o sapoti mais doce que o mel e era a castanha do caju, que abre feridas com o seu azeite de fogo; ela era a cobra verde e trai�oeira, a lagarta viscosa, a muri�oca doida, que esvoa�ava havia muito tempo em torno do corpo dele, assanhando-lhe os desejos, acordando-lhe as fibras embambecidas pela saudade da terra, picando-lhe as art�rias, para lhe cuspir dentro do sangue uma centelha daquele amor setentrional, uma nota daquela m�sica feita de gemidos de prazer, uma larva daquela nuvem de cant�ridas que zumbiam em torno da Rita Baiana e espalhavam-se pelo ar numa fosforesc�ncia afrodis�aca.

Isto era o que Jer�nimo sentia, mas o que o tonto n�o podia conceber. De todas as impress�es daquele resto de domingo s� lhe ficou no esp�rito o entorpecimento de uma desconhecida embriaguez, n�o de vinho, mas de mel chuchurreado no c�lice de flores americanas, dessas muito alvas, cheirosas e �midas, que ele na fazenda via debru�adas confidencialmente sobre os limosos p�ntanos sombrios, onde as oiticicas trescalam um aroma que entristece de saudade.

E deixava-se ficar, olhando. Outras raparigas dan�aram, mas o portugu�s s� via a mulata, mesmo quando, prostrada, fora cair nos bra�os do amigo. Piedade, a cabecear de sono, chamara-o v�rias vezes para se recolherem; ele respondeu com um resmungo e n�o deu pela retirada da mulher.

Passaram-se horas, e ele tamb�m n�o deu pelas horas que fugiram.

O circulo do pagode aumentou: vieram de l� defronte a Isaura e a Leonor, o Jo�o Rom�o e a Bertoleza, desembara�ados da sua faina, quiseram dar f� da patuscada um instante antes de ca�rem na cama; a fam�lia do Miranda pusera-se � janela, divertindo-se com a gentalha da estalagem; reunira povo l� fora na rua; mas Jer�nimo nada vira de tudo isso; nada vira sen�o uma coisa, que lhe persistia no esp�rito: a mulata ofegante a resvalar voluptuosamente nos bra�os do Firmo.

S� deu por si, quando, j� pela madrugada, se calaram de todo os instrumentos e cada um dos folgadores se recolheu � casa.

E viu a Rita levada para o quarto pelo seu homem, que a arrastava pela cintura.

Jer�nimo ficou sozinho no meio da estalagem. A lua, agora inteiramente livre das nuvens que a perseguiam, l� ia caminhando em sil�ncio na sua viagem misteriosa. As janelas do Miranda fecharam-se. A pedreira, ao longe, por detr�s da �ltima parede do corti�o, erguia-se como um monstro iluminado na sua paz. Uma quieta��o densa pairava j� sobre tudo; s� se distinguiam o bruxulear dos pirilampos na sombra das hortas e dos jardins, e os murm�rios das �rvores que sonhavam.

Mas Jer�nimo nada mais sentia, nem ouvia, do que aquela m�sica embalsamada de baunilha, que lhe entontecera a alma; e compreendeu perfeitamente que dentro dele aqueles cabelos crespos, brilhantes e cheirosos, da mulata, principiavam a formar um ninho de cobras negras e venenosas, que lhe iam devorar o cora��o.

E, erguendo a cabe�a, notou no mesmo c�u, que ele nunca vira sen�o depois de sete horas de sono, que era j� quase ocasi�o de entrar para o seu servi�o, e resolveu n�o dormir, porque valia a pena esperar de p�.

VIII

No dia seguinte, Jer�nimo largou o trabalho � hora de almo�ar e, em vez de comer l� mesmo na pedreira com os companheiros, foi para casa. Mal tocou no que a mulher lhe apresentou � mesa e meteu-se logo depois na cama, ordenando-lhe que fosse ter com Jo�o Rom�o e lhe dissesse que ele estava incomodado e ficava de descanso aquele dia.

- Que tens tu, Jeromo?...

- Morrinhento, filha... Vai, anda!

- Mas sentes-te mal?

- � mulher! vai fazer o que te disse e ao depois ent�o dar�s � l�ngua!

- Valha-me a Virgem! N�o sei se haver� ch� preto na venda!

E ela saiu, aflita. Qualquer novidade no marido, por menor que fosse, punha-a doida. �Pois um homem rijo, que nunca caia doente? Seria a febre amarela?... Jesus, Santo Filho de Maria, que nem pensar nisso era bom! Credo!�

A not�cia espalhou-se logo ali entre as lavadeiras.

- Foi da friagem da noite, afirmou a Bruxa, e deu um pulo � casa do trabalhador para receitar.

O doente repeliu-a, pedindo-lhe que o deixasse em paz; que ele do que precisava era de dormir. Mas n�o o conseguiu: atr�s da Bruxa correu a segunda mulher, e a terceira, e a quarta; e, afinal, fez-se durante muito tempo em sua casa um entrar e sair de saias. Jer�nimo perdeu a paci�ncia e ia protestar brutalmente contra semelhante invas�o, quando, pelo cheiro, sentiu que a Rita se aproximava tamb�m.

- Ah!

E desfranziu-se-lhe o rosto.

- Bons dias! Ent�o que � isso, vizinho? Voc� caiu doente com a minha chegada? Se tal soubera n�o vinha!

Ele riu-se. E era a primeira vez que ria desde a v�spera

A mulata aproximou-se da cama.

Como principiara a trabalhar esse dia, tinha as saias apanhadas na cintura e os bra�os completamente nus e frios da lavagem. O seu casaquinho branco abria-lhe no pesco�o, mostrando parte do peito cor de canela.

Jer�nimo apertou-lhe a m�o.

- Gostei de v�-la ontem dan�ar, disse, muito mais animado.

- J� tomou algum rem�dio?...

- A mulher falou ai em ch� preto...

- Ch�! Que asneira! Ch� � �gua morna! Isso que voc� tem � uma resfriagem. Vou-lhe fazer uma x�cara de caf� bem forte para voc� beber com um gole de parati, e me dir� se sua ou n�o, e fica depois fino e pronto para outra! Espera ai!

E saiu logo, deixando todo quarto impregnado dela.

Jer�nimo, s� com respirar aquele alm�scar, parecia melhor. Quando Piedade tornou, pesada, triste, resmungando consigo mesma, ele sentiu que principiava a enfar�-lo; e, quando a infeliz se aproximou do marido, este, fora do costume, notou-lhe o cheiro azedo do corpo. Voltou-lhe ent�o o mal-estar e desapareceu o �ltimo vest�gio do sorriso que ele tivera havia pouco.

- Mas que sentes tu, Jeromo?... Fala, homem! N�o me dizes nada! Assim m�assustas... Que tens, diz�-lo!

- N�o cozas o ch�. Vou tomar outra coisa...

- N�o queres o ch�? Mas � o rem�dio, filhinho de Deus!

- J� te disse que tomo outra mezinha. Oh!

Piedade n�o insistiu.

- Queres tu um escalda-p�s?...

- Toma-lo tu!

Ela calou-se. Ia a dizer que nunca o vira assim t�o �spero e seco, mas receou importun�-lo. �Era naturalmente a mol�stia que o punha rezinguento.�

Jer�nimo fechara os olhos, para a n�o ver, e ter-se-ia, se pudesse, fechado por dentro, para a n�o sentir. Ela, por�m, coitada! fora assentar-se � beira da cama, humilde e solicita, a suspirar, vivendo naquele instante, para e exclusivamente, para o seu homem, fazendo-se muito escrava dele, sem vontade pr�pria, acompanhando-lhe os menores gestos com o olhar, inquieta, que nem um c�o que, ao lado do dono, procura adivinhar-lhe as inten��es.

- �St� bem, filha, n�o vais tratar do teu servi�o?...

- N�o te d� isso cuidado! N�o parou o trabalho! Pedi � Leoc�dia que me esfregasse a roupa. Ela hoje tinha pouco que fazer e...

- Andaste mal...

- Ora! N�o h� tr�s dias que fiz outro tanto por ela... E demais, n�o foi que tivesse o homem doente, era a cala�aria do capinzal!

- Bom, bom, filha! n�o digas mal da vida alheia! Melhor seria que estivesses � tua tina em vez de ficar ai a murmurar do pr�ximo... Anda! vai tomar conta das tuas obriga��es.

- Mas estou-te a dizer que n�o h� transtorno!...

- Transtorno j� � estar eu parado; e o pior ser� pararem os dois!

- Eu queria ficar a teu lado, Jeromo!

- E eu acho que isso � tolice! Vai! anda!

Ela ia retirar-se, como um animal enxotado, quando deu com a Rita, que entrava muito ligeira e sacudida, trazendo na m�o a fumegante palangana de caf� com parati e no ombro um cobertor grosso para dar um suadouro ao doente.

- Ah! fez Piedade, sem encontrar uma palavra para a mulata.

E deixou-se ficar.

Rita, despreocupadamente, alegre e benfazeja como sempre, pousou a vasilha sobre a c�moda do orat�rio e abriu o cobertor.

- Isso � que o vai p�r fino! disse. Voc�s tamb�m, seus portugueses, por qualquer coisinha ficam logo pra morrer, com uma cara da �ltima hora! E ai, ai, Jesus, meu Deus! Ora esperte-se! N�o me seja maricas!

Ele riu-se assentando-se na cama.

- Pois n�o � assim mesmo? perguntou ela a Piedade, apontando para o car�o barbado de Jer�nimo. Olhe s� pr�aquela cara e diga-me se n�o est� a pedir que o enterrem!

A portuguesa n�o dizia nada, sorria contrafeita, no intimo, ressentida contra aquela invas�o de uma estranha nos cuidados pelo seu homem. N�o era a intelig�ncia nem a raz�o o que lhe apontava o perigo, mas o instinto, o faro sutil e desconfiado de toda a f�mea pelas outras, quando sente o seu ninho exposto.

- Est�-me a parecer que agora te achas melhor, hein?... desembuchou afinal, procurando o olhar do marido, sem conseguir disfar�ar de todo o seu descontentamento.

- S� com o cheiro! refor�ou a mulata, apresentando o caf� ao doente. Beba, ande! beba tudo e abafe-se! Quero, quando voltar logo, encontr�-lo pronto, ouviu? - E acrescentou, falando � Piedade, em tom mais baixo e pousando-lhe a m�o no ombro carnudo: - Ele daqui a nada deve estar ensopado de suor; mude-lhe toda a roupa e d�-lhe dois dedos de parati, logo que pe�a �gua. Cuidado com o vento!

E saiu expedida, agitando as saias, de onde se evolavam efl�vios de manjerona.

Piedade chegou-se ent�o para o cavouqueiro, que j� tinha sobre as pernas o cobertor oferecido pela Rita, e, ajudando-o a levar a tigela � boca, resmungou:

- Deus queira que isto n�o te v� fazer mal em vez de bem!... Nunca tomas caf�, nem gostas!...

- Isto n�o � por gosto, filha, � rem�dio!

Ele com efeito nunca entrara com o caf� e ainda menos com a cacha�a; mas engoliu de uma assentada o conte�do da tigela, puxando em seguida o cobertor at� �s ventas.

A mulher tratou de abafar-lhe bem os p�s e foi buscar um xale para lhe cobrir a cabe�a.

- Trata de sossegar! N�o te mexas!

E disp�s-se a ficar junto da cama, a vigi�-lo, s� andando na ponta dos p�s, abafando a respira��o, correndo a cada instante � porta de casa para pedir que n�o fizessem tanta bulha l� fora; toda ela desassossegada, numa afli��o quase

supersticiosa por aquele inc�modo de seu homem. Mas Jer�nimo n�o levou muito que a n�o chamasse para lhe mudar a roupa. O suor inundava-o.

- Ainda bem! exclamou ela, radiante.

E, depois de fechar hermeticamente a porta do quarto e meter um punhado de roupa suja numa fresta que havia numa das paredes, sacou-lhe fora a camisa molhada, enfiando-lhe logo outra pela cabe�a; em seguida tirou-lhe as ceroulas e come�ou, munida de uma toalha, a enxugar-lhe todo o corpo, principiando pelas costas, passando depois ao peito e aos sovacos, descendo logo �s n�degas, ao ventre e �s pernas, e esfregando sempre com tamanho vigor de pulso, que era antes uma massagem que lhe dava; e tanto assim que o sangue do cavouqueiro se revolucionou.

E a mulher, a rir-se, lisonjeada, ralhava:

- Tem ju�zo! Acomoda-te! N�o v�s que est�s doente?...

Ele n�o insistiu. Agasalhou-se de novo e pediu �gua. Piedade foi buscar o parati.

- Bebe isto, n�o bebas a �gua agora.

- Isto � cacha�a!

- Foi a Rita que disse para te dar...

Jer�nimo n�o precisou de mais nada para beber de um trago os dois dedos de restilo que havia no copo.

S�brio como era, e depois daquele disp�ndio de suor, o �lcool produziu-lhe logo de pronto o efeito voluptuoso e agrad�vel da embriaguez nos que n�o s�o b�bedos: um delicioso desfalecer de todo o corpo; alguma coisa do longo espregui�amento que antecede � satisfa��o dos sexos, quando a mulher, tendo feito esperar por ela algum tempo, aproxima-se afinal de n�s, numa avidez gulosa de beijos. Agora, no conforto da sua cama, na doce penumbra do quarto, com a roupa fresca sobre a pele, Jer�nimo sentia-se bem, feliz por ver-se longe da pedreira ardente e do sol c�ustico; ouvindo, de olhos fechados, o ronrom mon�tono da m�quina de massas, arfando ao longe, e o zunzum das lavadeiras a trabalharem, e, mais distante, um intermin�vel cantar de galos a porfia, enquanto um dobre de sinos rolava no ar, tristemente, anunciando um defunto da par�quia.

Quando Piedade chegou l� fora, dando parte do bom resultado do rem�dio, a Rita correu de novo ao quarto do doente.

- Ent�o, que me diz agora? Sente-se ou n�o melhorzinho?

Ele voltou para a rapariga o seu olhar de animal prostrado e, por �nica resposta, passou-lhe o bra�o esquerdo na cintura e procurou com a m�o direita segurar a dela. Queria com isto traduzir o seu reconhecimento, e a mulata assim o entendeu, tanto que consentiu: mal, por�m, a sua carne lhe tocou na carne, um desejo ardente apossou-se dele; uma vontade desensofrida de senhorear-se no mesmo instante daquela mulher e possu�-la inteira, devor�-la num s� hausto de lux�ria, trinc�-la como um caju.

Rita, ao sentir-se empolgar pelo cavouqueiro, escapou-lhe das garras com um pulo.

- Olhe que peste! Fa�a-se de tolo, que digo � sua mulher, hein? Ora vamos l�!

Mas, como a Piedade entrava na salinha ao lado, disfar�ou logo, acrescentando noutro tom:

- Agora � tratar de dormir e mudar de roupa, se suar outra vez At� logo!

E saiu.

Jer�nimo ouviu as suas ultimas palavras j� de olhos fechados e, quando Piedade entrou no quarto, parecia sucumbido de fraqueza. A lavadeira aproximou-se da cama do marido em ponta de p�s, puxou-lhe o len�ol mais para cima do peito e afastou-se de novo, abafando os passos. � porta da entrada a Augusta, que fora fazer uma visita ao enfermo, perguntou-lhe por este com um gesto interrogativo; Piedade respondeu sem falar, pondo a m�o no rosto e vergando desse lado a cabe�a, para exprimir que ele agora estava dormindo.

As duas sa�ram para falar � vontade; mas, nessa ocasi�o, l� fora no p�tio da estalagem, acabava de armar-se um esc�ndalo medonho. Era o caso que o Henriquinho da casa do Miranda ficava �s vezes � janela do sobrado, nas horas de pregui�a, entre o almo�o e o jantar, entretido a ver a Leoc�dia lavar, seguindo-lhe os movimentos uniformes do grosso quadril e o tremular das redondas tetas � larga dentro do cabe��o de chita. E, quando a pilhava sozinha, fazia-lhe sinais brejeiros, piscava-lhe o olho, batendo com a m�o direita aberta sobre a m�o esquerda fechada. Ela respondia, indicando com o polegar o interior do sobrado, como se dissesse que fosse procurar a mulher do dono da casa.

Naquele dia, por�m, o estudante apareceu � janela, trazendo nos bra�os um coelhinho todo branco, que ele na v�spera arrematara num leil�o de festa. Leoc�dia cobi�ou o bichinho e, correndo para o dep�sito de garrafas vazias, que ficava por debaixo do sobrado, pediu com muito empenho ao Henrique que lho desse. Este, sempre com seu sistema de conversar por m�mica, declarou com um gesto qual era a condi��o da d�diva.

Ela meneou a cabe�a afirmativamente, e ele fez-lhe sinal de que o esperasse por detr�s do corti�o, no capinzal dos fundos.

A fam�lia do Miranda havia sa�do. Henrique, mesmo com a roupa de andar em casa e sem chap�u, desceu � rua, ganhou um terreno que existia � esquerda do sobrado e, com o seu coelho debaixo do bra�o, atirou-se para o capinzal. Leoc�dia esperava por ele debaixo das mangueiras.

- Aqui n�o! disse ela, logo que o viu chegar. Aqui agora podem dar com a gente!...

- Ent�o onde?

- Vem c�!

E tomou � sua direita, andando ligeira e meio vergada por entre as plantas. Henrique seguiu-a no mesmo passo, sempre com o coelho sobra�ado. O calor fazia-o suar e esfogueava-lhe as faces. Ouvia-se o martelar dos ferreiros e dos trabalhadores da pedreira.

Depois de alguns minutos, ela parou num lugar plantado de bambus e bananeiras, onde havia o resto de um telheiro em ru�nas.

- Aqui!

E Leoc�dia olhou para os lados, assegurando-se de que estavam a s�s. Henrique, sem largar o coelho, atirou-se sobre ela, que o conteve:

- Espera! preciso tirar a saia; est� encharcada!

- N�o faz mal! segredou ele, impaciente no seu desejo.

- Pode-me vir um corrimento!

E sacou fora a saia de l� grossa, deixando ver duas pernas, que a camisa a custo s� cobria at� o joelho, grossas, maci�as, de uma brancura levemente r�sea e toda marcada de mordeduras de pulgas e mosquitos.

- Avia-te! Anda! apressou ela, lan�ando-se de costas ao ch�o e arrega�ando a fralda at� a cintura; as coxas abertas.

O estudante atirou-se, s�frego, sentindo-lhe a frescura da sua carne de lavadeira, mas sem largar as pernas do coelho.

Passou-se um instante de sil�ncio entre os dois, em que as folhas secas do ch�o rangeram e farfalharam.

- Olha! pediu ela, faz-me um filho, que eu preciso alugar-me de ama-de-leite... Agora est�o pagando muito bem as amas! A Augusta Carne-Mole, nesta �ltima barriga, tomou conta de um pequeno ai na casa de uma fam�lia de tratamento, que lhe dava setenta mil-r�is por m�s!... E muito bom passadio!... Sua garrafa de vinho todos os dias!... Se me arranjares um filho dou-te outra vez o coelho!

E o pobre brutinho, cujas pernas o estudante n�o largava, come�ou a queixar-se dos repel�es que recebia cada vez mais acelerados.

- Olha que matas o bichinho! reclamou a lavadeira. N�o batas assim com ele! mas n�o o soltes, hein!

Ia dizer ainda alguma coisa, mas acudiu-lhe o espasmo e ela fechou os olhos e p�s-se a dar com a cabe�a de um lado para o outro, rilhando os dentes.

Nisto, passos r�pidos fizeram-se sentir galgando as plantas, na dire��o em que os dois estavam; e Henrique, antes de ser visto, lobrigou a certa distancia a insoci�vel figura do Bruno.

N�o lhe deu tempo a que se aproximasse; de um salto galgou por detr�s das bananeiras e desapareceu por entre o matagal de bambus, t�o r�pido como o coelho que, vendo-se livre, ganhara pela outra banda o caminho do capinzal.

Quando o ferreiro, logo em seguida, chegou perto da mulher, esta ainda n�o tinha acabado de vestir a saia molhada.

- Com quem te esfregavas tu, sua vaca?! bradou ele, a botar os bofes pela boca.

E, antes que ela respondesse, j� uma formid�vel punhada a fazia rolar por terra.

Leoc�dia abriu num berreiro. E foi debaixo de uma chuva de bofetadas e pontap�s que acabou de amarrar a roupa.

- Agora eu vi! sabes! Nega se fores capaz!

- V� � pata que o p�s! exclamou ela, com a cara que era um tomate. J� lhe disse que n�o quero saber de voc� pra nada, seu b�bedo!

E, vendo que ele ia recome�ar a dan�a, abaixou-se depressa, segurou com ambas as m�os um matac�o de granito que encontrou a seus p�s, e gritou, erguendo-o sobre a cabe�a:

- Chega-te pra c� e ver�s se te abro aqui mesmo ou n�o o casco!

O ferreiro compreendeu que ela era capaz de fazer o que dizia e estacou l�vido e ofegante.

- Arme a trouxa e rua! sabe?

- Olha a desgra�a! Tinha de muito assentado de ir! Queria era uma ocasi�o! Nem preciso de voc� pra nada, fique sabendo!

E, para meter-lhe mais raiva, acrescentou, empinando a barriga:

- J� c� est� dentro com que hei de ganhar a vida! Alugo-me de ama! Ou pensar� que todos s�o como voc�, que nem para fazer um filho serve, diabo do sem-pr�stimo?

- Mas n�o me h�s de levar nada de casa! Isso te juro eu, biraia!

- Ah, descanse! que n�o levarei nada do que � seu, nem preciso!

- P�e essa pedra no ch�o!

- Um corno! Eu arrumo-ta na cabe�a se te chegas pra c�!

- Sim, sim, sim, contanto que te musques por uma vez!

- Pois ent�o despache o beco!

Ele virou-lhe as costas e tornou lentamente por onde viera, de cabe�a pendida, as m�os nas algibeiras das cal�as, aparentando agora um soberano desprezo pelo que se passava.

S� ent�o foi que ela se lembrou do coelho.

- Ora gaitas! disse, endireitando-se e tomando dire��o contr�ria � do marido.

Este fora ai direito ao corti�o narrar, a quem quisesse ouvir, o que se acabava de dar. O esc�ndalo assanhou a estalagem inteira, como um jato de �gua quente sobre um formigueiro. �Ora, aquilo tinha de acontecer mais hoje mais amanh�! - Um belo dia a casa vinha abaixo! - A Leoc�dia parecia n�o desejar sen�o isso mesmo!� Mas ningu�m atinava com quem diabo pilhara o Bruno a mulher no capinzal. Fizeram-se mil hip�teses; lembrando-se nomes e nomes, sem se chegar a nenhum resultado satisfat�rio. O Albino tentou logo arranjar a reconcilia��o do casal, jurando que o Bruno estava enganado com certeza e que vira mal. �Leoc�dia era uma excelente rapariga, incapaz de tamanha safadagem!� O ferreiro tapou-lhe a boca com uma bolacha, e ningu�m mais se meteu a congra��-los.

Entretanto, o Bruno entrara em casa e lan�ava pela janela c� para fora tudo o que ia encontrando pertencente � mulher. Uma cadeira fez-se peda�os contra as pedras, depois veio um candeeiro de querosene, uma trouxa de roupas, saias e casaquinhos de chita, caixas de chap�us cheias de trapos, uma gaiola de p�ssaros, uma chaleira; e tudo era arremessado com f�ria ao meio da �rea, entre o sil�ncio comovido dos que assistiam ao despejo. Um chim, que entrara para vender camar�es e parara distra�do perto da janela do ferreiro, levou na cabe�a com uma bilha da Bahia e berrava como crian�a que acaba de ser esbordoada. A Machona, que n�o podia ouvir ningu�m gritar mais alto do que ela, caiu-lhe em cima aos murros e o p�s fora do port�o com tremenda descompostura. �Era o que faltava que viesse tamb�m aquele salamaleque do inferno para azoinar uma criatura mais do que j� estava!� Dona Isabel, com as m�os cruzadas sobre o ventre, tinha para aquela destrui��o um profundo olhar de l�stima. Augusta meneava a cabe�a tristemente sem conceber como havia mulheres que procuravam homem, tendo um que lhes pertencia. A Bruxa, indiferente, n�o interrompera sequer o seu trabalho; ao passo que a das Dores, de m�os nas cadeiras, a sala pelo meio das canelas, um cigarro no canto da boca, encarava desdenhosa a sanha daquele marido, t�o brutal como o dela o fora.

- Sempre os mesmos peda�os de asno!... comentava franzindo o nariz. Se a tola da mulher s� lhes procura agradar e fazer-lhes o gosto, ficam enjoados, e, se ela n�o toma a s�rio a borracheira do casamento, d�o por paus e por pedras, como esta besta! Uma s�cia, todos eles!

Florinda ria, como de tudo, e a velha Marciana queixava-se de que lhe respingaram querosene na roupa estendida ao sol. Nessa ocasi�o justamente, um saco de caf�, cheio de borra, deu duas voltas no ar e espalhou o seu conte�do, pintalgando de pontos negros os coradouros. Fez-se logo um alarido entre as lavadeiras. �Aquilo n�o tinha jeito, que diabo! Armavam l� as suas turras e os outros � que haviam de aturar?!... Sebo! que os mais n�o estavam dispostos a suportar as f�rias de cada um! Quem parira Mateus que o embalasse! Se agora, todas as vezes que a Leoc�dia se fosse espojar no capinzal, o bruto do marido tinha de sujar daquele modo o trabalho da gente, ningu�m mais poderia ganhar ali a sua vida! Que espiga!� Pombinha chegara � porta do n�mero 15, dando f� do barulho, com uma costura na m�o, e Nenen, toda afogueada do ferro de engomar, perguntava, com um frouxo riso, se o Bruno ia reformar a mob�lia da casa. A Rita fingia n�o ligar import�ncia ao fato e continuava a lavar � sua tina. �N�o faziam tanta festa ao tal casamento? Pois que ag�entassem! Ela estava bem livre de sofrer uma daquelas!� O velho Lib�rio chegara-se para ver se, no meio

da confus�o, apanhava alguma coisa do despejo, e a Machona, notando que o Agostinho fazia o mesmo, berrou-lhe do lugar em que se achava:

- Sai da�, safado! Toca l� no quer que seja, que te arranco a pele do rabo!

Um irm�o do sant�ssimo entrara na estalagem, com a sua capa encarnada, a sua vara de prata em uma das m�os, na outra a salva do dinheiro, e parara em meio do p�tio, suplicando muito fanhoso: �Uma esmola para a cera do Sacramento!� As mulheres abandonaram por um instante as tinas e foram beijar devotamente a colombina imagem do Esp�rito Santo. Pingaram na salva moedinhas de vint�m.

Todavia, o Bruno acabava de despejar o que era da mulher e saia de novo de casa, dando uma volta feroz � fechadura. Atravessou por entre o murmurante grupo dos curiosos que permaneciam defronte de sua porta, mudo, com a cara fechada, jogando os bra�os, como quem, apesar de ter feito muito, n�o satisfizera ainda completamente a sua c�lera.

Leoc�dia apareceu pouco depois e, vendo por terra tudo que era seu, partido e inutilizado, apoderou-se de f�ria e avan�ou sobre a porta, que o marido acabava de fechar, arremetendo com as n�degas contra as duas folhas, que cederam logo, indo ela cair l� dentro de barriga para cima.

Mas ergueu-se, sem fazer caso das risadas que rebentaram c� fora e, escancarando a janela com arremesso, come�ou por sua vez a arrasar e a destruir tudo que ainda encontrara em casa.

Ent�o principiou a verdadeira devasta��o. E a cada objeto que ela varria para o p�tio, gritava sempre: �Upa! Toma, diabo!�

- A� vai o rel�gio! Upa! Toma, diabo!

E o rel�gio espatifou-se na cal�ada.

- A� vai o alguidar!

- A� vai o jarro!

- A� v�o os copos!

- O cabide!

- O garraf�o!

- O bacio!

Um riso geral, comunicativo, absoluto, abafava o baralho da lou�a quebrando-se contra as pedras. E Leoc�dia j� n�o precisava acompanhar os objetos com a sua frase de impreca��o, porque cada um deles era recebido c� fora com um coro que berrava:

- Upa! Toma, diabo!

E a limpeza prosseguia. Jo�o Rom�o acudiu de carreira, mas ningu�m se incomodou com a presen�a dele. J� defronte da porta do Bruno havia uma montanha de cacos acumulados; e o destro�o continuava ainda, quando o ferreiro reapareceu, vermelho como malagueta, e foi galgando a casa, com um raio de roda de carro na m�o direita.

Os circunstantes o seguiram, atropeladamente, num clamor.

- N�o d�!

- N�o pode!

- Prende!

- N�o deixa bater!

- Larga o pau!

- Segura!

- Ag�enta!

- Cerca!

- Toma o porrete!

E Leoc�dia escapou afinal das pauladas do marido, a quem o povar�u desarmara num fecha-fecha.

- Ordem! Ordem! V� de rumor! exclamava o vendeiro, a quem, aproveitando a confus�o, haviam j� ferrado um pontap� por detr�s.

O Alexandre, que vinha chegando do servi�o nesse momento, apressou-se a correr para o lugar do conflito e cheio de autoridade intimou o Bruno a que se contivesse e deixasse a mulher em paz, sob pena de seguir para a esta��o no mesmo instante.

- Pois voc� n�o v� esta galinha, que apanhei hoje com a boca na botija, n�o me vem ainda por cima dar cabo de tudo?!... interrogou o Bruno, espumando de raiva e quase sem f�lego para falar.

- Porque voc� p�s em cacos o que � meu! gritou Leoc�dia.

- Est� bom! est� bom! disse o pol�cia, procurando dar � voz inflex�es autorit�rias e reconciliadoras. Fale cada um por sua vez! Seu marido... acrescentou ele, voltando-se para a acusada, diz que a senhora...

- � mentira! interrompeu ela.

- Mentira?! � boa! Tinhas a saia despida e um homem por cima!

- Quem era? - Quem foi? - Quem era o homem? interrogaram todos a um s� tempo.

- Quem era ele, no fim de contas? inquiriu tamb�m Alexandre.

- N�o lhe pude ver as fu�as!... respondeu o ferreiro; mas, se o apanho, arrancava-lhe o sangue pelas costas!

Houve um coro de gargalhadas.

- E mentira! repetiu Leoc�dia, agora sucumbida por uma rea��o de l�grimas. H� muito tempo que este malvado anda ca�ando pretexto para romper comigo e, como eu n�o lho dou...

Uma explos�o de solu�os a interrompeu.

Desta vez n�o riram, mas um bichanar de cochichos formou-se em torno do seu pranto.

- Agora... continuou ela, enxugando os olhos na costa da m�o; n�o sei o que ser� de mim, porque este homem, al�m de tudo, escangalhou-me at� o que eu trouxe quando me casei com ele!...

- N�o disseste que j� tinhas ai dentro com que ganhar a vida?... � andar!

- � falso! solu�ou Leoc�dia.

- Bem, interveio Alexandre, embainhando o seu refle; est� tudo terminado! Seu marido vai receb�-la em boa paz...

- Eu?! esfuziou o ferreiro. Voc� n�o me conhece!

- Nem eu queria! retorquiu a mulher. Prefiro meter-me com um cavalo de t�lburi a ter de aturar este bruto!

E, catando em casa alguma coisa sua que ainda havia, e recolhendo do mont�o dos cacos o que lhe pareceu aproveit�vel, fez de tudo uma grande trouxa e foi chamar um carregador.

A Rita saiu-lhe ao encontro.

- Para onde vais tu?... perguntou-lhe em voz baixa.

- N�o sei, filha, por ai!... Hei de encontrar um furo!... Os c�es n�o vivem?...

- Espere um instante... disse a mulata. Olha, empurra a trouxa ai para dentro do meu c�modo. - E correndo ao Albino, que lavava: - Passa-me no sab�o aquela roupa, ouviste? E, quando Firmo acordar, diz-lhe que precisei ir a rua.

Depois, deu um pulo ao quarto, mudou a saia molhada, atirou nos ombros o seu xale de croch� e, batendo nas costas da companheira, segredou-lhe:

- Anda c� comigo! n�o ficar�s � toa!

E as duas sa�ram, ambas sacudidas, deixando atr�s de si suspensa a curiosidade do corti�o inteiro.

IX

Passaram-se semanas. Jer�nimo tomava agora, todas as manh�s, uma x�cara de caf� bem grosso, � moda da Ritinha, e tragava dois dedos de parati �pra cortar a friagem�.

Uma transforma��o, lenta e profunda, operava-se nele, dia a dia, hora a hora, reviscerando-lhe o corpo e alando-lhe os sentidos, num trabalho misterioso e surdo de cris�lida. A sua energia afrouxava lentamente: fazia-se contemplativo e amoroso. A vida americana e a natureza do Brasil patenteavam-lhe agora aspectos imprevistos e sedutores que o comoviam; esquecia-se dos seus primitivos sonhos de ambi��o; para idealizar felicidades novas, picantes e violentas; tornava-se liberal, imprevidente e franco, mais amigo de gastar que de guardar; adquiria desejos, tomava gosto aos prazeres, e volvia-se pregui�oso resignando-se, vencido, �s imposi��es do sol e do calor, muralha de fogo com que o esp�rito eternamente revoltado do �ltimo tamoio entrincheirou a p�tria contra os conquistadores aventureiros.

E assim, pouco a pouco, se foram reformando todos os seus h�bitos singelos de alde�o portugu�s: e Jer�nimo abrasileirou-se. A sua casa perdeu aquele ar sombrio e concentrado que a entristecia; j� apareciam por l� alguns companheiros de estalagem, para dar dois dedos de palestra nas horas de descanso, e aos domingos reunia-se gente para o jantar. A revolu��o afinal foi completa: a aguardente de cana substituiu o vinho; a farinha de mandioca sucedeu � broa; a carne-seca e o feij�o-preto ao bacalhau com batatas e cebolas cozidas; a pimenta-malagueta e a pimenta-de-cheiro invadiram vitoriosamente a sua mesa; o caldo verde, a a�orda e o caldo de unto foram repelidos pelos ruivos e gostosos quitutes baianos, pela muqueca, pelo vatap� e pelo caruru; a couve � mineira destronou a couve � portuguesa; o pir�o de fub� ao p�o de rala, e, desde que o caf� encheu a casa com o seu aroma quente, Jer�nimo principiou a achar gra�a no cheiro do fumo e n�o tardou a fumar tamb�m com os amigos.

E o curioso � que quanto mais ia ele caindo nos usos e costumes brasileiros, tanto mais os seus sentidos se apuravam, posto que em detrimento das suas for�as f�sicas. Tinha agora o ouvido menos grosseiro para a m�sica, compreendia at� as inten��es po�ticas dos sertanejos, quando cantam � viola os seus amores infelizes; seus olhos, dantes s� voltados para a esperan�a de tornar � terra, agora, como os olhos de um marujo, que se habituaram aos largos horizontes de c�u e mar, j� se n�o revoltavam com a turbulenta luz, selvagem e alegre, do Brasil, e abriam-se amplamente defronte dos maravilhosos despenhadeiros ilimitados e das cordilheiras sem fim, donde, de espa�o a espa�o, surge um monarca gigante, que o sol veste de ouro e ricas pedrarias refulgentes e as nuvens tocam de alvos turbantes de cambraia, num luxo oriental de ar�bicos pr�ncipes voluptuosos.

Ao passo que com a mulher, a S�ora Piedade de Jesus, o caso mudava muito de figura. Essa, feita de um s� bloco, compacta, inteiri�a e tapada, recebia a influ�ncia do meio s� por fora, na maneira de viver, conservando-se inalter�vel quanto ao moral, sem conseguir, � semelhan�a do esposo, afinar a sua alma pela alma da nova p�tria que adotaram. Cedia passivamente nos h�bitos de exist�ncia, mas no intimo continuava a ser a mesma colona saudosa e desconsolada, t�o fiel �s suas tradi��es como a seu marido. Agora estava at� mais triste; triste porque Jer�nimo fazia-se outro; triste porque n�o se passava um dia que lhe n�o notasse uma nova transforma��o; triste, porque chegava a estranh�-lo, a desconhec�-lo, afigurando-se-lhe at� que cometia um adult�rio, quando � noite acordava assustada ao lado daquele homem que n�o parecia o dela, aquele homem que se lavava todos os dias, aquele homem que aos domingos punha perfumes na barba e nos cabelos e tinha a boca cheirando a fumo. Que pesado desgosto n�o lhe apertou o cora��o a primeira vez em que o cavouqueiro, repelindo o caldo que ela lhe apresentava ao jantar, disse-lhe:

- � filha! por que n�o experimentas tu fazer uns pit�us � moda de c�?...

- Mas � que n�o sei... balbuciou a pobre mulher.

- Pede ent�o � Rita que to ensine... Aquilo n�o ter� muito que aprender! V� se me fazes por arranjar uns camar�es, como ela preparou aqueles doutro dia. Souberam-me t�o bem!

Este resvalamento do Jer�nimo para as coisas do Brasil penalizava profundamente a infeliz criatura. Era ainda o instinto feminil que lhe fazia prever que o marido, quando estivesse de todo brasileiro, n�o a queria para mais nada e havia de reformar a cama, assim como reformou a mesa.

Jer�nimo, com efeito, pertencia-lhe muito menos agora do que dantes. Mal se chegava para ela; os seus carinhos eram frios e distra�dos, dados como por condescend�ncia; j� lhe n�o afagava os rins, quando os dois ficavam a s�s, malucando na sua vida comum; agora nunca era ele que a procurava para o matrim�nio, nunca; se ela sentia necessidade do marido, tinha de provoc�-lo. E, uma noite, Piedade ficou com o cora��o ainda mais apertado, porque ele, a pretexto de que no quarto fazia muito calor, abandonou a cama e foi deitar-se no sof� da salinha. Desde esse dia n�o dormiram mais ao lado um do outro. O cavouqueiro arranjou uma rede e armou-a defronte da porta de entrada, tal qual como havia em casa da Rita.

Uma outra noite a coisa ainda foi pior. Piedade, certa de que o marido n�o se chegava, foi ter com ele; Jer�nimo fingiu-se indisposto, negou-se, e terminou por dizer-lhe, repelindo-a brandamente:

- N�o te queria falar, mas... sabes? deves tomar banho todos os dias e... mudar de roupa... Isto aqui n�o � como l�! Isto aqui sua-se muito! � preciso trazer o corpo sempre lavado, que, ao se n�o, cheira-se mel!... Tem paci�ncia!

Ela desatou a solu�ar. Foi uma explos�o de ressentimentos e desgostos que se tinham acumulado no seu cora��o. Todas as suas m�goas rebentaram naquele momento.

- Agora est�s tu a chorar! Ora, filha, deixa-te disso!

Ela continuou a solu�ar, sem f�lego, dando arfadas com todo o corpo.

O cavouqueiro acrescentou no fim de um intervalo:

- Ent�o, que � isto, mulher? P�es-te agora a fazer tamanho escarc�u, nem que se cuidasse de coisa s�ria!

Piedade desabafou:

- � que j� n�o me queres! J� n�o �s o mesmo homem para mim! Dantes n�o me achavas que p�r, e agora at� j� te cheiro mal!

E os solu�os recrudesciam.

- N�o digas asnices, filha!

- Ah! eu bem sei o que isto �!...

- E bobagem tua, � o que �!

- Maldita hora em que viemos dar ao raio desta estalagem! Antes me tivera caldo um calhau na cabe�a!

- Est�s a queixar-te da sorte sem raz�o! Que Deus te n�o castigue.

Esta rezinga chamou outras que, com o correr do tempo, se foram amiudando. Ah! j� n�o havia d�vida que mestre Jer�nimo andava meio caldo para o lado da Rita Baiana; n�o passava pelo n�mero 9, sempre que vinha � estalagem durante o dia, que n�o parasse � porta um instante, para perguntar-lhe pela �saudinha�. O fato de haver a mulata lhe oferecido o rem�dio, quando ele esteve incomodado, foi pretexto para lhe fazer presentes am�veis; p�r os seus pr�stimos � disposi��o dela e obsequi�-la em extremo todas as vezes que a visitava. Tinha sempre qualquer coisa para saber da sua boca, a respeito da Leoc�dia, por exemplo; pois, desde que a Rita se arvorara em protetora da mulher do ferreiro, Jer�nimo afetava grande interesse pela �pobrezinha de Cristo�.

- Fez bem, Nh� Rita, fez bem!... A se�ora mostrou com isso que tem bom cora��o...

- Ah, meu amigo, neste mundo hoje por mim, amanha por ti!...

Rita havia aboletado a amiga, a principio em casa de umas engomadeiras do Catete, muito suas camaradas, depois passou-a para uma fam�lia, a quem Leoc�dia se alagou como ama-seca; e agora sabia que ela acabava de descobrir um bom arranjo num col�gio de meninas.

- Muito bem! muito bem! aplaudia Jer�nimo.

- Ora, o qu�! O mundo � largo! sentenciou a baiana. H� lugar pro gordo e h� lugar pro magro! Bem tolo � quem se mata!

Em uma das vezes em que o cavouqueiro perguntou-lhe, como de costume, pela pobrezinha de Cristo, a mulata disse que Leoc�dia estava gr�vida.

- Gr�vida? mas ent�o n�o � do marido!...

- Pode bem ser que sim. Barriga de quatro meses...

- Ah! mas ela n�o foi h� mais tempo do que isso?...

- N�o. Vai fazer agora pelo S�o Jo�o quatro meses justamente.

Jer�nimo j� nunca pegava na guitarra sen�o para procurar acertar com as modinhas que a Rita cantava. Em noites de samba era o primeiro a chegar-se e o �ltimo a ir embora; e durante o pagode ficava de queixo bambo, a ver dan�ar a mulata, abstrato, pateta, esquecido de tudo; bab�o. E ela, consciente do feiti�o, que lhe punha, ainda mais se requebrava e remexia, dando-lhe embigadas ou fingindo que lhe limpava a baba no queixo com a barra da saia.

E riam-se.

N�o! definitivamente estava ca�do!

Piedade agarrou-se com a Bruxa para lhe arranjar um rem�dio que lhe restitu�sse o seu homem. A cabocla velha fechou-se com ela no quarto, acendeu velas de cera, queimou ervas arom�ticas e tirou sorte nas cartas.

E depois de um jogo complicado de reis, valetes e damas, que ela dispunha sobre a mesa caprichosamente, a resmungar a cada figura que saia do baralho uma frase cabal�stica, declarou convicta, muito calma, sem tirar os olhos das suas cartas:

- Ele tem a cabe�a virada por uma mulher trigueira.

- � o diacho da Rita Baiana! exclamou a outra. Bem c� me palpitava por dentro! Ai, o meu rico homem!

E a chorar, limpando, aflita, as l�grimas no avental de c�nhamo, suplicou � Bruxa, pelas alminhas do purgat�rio, que lhe remediasse tamanha desgra�a.

- Ai, se perco aquela criatura, S�ora Paula, lamuriou a infeliz entre solu�os; nem sei que vir� a ser de mim neste mundo de Cristo!... Ensine-me alguma coisa que me puxe o Jeromo!

A cabocla disse-lhe que se banhasse todos os dias e desse a beber ao seu homem, no caf� pela manh�, algumas gotas das �guas da lavagem; e, se no fim de algum tempo, este regime n�o produzisse o desejado efeito, ent�o cortasse um pouco dos cabelos do corpo, torrasse-os at� os reduzir a p� e lhos ministrasse depois na comida.

Piedade ouviu a receita com um sil�ncio respeitoso e atento, o ar compungido de quem recebe do m�dico uma senten�a dolorosa para um doente que estimamos. Em seguida, meteu na m�o da feiticeira uma moeda de prata, prometendo dar-lhe coisa melhor se o rem�dio tivesse bons resultados.

Mas n�o era s� a portuguesa quem se mordia com o descaimento do Jer�nimo para a mulata, era tamb�m o Firmo. Havia muito j� que este andava com a pulga atr�s da orelha e, quando passava perto do cavouqueiro, olhava-o atravessado.

O capad�cio ia dormir todas as noites com a Rita, mas n�o morava na estalagem; tinha o seu c�modo na oficina em que trabalhava. S� pelos domingos � que ficavam juntos durante o dia e ent�o n�o relaxavam o seu jantar de p�ndega. Uma vez em que ele gazeara o servi�o, o que n�o era raro, foi v�-la fora das horas do costume e encontrou-a a conversar junto � tina com o portugu�s. Passou sem dizer palavra e recolheu-se ao n�mero 9, onde ela foi logo ter de carreira. Firmo n�o lhe disse nada a respeito das suas apreens�es, mas tamb�m n�o escondeu o seu mau humor; esteve impertinente e rezingueiro toda a tarde. Jantou de cara amarrada e durante o parati, depois do caf�, s� falou em rolos, em dar cabe�adas e navalhadas, pintando-se terr�vel, recordando fa�anhas de capoeiragem, nas quais sangrara tais e tais tipos de fama; �n�o contando dois galegos que mandara pras minhocas, porque isso para ele n�o era gente! - Com um par de cocadas boas ficavam de p�s unidos para sempre!� Rita percebeu os ci�mes do amigo e fez que n�o dera por coisa alguma.

No dia seguinte, �s seis horas da manh�, quando ele saia da casa dela, encontrou-se com o portugu�s, que ia para o trabalho, e o olhar que os dois trocaram entre si era j� um cartel de desafio. Entretanto, cada qual seguiu em sil�ncio para o seu lado.

Rita deliberou prevenir Jer�nimo de que se acautelasse. Conhecia bem o amante e sabia de quanto era ele capaz sob a influ�ncia dos ci�mes; mas, na ocasi�o em que o cavouqueiro desceu para almo�ar, um novo esc�ndalo acabava de explodir, agora no n�mero 12, entre a velha Marciana e sua filha Florinda.

Marciana andava j� desconfiada com a pequena, porque o fluxo mensal desta se desregrara havia tr�s meses, quando, nesse dia, n�o tendo as duas acabado ainda o almo�o, Florinda se levantou da mesa e foi de carreira para o quarto. A velha seguiu-a. A rapariga fora vomitar ao bacio.

- Que � isto?... perguntou-lhe a m�e, apalpando-a toda com um olhar inquiridor.

- N�o sei, mam�e...

- Que sentes tu?...

- Nada...

- Nada, e est�s lan�ando?... Hein?!

- N�o sinto nada, n�o senhora!...

A mulata velha aproximou-se, desatou-lhe violentamente o vestido, levantou-lhe as saias e examinou-lhe todo o corpo, tateando-lhe o ventre, j� zangada. Sem obter nenhum resultado das suas dilig�ncias, correu a chamar a Bruxa, que era mais que entendida no assunto. A cabocla, sem se alterar, largou o servi�o, enxugou os bra�os no avental, e foi ao n�mero 12; tenteou de novo a mulatinha, fez-lhe v�rias perguntas e mais � m�e, e depois disse friamente:

- Est� de barriga.

E afastou-se, sem um gesto de surpresa, nem de censura.

Marciana, tr�mula de raiva, fechou a porta da casa, guardou a chave no seio e, furiosa, caiu aos murros em cima da filha. Esta, embalde tentando escapar-lhe, berrava como uma louca.

Abandonaram-se logo todas as tinas do p�tio e algumas das mesas do frege, e o populacho, curioso e alvoro�ado, precipitou-se para o n�mero 12, batendo na porta e amea�ando entrar pela janela.

L� dentro, a velha escarranchada sobre a rapariga que se debatia no ch�o, perguntava-lhe gritando e repetindo:

- Quem foi?! Quem foi?!

E de cada vez desfechava-lhe um sopapo pelas ventas.

- Quem foi?!

A pequena berrava, mas n�o respondia.

- Ah! n�o queres dizer por bem? Ora espera!

E a velha ergueu-se para apanhar a vassoura no canto da sala.

Florinda, vendo iminente o cacete, levantou-se de um pulo, ganhou a janela e caiu de um salto l� fora, entre o povo amotinado. Coisa de uns nove palmos de altura.

As lavadeiras a apanharam, cuidando em defend�-la da m�e, que surgiu logo � porta, amea�ando para o grupo, terr�vel e armada de pau.

Todos procuraram cham�-la � raz�o:

- Ent�o que � isso, tia Marciana?! Ent�o que � isso?!

- Que � isto?! � que esta assanhada est� de barriga! Est� ai o que �! Para tanto n�o lhe faltou jeito, nem foi preciso que a gente andasse atr�s dela se matando, como sucede sempre que h� um pouco mais de servi�o e � necess�rio puxar pelo corpo! Ora est� ai o que �!

- Bem, disse a Augusta, mas n�o lhe bata agora, coitada! Assim voc� lhe d� cabo da pele!

- N�o! Eu quero saber quem lhe encheu o bandulho! E ela h� de dizer quem foi ou quebro-lhe os ossos!

- Ent�o, Florinda, diz logo quem foi... � melhor! aconselhou a das Dores.

Fez-se em torno da rapariga um sil�ncio �vido, cheio de curiosidade.

- Est�o vendo?... exclamou a m�e. N�o responde, este diabo! Mas esperem, que eu lhes mostro se ela fala, ou n�o!

E as lavadeiras tiveram de agarrar-lhe os bra�os e tirar-lhe o cacete, porque a velha queria crescer de novo para a filha.

Ao redor desta a curiosidade assanhava-se cada vez mais. Estalavam todos por saber quem a tinha emprenhado. �Quem foi?! Quem foi?!� esta frase apertava-a num torniquete. Afinal, n�o houve outro rem�dio:

- Foi seu Domingos... disse ela, chorando e cobrindo o rosto com a fralda do vestido, rasgado na luta.

- O Domingos!...

- O caixeiro da venda!...

- Ah! foi aquele cara de nabo? gritou Marciana. Vem c�!

E, agarrando a filha pela m�o, arrastou-a at� � venda.

Os circunstantes acompanharam-na ruidosamente e de carreira.

A taverna, como a casa de pasto, fervia de concorr�ncia.

Ao balc�o daquela, o Domingos e o Manuel aviavam os fregueses, numa roda-viva. Havia muitos negros e negras. O baralho era enorme. A Leonor l� estava, sempre aos pulos, mexendo com um, mexendo com outro, mostrando a dupla fila de dentes brancos e grandes, e levando apalp�es rudes de m�os de couro nas suas magras e escorridas n�degas de negrinha virgem Tr�s marujos ingleses bebiam gengibirra, cantando, �brios, na sua l�ngua e mascando tabaco.

Marciana na frente do grande grupo e sem largar o bra�o da filha, que a seguia como um animal puxado pela coleira, ao chegar � porta lateral da venda, berrou:

- � seu Jo�o Rom�o!

- Que temos l�? perguntou de dentro o vendeiro, atrapalhado de servi�o.

Bertoleza, com uma grande colher de zinco gotejante de gordura, apareceu � porta, muito ensebada e suja de tisna; e, ao ver tanta gente reunida, gritou para seu homem:

- Corre aqui, seu Jo�o, que n�o sei o que houve!

Ele veio afinal.

Que diabo era aquilo?

- Venho entregar-lhe esta perdida! Seu caixeiro a cobriu, deve tomar conta dela!

Jo�o Rom�o ficou perplexo.

- Hein! Que � l� isso?!

- Foi o Domingos! disseram muitas vozes.

- O seu Domingos!

O caixeiro respondeu: �Senhor...� com uma voz de delinq�ente.

- Chegue c�!

E o criminoso apresentou-se, l�vido de morte.

- Que fez voc� com esta pequena?

- N�o fiz nada, n�o senhor!...

- Foi ele, sim! desmentiu-o a Florinda. - O caixeiro desviou os olhos, para a n�o encarar. - Um dia de manh�zinha, �s quatro horas, no capinzal, debaixo das mangueiras...

O mulherio em massa recebeu estas palavras com um coro de gargalhadas.

- Ent�o o senhor anda-me aqui a fazer conquistas, hein?!... disse o patr�o, meneando a cabe�a. Muito bem! Pois agora � tomar conta da fazenda e, como n�o gosto de caixeiros amigados, pode procurar arranjo noutra parte!...

Domingos n�o respondeu patavina; abaixou o rosto e retirou-se lentamente.

O grupo das lavadeiras e dos curiosos derramou-se ent�o pela venda, pelo port�o da esta agem, pelo frege, por todos os lados, repartindo-se em pequenos magotes que discutiam o fato. Principiaram os coment�rios, os ju�zos pr� e contra o caixeiro; fizeram-se profecias.

Entretanto, Marciana, sem largar a filha, invadira a casa de Jo�o Rom�o e perseguia o Domingos que preparava j� a sua trouxa.

- Ent�o? perguntou-lhe. Que tenciona fazer?

Ele n�o deu resposta.

- Vamos! vamos! fale! desembuche!

- Ora lixe-se! resmungou o caixeiro, agora muito vermelho de c�lera. - Lixe-se, n�o!... Mais devagar com o andor! Voc� h� de casar: ela � menor!

Domingos soltou uma palavrada, que enfureceu a velha.

- Ah, sim?! bradou esta. Pois veremos!

E despejou da venda, gritando para todos:

- Sabe? O cara de nabo diz que n�o casa!

Esta frase produziu o efeito de um grito de guerra entre as lavadeiras, que se reuniram de novo, agitadas por uma grande indigna��o.

- Como, n�o casa?!...

- Era s� o que faltava!

- Tinha gra�a!

- Ent�o mais ningu�m pode contar com a honra de sua filha?

- Se n�o queria casar pra que fez mal?

- Quem n�o pode com o tempo n�o inventa modas!

- Ou ele casa ou sai daqui com os ossos em sopa!

- Quem n�o quer ser loto n�o lhe vista a pele!

A mais empenhada naquela repara��o era a Machona, e a mais indignada com o fato era a Dona Isabel. A primeira correra � frente da venda, disposta a segurar o culpado, se este tentasse fugir. Com o seu exemplo n�o tardou que em cada porta, onde era poss�vel uma escapula, se postassem as outras de sentinela, formando grupos de tr�s e quatro. E, no meio de crescente algazarra, ouviam-se pragas ferozes e amea�as:

- Das Dores! toma cuidado, que o patife n�o espirre por ai!

- � seu Jo�o Rom�o, se o homem n�o casa, mande-no-lo pra c�! Temos ainda algumas pequenas que lhe conv�m!

- Mas onde est� esse ordin�rio?!

- Saia o canalha!

- Est� fazendo a trouxa!

- Quer escapar!

- N�o deixe sair!

- Chame a pol�cia!

- Onde est� o Alexandre?

E ningu�m mais se entendia. � vista daquela agita��o, o vendeiro foi ter com o Domingos.

- N�o saia agora, ordenou-lhe. Deixe-se ficar por enquanto. Logo mais lhe direi o que deve fazer.

E chegando a uma das portas que davam para a estalagem, gritou:

- V� de rumor! N�o quero isto aqui! � safar!

- Pois ent�o o homem que case! responderam.

- Ou d�-nos pra c� o patife!

- Fugir � que n�o!

- N�o foge! n�o deixa fugir!

- Ningu�m se arrede!

E, como a Marciana lhe lan�asse uma inj�ria mais forte, amea�ando-o com o punho fechado, o taverneiro jurou que, se ela insistisse com desaforos, a mandaria jogar l� fora, junto com a filha, por um urbano.

- Vamos! Vamos! Volte cada uma para a sua obriga��o, que eu n�o posso perder tempo!

- Ponha-nos ent�o pra c� o homem! exigiu a mulata velha.

- Venha o homem! acompanhou o coro.

- � preciso dar-lhe uma li��o!

- O rapaz casa! disse o vendeiro com ar sisudo. J� lhe falei... Est� perfeitamente disposto! E, se n�o casar, a pequena ter� o seu dote! V�o descansados; respondo por ele ou pelo dinheiro!

Estas palavras apaziguaram os �nimos; o grupo das lavadeiras afrouxou; Jo�o Rom�o recolheu-se: chamou de parte o Domingos e disse-lhe que n�o arredasse p� de casa antes de noite fechada.

- No mais... acrescentou, pode tratar de vida nova! Nada o prende aqui. Estamos quites.

- Como? se o senhor ainda n�o me fez as contas?!...

- Contas? Que contas? O seu saldo n�o chega para pagar o dote da rapariga!...

- Ent�o eu tenho de pagar um dote?!...

- Ou casar... Ah, meu amigo, este neg�cio de tr�s vint�ns � assim! Custa dinheiro! Agora, se voc� quiser, v� queixar-se � policia... Est� no seu direito! Eu me explicarei em ju�zo!...

- Com que, n�o recebo nada?...

- E n�o principie com muita coisa, que lhe fecho a porta e deixo-o ficar �s turras l� fora com esses danados! Voc� bem viu como est�o todos a seu respeito! E, se h� pouco n�o lhe arrancaram os f�gados, agrade�a-o a mim! Foi

preciso prometer dinheiro e tenho de cair com ele, decerto! mas n�o � justo, nem eu admito, que saia da minha algibeira porque n�o estou disposto a pagar os caprichos de ningu�m, e muito menos dos meus caixeiros!

- Mas...

- Basta! Se quiser, por muito favor, ficar aqui at� � noite, h� de ficar calado; ao contr�rio - rua!

E afastou-se.

Marciana resolveu n�o ir ao subdelegado, sem saber que provid�ncias tomaria o vendeiro. Esperaria at� ao dia seguinte �para ver s�!� O que nesse ela fez foi dar uma boa lavagem na casa e arrum�-la muitas vezes, como costumava, sempre que tinha l� as suas zangas.

O esc�ndalo n�o deixou de ser, durante o dia, discutido um s� instante. N�o se falava noutra coisa; tanto que, quando, j� � noite, Augusta e Alexandre receberam uma visita da comadre, a L�onie, era ainda esse o principal assunto das conversas.

L�onie, com as suas roupas exageradas e barulhentas de cocote � francesa, levantava rumor quando l� ia e punha express�es de assombro em todas as caras. O seu vestido de seda cor de a�o, enfeitado de encarnado sangue de boi, curto, petulante, mostrando uns sapatinhos � moda com um salto de quatro dedos de altura; as suas lavas de vinte bot�es que lhe chegavam at� aos sovacos; a sua sombrinha vermelha, sumida numa nuvem de rendas cor-de-rosa e com grande cabo cheio de arabescos extravagantes; o seu pantafa�udo chap�u de imensas abas forradas de velado escarlate, com um p�ssaro inteiro grudado � copa; as suas j�ias caprichosas, cintilantes de pedras finas; os seus l�bios pintados de carmim; suas p�lpebras tingidas de violeta; o seu cabelo artificialmente louro; tudo isto contrastava tanto com as vestimentas, os costumes e as maneiras daquela pobre gente, que de todos os lados surgiam olhos curiosos a espreit�-la pela porta da casinha de Alexandre; Augusta, ao ver a sua pequena, a Juju, como vinha t�o embonecada e catita, ficou com os dela arrasados de �gua.

L�onie trazia sempre muito bem cal�ada e vestida a afilhada, levando o capricho ao ponto de lhe mandar talhar a roupa da mesma fazenda com que fazia as suas e pela mesma costureira; arranjava-lhe chap�us escandalosos como os dela e dava-lhe j�ias. Mas, naquele dia, a grande novidade que Juju apresentava era estar de cabelos louros, quando os tinha castanhos por natureza. Foi caso para uma revolu��o na estalagem; a noticia correu logo de n�mero a n�mero, e muitos moradores se abalaram do c�modo para ver a filhita da Augusta �com cabelos de francesa�.

Tal sucesso p�s L�onie radiante de alegria. Aquela afilhada era o seu luxo, a sua originalidade, a coisa boa da sua vida de cansa�os depravados; era o que aos seus pr�prios olhos a resgatava das abje��es do oficio. Prostituta de casa aberta, prezava todavia com admira��o e respeito a honestidade vulgar da comadre; sentia-se honrada com a sua estima; cobria-a de obs�quios de toda a esp�cie. Nos instantes que estava ali, entre aqueles seus amigos simpl�rios, que a matariam de rid�culo em qualquer outro lagar, nem ela parecia a mesma, pois at� os olhos lhe mudavam de express�o. E n�o queria prefer�ncias: assentava-se no primeiro banco, bebia �gua pela caneca de folha, tomava ao colo o pequenito da comadre e, �s vezes, descal�ava os sapatos para enfiar os chinelos velhos que encontrasse debaixo da cama.

N�o obstante, o acatamento que lhe votavam Alexandre e a mulher n�o tinha limites; pareciam capazes dos maiores sacrif�cios por ela. Adoravam-na. Achavam-na boa de cora��o como um anjo, e muito linda nas suas roupas de espavento, com o seu rostinho redondo, malicioso e petulante, onde reluziam dentes mais alvos que um marfim.

Juju, com um embrulho de balas em cada m�o, era carregada de casa em casa, passando de bra�o a bra�o e levada de boca em boca, como um �dolo milagroso, que todos queriam beijar.

E os elogios n�o cessavam:

- Rica pequena!...

- � um enlevo olhar a gente pro demoninho!

- � mesmo uma lindeza de crian�a!

- Uma criaturinha dos anjos!

- Uma boneca francesa!

- Uma menina Jesus!

O pai acompanhava-a comovido, mas solene sempre, parando a todo momento, como em prociss�o, � espera que cada qual desafogasse por sua vez o entusiasmo pela crian�a. Silenciosamente risonho, com os olhos �midos, patenteada em todo o seu car�o mulato, de bigode que parecia posti�o, um ar condolente e est�pido de um profundo reconhecimento por aquela fortuna, que Deus lhe dera � filha, enviando-lhe dos c�us o ideal das madrinhas.

E, enquanto Juju percorria a estalagem, conduzida em triunfo, L�onie na casa da comadre, cercada por uma roda de lavadeiras e crian�as, discreteava sobre assuntos s�rios, falando compassadamente, cheia de inflex�es de pessoa pr�tica e ajuizada, condenando maus atos e desvarios, aplaudindo a moral e a virtude. E aquelas mulheres, ali�s t�o alegres e vivazes, n�o se animavam, defronte dela, a rir nem levantar a voz, e conversavam a medo cochichando, a tapar

a boca com a m�o, tolhidas de respeito pela cocote, que as dominava na sua sobranceria de mulher loura vestida de seda e coberta de brilhantes. A das Dores sentiu-se orgulhosa, quando L�onie lhe pousou no ombro a m�ozinha enluvada e recendente, para lhe perguntar pelo seu homem. E n�o se fartavam de olhar para ela, de admir�-la; chegavam a examinar-lhe a roupa, revistar-lhe as salas, apalpar-lhe as meias, levantando-lhe o vestido, com exclama��es de assombro � vista de tanto luxo de rendas e bordados. A visita sorria, por sua vez comovida. Piedade declarou que a roupa branca da madama era rica nem como a da Nossa Senhora da Penha. E Nenen, no seu entusiasmo, disse que a invejava do fundo do cora��o, ao que a m�e lhe observou que n�o fosse besta. O Albino contemplava-a em �xtase, de m�o no queixo, o cotovelo no ar. A Rita Baiana levara-lhe um ramalhete de rosas. Esta n�o se iludia com a posi��o da loureira, mas dava-lhe apre�o talvez por isso mesmo e, em parte, porque a achava deveras bonita. �Ora! era preciso ser bem esperta e valer muito para arrancar assim da pele dos homens ricos aquela por��o de j�ias e todo aquele luxo de roupa por dentro e por fora!�

- N�o sei, filha! pregava depois a mulata, no p�tio, a uma companheira; seja assim ou assado, a verdade � que ela passa muito bem de boca e nada lhe falta: sua boa casa; seu bom carro para passear � tarde; teatro toda a noite; bailes quando quer e, aos domingos, corridas, regatas, pagodes fora da cidade e dinheirama grossa para gastar � farta! Enfim, s� o que afian�o � que esta n�o est� sujeita, como a Leoc�dia e outras, a pontap�s e cacha��es de um bruto de marido! � dona das suas a��es! livre como o lindo amor! Senhora do seu corpinho, que ela s� entrega a quem muito bem lhe der na veneta!

- E Pombinha?... perguntou a visita. N�o me apareceu ainda!...

- Ah! esclareceu Augusta. N�o est� ai, foi � sociedade de dan�a com a m�e.

E, como a outra mostrasse na cara n�o ter compreendido, explicou que a filha de Dona Isabel ia todas as ter�as, quintas e s�bados, mediante dois mil-r�is por noite, servir de dama numa sociedade em que os caixeiros do com�rcio aprendiam a dan�ar.

- Foi l� que ela conheceu o Costa... acrescentou.

- Que Costa?

- O noivo! Ent�o a Pombinha j� n�o foi pedida?

- Ah! sei...

E a cocote perguntou depois, abafando a voz:

- E aquilo?... J� veio afinal?...

- Qual! N�o � por falta de boa vontade da parte delas, coitadas! Agora mesmo a velha fez uma nova promessa a Nossa Senhora da Anuncia��o... mas n�o h� meio!

Da� a pouco, Augusta apresentou-lhe uma x�cara de caf�, que L�onie recusou por n�o poder beber. �Estava em uso de rem�dios...� N�o disse, por�m, quais eram estes, nem para que mol�stia os tomava.

- Prefiro um copo de cerveja, declarou ela.

E, sem dar tempo a que se opusessem, tirou da carteira uma nota de dez mil-r�is, que deu a Agostinho para ir buscar tr�s garrafas de Carls Berg.

A vista dos copos, liberalmente cheios, formou-se um sil�ncio enternecido. A cocote distribuiu-os por sua pr�pria m�o aos circunstantes, reservando um para si. N�o chegavam. Quis mandar buscar mais; n�o lho permitiram, objetando que duas e tr�s pessoas podiam beber juntas.

- Para que gastar tanto?... Que alma grande!

O troco ficou esquecido, de prop�sito, sobre a c�moda, entre uma infinita quinquilharia de coisas velhas e bem tratadas.

- Quando voc�, comadre, agora me aparece por l�?... quis saber L�onie

- Pra semana, sem falta; levo-lhe toda a roupa. Agora, se a comadre tem precis�o de alguma... pode-se aprontar com mais pressa...

- Ent�o � bom mandar-me toalhas e len��is... Camisas de dormir, � verdade! tamb�m tenho poucas.

- Depois d�amanh� est� tudo l�.

E a noite ia-se passando. Deram dez horas. L�onie, impaciente j� pelo rapaz que ficara de ir busc�-la, mandou ver se ele por acaso estaria no port�o, � espera.

- � aquele mesmo que veio da outra vez com a comadre?...

- N�o. � um mais alto. De cartola branca.

Correu muita gente at� � rua. O rapaz n�o tinha chegado ainda. L�onie ficou contrariada.

- Imprest�vel!... resmungou. Faz-me ir sozinha por ai ou incomodar algu�m que me acompanhe!

- Por que a comadre n�o dorme aqui?... lembrou Augusta. Se quiser, arranja-se tudo! N�o passar� bem como em sua casa, mas uma noite corre depressa!...

N�o! n�o era poss�vel Precisava estar em casa essa noite: no dia seguinte pela manh� iriam procur�-la muito cedo.

Nisto chegou Pombinha com Dona Isabel. Disseram-lhes logo � entrada que L�onie estava em casa do Alexandre, e a menina deixou a m�e um instante no n�mero 15 e seguiu sozinha para ali, radiante de alegria. Gostavam-se muito uma da outra. A cocote recebeu-a com exclama��es de agrado e beijou-a nos dentes e nos olhos repetidas vezes.

- Ent�o, minha flor, como est� essa lindeza! perguntou-lhe, mirando-a toda.

- Saudades suas... respondeu a mo�a, rindo bonito na sua boca ainda pura.

E uma conversa amiga, cheia de interesse para ambas, estabeleceu-se, isolando-as de todas as outras. L�onie entregou � Pombinha uma medalha de prata que lhe trouxera; uma tet�ia que valia s� pela esquisitice, representando uma fatia de queijo com um camundongo em cima. Correu logo de m�o em m�o, levantando espantos e gargalhadas.

- Por um pouco que n�o me apanhas... continuou a cocote na sua conversa com a menina. Se a pessoa que me vem buscar tivesse chegado j�, eu estaria longe. - E mudando de tom, a acarinhar-lhe os cabelos: - Por que n�o me apareces!... N�o tens que recear: minha casa � muito sossegada... J� l� t�m ido fam�lias!...

- Nunca vou � cidade... � raro! suspirou Pombinha.

- Vai amanh� com tua m�e; jantam as duas comigo...

- Se mam�e deixar... Olha! ela ai vem. Pe�a.

Dona Isabel prometeu ir, n�o no dia seguinte, mas no outro imediato, que era domingo. E a palestra durou animada at� que chegou, da� a um quarto de hora, o rapaz por quem esperava L�onie. Era um mo�o de vinte e poucos anos, sem emprego e sem fortuna, mas vestido com esmero e muito bem apessoado. A cocote, logo que o viu aproximar-se, disse baixinho � menina:

- N�o � preciso que ele saiba que vais l� domingo, ouviste?

Juju dormia. Resolveram n�o acord�-la; iria no dia seguinte.

Na ocasi�o em que L�onie partia pelo bra�o do amante, acompanhada at� o port�o por um s�quito de lavadeiras, a Rita, no p�tio, beliscou a coxa de Jer�nimo e soprou-lhe � meia voz:

- N�o lhe caia o queixo!...

O cavouqueiro teve um desdenhoso sacudir d�ombros.

- Aquela pra c� nem pintada!

E, para deixar bem patente as suas prefer�ncias, virou o p� do lado e bateu com o tamanco na canela da mulata.

- Olha o bruto!... queixou-se esta, levando a m�o ao lagar da pancada. Sempre h� de mostrar que � galego!

X

No outro dia a casa do Miranda estava em preparos de festa. Lia-se no �Jornal do Com�rcio� que Sua Excel�ncia fora agraciado pelo governo portugu�s com o titulo de Bar�o do Freixal; e como os seus amigos se achassem prevenidos para ir cumpriment�-lo no domingo, o negociante dispunha-se a receb�-los condignamente.

Do corti�o, onde esta novidade causou sensa��o, via-se nas janelas do sobrado, abertas de par em par, surgir de vez em quando Leonor ou Isaura, a sacudirem tapetes e capachos, batendo-lhes em cima com um pau, os olhos fechados, a cabe�a torcida para dentro por causa da poeira que a cada pancada se levantava, como fuma�a de um tiro de pe�a. Chamaram-se novos criados para aqueles dias. No sal�o da frente, pretos lavavam o soalho, e na cozinha havia rebuli�o. Dona Estela, de penteador de cambraia enfeitado de la�os cor-de-rosa, era lobrigada de relance, ora de um lado, ora de outro, a dar as suas ordens, abanando-se com um grande leque; ou aparecia no patamar da escada do fundo, preocupada em soerguer as saias contra as �guas sujas da lavagem, que escorriam para o quintal. Zulmira tamb�m ia e vinha, com a sua palidez fria e �mida de menina sem sangue. Henrique, de palet� branco, ajudava o Botelho nos arranjos da casa e, de instante a instante, chegava � janela, para namoriscar Pombinha, que fingia n�o dar por isso, toda embebida na sua costura, � porta do n�mero 15, numa cadeira de vime, uma perna dobrada sobre a outra, mostrando a meia de seda azul e um sapatinho preto de entrada baixa; s� de longo em longo espa�o, ela desviava os olhos do servi�o e erguia-os para o sobrado. Entretanto, a figura gorda e encanecida do novo Bar�o, sobre-casacado, com o chap�u alto derreado para tr�s na cabe�a e sem largar o guarda-chuva, entrava da rua e atravessava a sala de jantar, seguia at� a despensa, diligente esbaforido, indagando se j� tinha vindo isto e mais aquilo, provando dos vinhos que chegavam em garraf�es, examinando tudo, voltando-se para a direita e para a esquerda, dando ordens, ralhando, exigindo atividade, e depois tornava a sair, sempre apressado, e metia-se no carro que o esperava � porta da rua.

- Toca! toca! Vamos ver se o fogueteiro aprontou os fogos!

E viam-se chegar, quase sem intermit�ncia, homens carregados de gigos de champanha, caixas de Porto e Bord�us, barricas de cerveja, cestos e cestos de mantimentos, latas e latas de conserva; e outros traziam perus e leit�es, canastras d�ovos, quartos de carneiro e de porco. E as janelas do sobrado iam-se enchendo de compoteiras de doce ainda quente, sa�do do fogo, e travess�es, de barro e de ferro, com grandes pe�as de carne em vinha d�alhos, prontos para entrar no forno. � porta da cozinha penduraram pelo pesco�o um cabrito esfolado, que tinha as pernas abertas, lembrando sinistramente uma crian�a a quem enforcassem depois de tirar-lhe a pele.

Todavia, c� embaixo, um caso palpitante agitava a estalagem: Domingos, o sedutor da Florinda, desaparecera durante a noite e um novo caixeiro o substitu�a ao balc�o.

O vendeiro retorquia atravessado a quem lhe perguntava pelo evadido:

- Sei c�! Creio que n�o podia traz�-lo pendurado ao pesco�o!...

- Mas voc� disse que respondia por ele! repontou Marciana, que parecia ter envelhecido dez anos naquelas �ltimas vinte e quatro horas.

- De acordo, mas o tratante cegou-me! Que havemos de fazer?... � ter paci�ncia!

- Pois ent�o ande com o dote!

- Que dote? Voc� est� b�beda?

- B�beda, hein? Ah, corja! t�o bom � um como o outro! Mas eu hei de mostrar!

- Ora, n�o me amole!

E Jo�o Rom�o virou-lhe as costas, para falar � Bertoleza que se chegara.

- Deixa estar, malvado, que Deus � quem h� de punir por mim e por minha filha! exclamou a desgra�ada.

Mas o vendeiro afastou-se, indiferente �s frases que uma ou outra lavadeira imprecava contra ele. Elas, por�m, j� se n�o mostravam t�o indignadas como na v�spera; uma s� noite rolada por cima do esc�ndalo bastava para tirar-lhe o m�rito de novidade.

Marciana foi com a pequena � procura do subdelegado e voltou aborrecida, porque lhe disseram que nada se poderia fazer enquanto n�o aparecesse o delinq�ente. M�e e filha passaram todo esse s�bado na rua, numa roda-viva, da secretaria e das esta��es de pol�cia para o escrit�rio de advogados que, um por um, lhes perguntavam de quanto dispunham para gastar com o processo, despachando-as, sem mais considera��es, logo que se inteiravam da escassez de recursos de ambas as partes.

Quando as duas, prostradas de cansa�o, esbraseadas de calor, tornaram � tarde para a estalagem, na hora em que os homens do mercado, que ali moravam, recolhiam-se j� com os balaios vazios ou com o resto da fruta que n�o conseguiram vender na cidade, Marciana vinha t�o furiosa que, sem dar palavra � filha e com os bra�os mo�dos de esbordo�-la, abriu toda a casa e correu a buscar �gua para baldear o ch�o. Estava possessa.

V� a vassoura! Anda! Lava! lava, que est� isto uma porcaria! Parece que nunca se limpa o diabo desta casa! � deix�-la fechada uma hora e morre-se de fedor! Apre! isto faz peste!

E notando que a pequena chorava:

- Agora deste para chorar, hein? mas na ocasi�o do relaxamento havias de estar bem disposta!

A filha solu�ou.

- Cala-te, coisa-ruim! N�o ouviste?

Florinda solu�ou mais forte.

- Ah! choras sem motivo?... Espera, que te fa�o chorar com raz�o.

E precipitou-se sobre ela com uma acha de lenha.

Mas a mulatinha, de um salto, pinchou pela porta e atravessou de uma s� carreira o p�tio da estalagem, fugindo em desfilada pela rua.

Ningu�m teve tempo de apanh�-la, e um clamor de galinheiro assustado levantou-se entre as lavadeiras.

Marciana foi at� o port�o, como uma doida e, compreendendo que a filha a abandonava, desatou por sua vez a solu�ar, de bra�os abertos, olhando para o espa�o. As l�grimas saltavam-lhe pelas rugas da cara. E logo, sem transi��o, disparou da c�lera, que a convulsionava desde a manh� da v�spera, para cair numa dor humilde enternecida de m�e que perdeu o filho.

- Para onde iria ela, meu pai do c�u?

- Pois voc� desd�ontem que bate na rapariga!... disse-lhe a Rita. Fugiu-lhe, � bem feito! Que diabo! ela � de carne, n�o � de ferro!

- Minha filha!

- � bem feito! Agora chore na cama que � lugar quente!

- Minha filha! Minha filha! Minha filha!

Ningu�m quis tomar o partido da infeliz, � exce��o da cabocla velha, que foi colocar-se perto dela, fitando-a im�vel, com o seu desvairado olhar de bruxa feiticeira.

Marciana arrancou-se da abstra��o plangente em que ca�ra, para arvorar-se terr�vel defronte da venda, apostrofando com a m�o no ar e a carapinha desgrenhada:

- Este galego e que teve a culpa de tudo! Maldito sejas tu, ladr�o! Se n�o me deres conta de minha filha, malvado, pego-te fogo na casa.

A bruxa sorriu sinistramente ao ouvir estas �ltimas palavras.

O vendeiro chegou � porta e ordenou em tom seco � Marciana que despejasse o n�mero 12.

- � andar! � andar! N�o quero esta berraria aqui! Bico, ou chamo um urbano! Dou-lhe uma noite! amanh� pela manh� - rua!

Ah! ele esse dia estava intolerante com tudo e com todos; por mais de uma vez mandara Bertoleza � coisa mais imunda, apenas porque esta lhe fizera algumas perguntas concernentes ao servi�o. Nunca o tinha visto assim, t�o fora de si, t�o cheio de repel�es; nem parecia aquele mesmo homem inalter�vel, sempre calmo e met�dico.

E ningu�m seria capaz de acreditar que a causa de tudo isso era o fato de ter sido o Miranda agraciado com o titulo de Bar�o.

Sim, senhor! aquele taverneiro, na apar�ncia t�o humilde e t�o miser�vel; aquele sovina que nunca sa�ra dos seus tamancos e da sua camisa de riscadinho de Angola; aquele animal que se alimentava pior que os c�es, para p�r de parte tudo, tudo, que ganhava ou extorquia; aquele ente atrofiado pela cobi�a e que parecia ter abdicado dos seus privil�gios e sentimentos de homem; aquele desgra�ado, que nunca jamais amara sen�o o dinheiro, invejava agora o Miranda, invejava-o deveras, com dobrada amargura do que sofrera o marido de Dona Estela, quando, por sua vez, o invejara a ele. Acompanhara-o desde que o Miranda viera habitar o sobrado com a fam�lia; vira-o nas felizes ocasi�es da vida, cheio de import�ncia, cercado de amigos e rodeado de aduladores; vira-o dar festas e receber em sua casa as figuras mais salientes da pra�a e da pol�tica; vira-o luzir, como um grosso pi�o de ouro, girando por entre damas da melhor e mais fina sociedade fluminense; vira-o meter-se em altas especula��es comerciais e sair-se bem; vira seu nome figurar em v�rias corpora��es de gente escolhida e em subscri��es, assinando belas quantias; vira-o fazer parte de festas de caridade e festas de regozijo nacional; vira-o elogiado pela imprensa e aclamado como homem de vistas largas e grande talento financeiro; vira-o enfim em todas as suas prosperidades, e nunca lhe tivera inveja. Mas agora, estranho

deslumbramento! quando o vendeiro leu no �Jornal do Com�rcio� que o vizinho estava bar�o - Bar�o! - sentiu tamanho calafrio em todo o corpo, que a vista por um instante se lhe apagou dos olhos.

- Bar�o!

E durante todo o santo dia n�o pensou noutra coisa. �Bar�o!... Com esta � que ele n�o contava!...� E, defronte da sua preocupa��o, tudo se convertia em comendas e crach�s; at� os modestos dois vint�ns de manteiga, que media sobre um peda�o de papel de embrulho para dar ao fregu�s, transformava-se, de simples mancha amarela, em opulenta ins�gnia de ouro cravejada de brilhantes.

� noite, quando se estirou na cama, ao lado da Bertoleza, para dormir, n�o p�de conciliar o sono. Por toda a mis�ria daquele quarto s�rdido; pelas paredes imundas, pelo ch�o enlameado de poeira e sebo, nos tetos funebremente velados pelas teias de aranha, estrelavam pontos luminosos que se iam transformando em gr�-cruzes, em h�bitos e veneras de toda a ordem e esp�cie. E em volta do seu esp�rito, pela primeira vez alucinado, um turbilh�o de grandezas que ele mal conhecia e mal podia imaginar, perpassou vertiginosamente, em ondas de seda e rendas, velado e p�rolas, colos e bra�os de mulheres seminuas, num fremir de risos e espumar aljofrado de vinhos cor-de-ouro. E nuvens de caudas de vestidos e abas de casaca l� iam, rodando deliciosamente, ao som de langorosas valsas e � luz de candelabros de mil velas de todas as cores. E carruagens desfilavam reluzentes, com uma coroa � portinhola, o cocheiro teso, de libr�, sopeando parelhas de cavalos grandes. E intermin�veis mesas estendiam-se, serpenteando a perder de vista, acumuladas de iguarias, numa encantadora confus�o de flores, luzes, baixelas e cristais, cercadas de um e de outro lado por luxuoso renque de convivas, de ta�a em punho, brindando o anfitri�o.

E, porque nada disso o vendeiro conhecia de perto, mas apenas pelo ru�do namorador e f�tuo, ficava deslumbrado com o seu pr�prio sonho. Tudo aquilo, que agora lhe deparava o del�rio, at� ai s� lhe passara pelos olhos ou lhe chegara aos ouvidos como o eco e reflexo de um mundo inating�vel e long�nquo; um mundo habitado por seres superiores; um para�so de gozos excelentes e delicados, que os seus grosseiros sentidos repeliam; um conjunto harmonioso e discreto de sons e cores mal definidas e vaporosas; um quadro de manchas p�lidas, sussurrantes, sem firmezas de tintas, nem contornos, em que se n�o determinava o que era p�tala de rosa ou asa de borboleta, murm�rio de brisa ou ciciar de beijos.

N�o obstante, ao lado dele a crioula roncava, de papo para o ar, gorda, estrompada de servi�o, tresandando a uma mistura de suor com cebola crua e gordura podre.

Mas Jo�o Rom�o nem dava por ela; s� o que ele via e sentia era todo aquele voluptuoso mundo inacess�vel vir descendo para a terra, chegando-se para o seu alcance, lentamente, acentuando-se. E as d�bias sombras tomavam forma, e as vozes duvidosas e confusas transformavam-se em falas distintas, e as linhas desenhavam-se n�tidas, e tudo se ia esclarecendo e tudo se aclarava, num reviver de natureza ao raiar do sol. Os t�nues murm�rios suspirosos desdobravam-se em orquestra de baile, onde se distinguiam instrumentos, e os surdos rumores indefinidos eram j� animadas conversas, em que damas e cavalheiros discutiam pol�tica, artes, literatura e ci�ncia. E uma vida inteira, completa, real, descortinou-se amplamente defronte dos seus olhos fascinados; uma vida fidalga, de muito luxo, de muito dinheiro; uma vida de pal�cio, entre mob�lias preciosas e objetos espl�ndidos, onde ele se via cercado de titulares milion�rios, e homens de farda bordada, a quem tratava por tu, de igual para igual, pondo-lhes a m�o no ombro. E ali ele n�o era, nunca fora, o dono de um corti�o, de tamancos e em mangas de camisa; ali era o Sr. Bar�o! O Bar�o do ouro! o Bar�o das grandezas! o Bar�o dos milh�es! Vendeiro! Qual! era o famoso, o enorme capitalista! o propriet�rio sem igual! o incompar�vel banqueiro, em cujos capitais se equilibrava a terra, como imenso globo em cima de colunas feitas de moedas de ouro. E viu-se logo montado a cavaleiras sobre o mundo, pretendendo abarc�-lo com as suas pernas curtas; na cabe�a uma coroa de rei e na m�o um cetro. E logo, de todos os cantos do quarto, come�aram a jorrar cascatas de libras esterlinas, e a seus p�s principiou a formar-se um formigueiro de pigmeus em grande movimento comercial; e navios descarregavam pilhas e pilhas de fardos e caix�es marcados com as iniciais do seu nome; e telegramas faiscavam eletricamente em volta da sua cabe�a; e paquetes de todas as nacionalidades giravam vertiginosamente em torno do seu corpo de colosso, arfando e apitando sem tr�gua; e r�pidos comboios a vapor atravessam-no todo, de um lado a outro, como se o cosessem com uma cadeia de vag�es.

Mas, de repente, tudo desapareceu com a seguinte frase:

- Acorda, seu Jo�o, para ir � praia. S�o horas!

Bertoleza chamava-o aquele domingo, como todas as manh�s, para ir buscar o peixe, que ela tinha de preparar para os seus fregueses. Jo�o Rom�o, com medo de ser iludido, n�o confiava nunca aos empregados a menor compra a dinheiro; nesse dia, por�m, n�o se achou com animo de deixar a cama e disse � amiga que mandasse o Manuel.

Seriam quatro da madrugada. Ele conseguiu ent�o passar pelo sono.

�s seis estava de p�. Defronte, a casa do Miranda resplandecia j�. I�aram-se bandeiras nas janelas da frente; mudaram-se as cortinas, armaram-se flor�es de murta � entrada e recamaram-se de folhas de mangueira o corredor e a cal�ada. Dona Estela mandou soltar foguetes e queimar bombas ao romper da alvorada. Uma banda de m�sica, em frente � porta do sobrado, tocava desde essa hora. O Bar�o madrugara com a fam�lia; todo de branco, com uma gravata

de rendas, brilhantes no peito da camisa, chegava de vez em quando a uma das janelas, ao lado da mulher ou da filha, agradecendo para a rua; e limpava a testa com o len�o; acendia charutos, risonho, feliz, resplandecente.

Jo�o Rom�o via tudo isto com o cora��o mo�do. Certas d�vidas aborrecidas entravam-lhe agora a roer por dentro: qual seria o melhor e o mais acertado: - ter vivido como ele vivera at� ali, curtindo priva��es, em tamancos e mangas de camisa; ou ter feito como o Miranda, comendo boas coisas e gozando � farta?... Estaria ele, Jo�o Rom�o, habilitado a possuir e desfrutar tratamento igual ao do vizinho?... Dinheiro n�o lhe faltava para isso... Sim, de acordo! mas teria animo de gast�-lo assim, sem mais nem menos?... sacrificar uma boa por��o de contos de r�is, t�o penosamente acumulados, em troca de uma tet�ia para o peito?... Teria animo de dividir o que era seu, tomando esposa, fazendo fam�lia; e cercando-se de amigos?... Teria animo de encher de finas iguarias e vinhos preciosos a barriga dos outros, quando at� ali fora t�o pouco condescendente para com a pr�pria?... E, caso resolvesse mudar de vida radicalmente, unir-se a uma senhora bem-educada e distinta de maneiras, montar um sobrado como o do Miranda e volver-se titular, estaria apto para o fazer?... Poderia dar conta do recado?... Dependeria tudo isso somente da sua vontade?... �Sem nunca ter vestido um palet�, como vestiria uma casaca?... Com aqueles p�s, deformados pelo diabo dos tamancos, criados � solta, sem meias, como cal�aria sapatos de baile?... E suas m�os, calosas e maltratadas, duras como as de um cavouqueiro, como se ajeitariam com a luva?... E isso ainda n�o era tudo! O mais dif�cil seria o que tivesse de dizer aos seus convidados!... Como deveria tratar as damas e cavalheiros, em meio de um grande sal�o cheio de espelhos e cadeiras douradas?... Como se arranjaria para conversar, sem dizer barbaridades?...�

E um desgosto negro e profundo assoberbou-lhe o cora��o, um desejo forte de querer saltar e um medo invenc�vel de cair e quebrar as pernas. Afinal, a dolorosa desconfian�a de si mesmo e a terr�vel convic��o da sua impot�ncia para pretender outra coisa que n�o fosse ajuntar dinheiro, e mais dinheiro, e mais ainda, sem saber para que e com que fim, acabaram azedando-lhe de todo a alma e tingindo de fel a sua ambi��o e despolindo o seu ouro.

�Fora uma besta!... pensou de si pr�prio, amargurado: Uma grande besta!... Pois n�o! por que em tempo n�o tratara de habituar-se logo a certo modo de viver, como faziam tantos outros seus patr�cios e colegas de profiss�o?... Por que, como eles, n�o aprendera a dan�ar? e n�o freq�entar sociedades carnavalescas? e n�o fora de vez em quando � Rua do Ouvidor e aos teatros e bailes, e corridas e a passeios?... Por que se n�o habituara com as roupas finas, e com o cal�ado justo, e com a bengala, e com o len�o, e com o charuto, e com o chap�u, e com a cerveja, e com tudo que os outros usavam naturalmente, sem precisar de privil�gio para isso?... Maldita economia!�

- Teria gasto mais, � verdade!... N�o estaria t�o bem!... mas, ora adeus! estaria habilitado a fazer do meu dinheiro o que bem quisesse!... Seria um homem civilizado!...

- Voc� deu hoje para conversar com as almas, seu Jo�o?... perguntou-lhe Bertoleza, notando que ele falava sozinho, distra�do do servi�o.

- Deixe! N�o me amole voc� tamb�m. N�o estou bom hoje!

- � gentes! n�o falei por mal!... Credo!

- �St� bem! Basta!

E o seu mau humor agravou-se pelo correr do dia. Come�ou a implicar com tudo. Arranjou logo uma pega, � entrada da venda, com o fiscal da rua: �Pois ele era l� algum parvo, que tivesse medo de amea�as de multas?... Se o bolas do fiscal esperava com�-lo por uma perna, como costumava fazer com os outros, que experimentasse, para ver s� quanto lhe custaria a festa!... E que lhe n�o rosnasse muito, que ele n�o gostava de c�es � porta!... Era andar!� Pegou-se depois com a Machona, por causa de um gato desta, que, a semana passada, lhe fora ao tabuleiro do peixe frito. Parava defronte das tinas vazias, encolerizado, procurando pretextos para ralhar. Mandava, com um berro, sa�rem as crian�as de seu caminho: �Que praga de piolhos! Arre, dem�nio! Nunca vira gente t�o danada para parir! Pareciam ratas!� Deu um encontr�o no velho Lib�rio.

- Sai tu tamb�m do caminho, fona de uma figa! N�o sei que diabo fica fazendo c� no mundo um caco velho como este, que j� n�o presta pra nada!

Protestou contra os galos de um alfaiate, que se divertia a faz�-los brigar, no meio de grande roda entusiasmada e barulhenta. Vituperou os italianos, porque estes, na alegre independ�ncia do domingo, tinham � porta da casa uma esterqueira de cascas de melancia e laranja, que eles comiam tagarelando, assentados sobre a janela e a cal�ada.

- Quero isto limpo! bramava furioso. Est� pior que um chiqueiro de porcos! Apre! Tomara que a febre amarela os lamba a todos! maldita ra�a de carcamanos! H�o de trazer-me isto asseado ou vai tudo para o olho da rua! Aqui mando eu!

Com a pobre velha Marciana, que n�o tratara de despejar o n�mero 12, conforme a intima��o da v�spera, a sua f�ria tocou ao del�rio. A infeliz, desde que Florinda lhe fugira, levava a choramingar e maldizer-se, monologando com persist�ncia man�aca. N�o pregou olho durante toda a noite; sa�ra e entrara na estalagem mais de vinte vezes, irrequieta, ululando, como uma cadela a quem roubaram o cachorrinho.

Estava apatetada; n�o respondia �s perguntas que lhe dirigiam. Jo�o Rom�o falou-lhe; ela nem sequer se voltou para ouvir. E o vendeiro, cada vez mais excitado, foi buscar dois homens e ordenou que esvaziassem o numero 12.

- Os tarecos fora! e j�! Aqui mando eu! Aqui sou eu o monarca!

E tinha gestos inflex�veis de d�spota.

Principiou o despejo.

- N�o! aqui dentro n�o! Tudo l� fora! na rua! gritou ele, quando os carregadores quiseram depor no p�tio os trens de Marciana. L� fora do port�o! L� fora do port�o!

E a m�sera, sem opor uma palavra, assistia ao despejo acocorada na rua, com os joelhos juntos, as m�os cruzadas sobre as canelas, resmungando. Transeuntes paravam a olh�-la. Formava-se j� um grupo de curiosos. Mas ningu�m entendia o que ela rosnava; era um rabujar confuso, intermin�vel, acompanhado de um �nico gesto de cabe�a, triste e autom�tico. Ali perto, o colch�o velho, j� roto e destripado, os m�veis desconjuntados e sem verniz, as trouxas de molambos �teis, as lou�as ordin�rias e sujas do uso, tinham, tudo amontoado e sem ordem, um ar indecoroso de interior de quarto de dormir, devassado em flagrante intimidade. E veio o homem dos cinco instrumentos, que, aos domingos, aparecia sempre; e fez-se o entra-e-sai dos mercadores; e lavadeiras ganharam a rua em trajos de passeio, e os tabuleiros de roupa engomada, que saiam, cruzaram-se com os sacos de roupa suja, que entravam; e Marciana n�o se movia do seu lugar, monologando. Jo�o Rom�o percorreu o n�mero 12, escancarando as portas, a dar arres e empurrando para fora, com o p�, algum trapo ou algum frasco vazio que l� ficara abandonado; e a enxotada, indiferente a tudo, continuava a sussurrar funebremente. J� n�o chorava, mas os olhos tinha-os ainda relentados na sua muda fixidez. Algumas mulheres da estalagem iam ter com ela de vez em quando, agora de novo compungidas, e faziam-lhe oferecimentos, Marciana n�o respondia. Quiseram obrig�-la a comer; n�o houve meio. A desgra�ada n�o prestava aten��o a coisa alguma, parecia n�o dar pela presen�a de ningu�m. Chamaram-na pelo nome repetidas vezes; ela persistia no seu inintelig�vel mon�logo, sem tirar a vista de um ponto.

- Cruzes! parece que lhe deu alguma!

- A Augusta chegara-se tamb�m.

- Teria ensandecido?... perguntou � Rita, que, a seu lado, olhava para a infeliz, com um prato de comida na m�o. Coitada!

- Tia Marciana! dizia a mulata. N�o fique assim!! Levante-se! Meta os seus trens pra dentro! V� l� pra casa at� encontrar arruma��o!...

Nada! O mon�logo continuava.

- Olhe que vai chover! N�o tarda a cair �gua! J� senti dois pingos na cara.

Qual!

A Bruxa, a certa distancia, fitava-a com estranheza, igualmente im�vel, como um efeito de sugest�o.

Rita afastou-se, porque acabava de chegar o Firmo, acompanhado pelo Porfiro, trazendo ambos embrulhos para o jantar. O amigo da das Dores tamb�m veio. Deram tr�s horas da tarde. A casa do Miranda continuava em festa animada cada vez mais cheia de visitas; l� dentro a m�sica quase que n�o tomava f�lego, enfiando quadrilhas e valsas; mo�as e meninas dan�avam na sala da frente, com muito riso; desarrolhavam-se garrafas a todo instante; os criados iam e vinham, de carreira, da sala de jantar � despensa e � cozinha, carregados de copos em salvas; Henrique, suado e vermelho, aparecia de quando em quando � janela, impaciente por n�o ver Pombinha, que estava esse dia de passeio com a m�e em casa de L�onie.

Jo�o Rom�o, depois de serrazinar na venda com os caixeiros e com a Bertoleza, tornou ao p�tio da estalagem queixando-se de que tudo ali ia muito mal. Censurou os trabalhadores da pedreira, nomeando o pr�prio Jer�nimo, cuja for�a f�sica ali�s o intimidara sempre. �Era um relaxamento aquela porcaria de servi�o! Havia tr�s semanas que estava com uma broca �-toa, sem atar, nem desatar; afinal ai chegara o domingo e n�o se havia ainda lascado fogo! Uma verdadeira cala�aria! O tal seu Jer�nimo, dantes t�o apurado, era agora o primeiro a dar o mau exemplo! perdia noites no samba! n�o largava os rastros da Rita Baiana e parecia embei�ado por ela! N�o tinha jeito!� Piedade, ouvindo o vendeiro dizer mal do seu homem, saltou em defesa deste com duas pedras na m�o, e uma contenda travou-se, assanhando todos os �nimos. Felizmente, a chuva, caindo em cheio, veio dispersar o ajuntamento que se tornava s�rio. Cada um correu para o seu buraco, num alvoro�o exagerado; as crian�as despiram-se e vieram c� fora tomar banho debaixo das goteiras, por pagode, gritando, rindo, saltando e atirando-se ao ch�o, a espernearem; fingindo que nadavam. E l� defronte, no sobrado, ferviam brindes, enquanto a �gua jorrava copiosamente, alagando o p�tio.

Quando Jo�o Rom�o entrou na venda, recolhendo-se da chuva, um caixeiro entregou-lhe um cart�o de Miranda. Era um convite para l� ir � noite tomar uma ch�vena de ch�.

O vendeiro, a principio, ficou lisonjeado com o obs�quio, primeiro desse g�nero que em sua vida recebia; mas logo depois voltou-lhe a c�lera com mais �mpeto ainda. Aquele convite irritava-o como um ultraje, uma provoca��o. �Por que o pulha o convidara, devendo saber que ele decerto l� n�o ia?... Para que, se n�o para o enfrenesiar ainda mais do que j� estava?!... Seu Miranda que fosse � t�bua com a sua festa e com os seus t�tulos!�

- N�o preciso dele para nada!... exclamou o vendeiro. N�o preciso, nem dependo de nenhum safardana! Se gostasse de festas, dava-as eu!

No entanto, come�ou a imaginar como seria, no caso que estivesse prevenido de roupa e aceitasse o convite: figurou-se bem vestido, de pano fino, com uma boa cadeia de rel�gio, uma gravata com alfinete de brilhantes; e viu-se l� em cima, no meio da sala, a sorrir para os lados, prestando aten��o a um, prestando aten��o a outro, discretamente silencioso e af�vel, sentindo que o citavam dos lados em voz morti�a e respeitosa como um homem rico, cheio de independ�ncia. E adivinhava os olhares aprobativos das pessoas s�rias; os �culos curiosos das velhas assestados sobre ele, procurando ver se estaria ali um bom arranjo para uma das filhas de menor cota��o.

Nesse dia serviu mal e porcamente aos fregueses; tratou aos repel�es a Bertoleza e, quando, j� as cinco horas, deu com a Marciana, que, uns negros por compaix�o haviam arrastado para dentro da venda, disparatou:

- Ora bolas! pra que diabo me metem em casa este estupor?! Gosto de ver tais caridades com o que � dos outros! Isto aqui n�o � acoito de vagabundos!...

E, como um pol�cia, todo encharcado de chuva, entrasse para beber um gole de parati, Jo�o Rom�o voltou-se para ele e disse-lhe:

- Camarada, esta mulher � gira! n�o tem domicilio, e eu n�o hei de, quando fechar a porta, ficar com ela aqui dentro da venda!

O soldado saiu e, da� a coisa de uma hora, Marciana era carregada para o xadrez, sem o menor protesto e sem interromper o seu mon�logo de demente. Os cacar�us foram recolhidos ao dep�sito p�blico por ordem do inspetor do quarteir�o. E a Bruxa era a �nica que parecia deveras impressionada com tudo aquilo.

Entretanto, a chuva cessou completamente, o sol reapareceu, como para despedir-se: andorinhas esgaivotaram no ar; e o corti�o palpitou inteiro na tr�fega alegria do domingo. Nas salas do bar�o a festa engrossava, cada vez mais estrepitosa; de vez em quando vinha de l� uma ta�a quebrar-se no p�tio da estalagem, levantando protestos e surriadas.

A noite chegou muito bonita, com um belo luar de lua cheia, que come�ou ainda com o crep�sculo; e o samba rompeu mais forte e mais cedo que de costume, incitado pela grande anima��o que havia em casa do Miranda.

Foi um forrobod� valente. A Rita Baiana essa noite estava de veia para a coisa; estava inspirada; divina! Nunca dan�ara com tanta gra�a e tamanha lubricidade!

Tamb�m cantou. E cada verso que vinha da sua boca de mulata era um arrulhar choroso de pomba no cio. E o Firmo, b�bedo de vol�pia, enroscava-se todo ao viol�o; e o viol�o e ele gemiam com o mesmo gosto, grunhindo, ganindo, miando, com todas as vozes de bichos sensuais, num desespero de lux�ria que penetrava at� ao tutano com l�nguas fin�ssimas de cobra.

Jer�nimo n�o p�de conter-se: no momento em que a baiana, ofegante de cansa�o, caiu exausta, assentando-se ao lado dele, o portugu�s segredou-lhe com a voz estrangulada de paix�o:

- Meu bem! se voc� quiser estar comigo, dou uma perna ao demo!

O mulato n�o ouviu, mas notou o cochicho e ficou, de m� cara, a rondar disfar�adamente o rival.

O canto e a dan�a continuavam todavia, sem afrouxar. Entrou a das Dores. Nenen, mais uma amiga sua, que fora passar o dia com ela, rodavam de m�os nas cadeiras, rebolando em meio de uma volta de palmas cadenciadas, no acompanhamento do ritmo requebrado da musica.

Quando o marido de Piedade disse um segundo cochicho � Rita, Firmo precisou empregar grande esfor�o para n�o ir logo �s do cabo.

Mas, l� pelo meio do pagode, a baiana ca�ra na imprud�ncia de derrear-se toda sobre o portugu�s e soprar-lhe um segredo, requebrando os olhos. Firmo, de um salto, aprumou-se ent�o defronte dele, medindo-o de alto a baixo com um olhar provocador e atrevido. Jer�nimo, tamb�m posto de p�, respondeu altivo com um gesto igual. Os instrumentos calaram-se logo. Fez-se um profundo sil�ncio. Ningu�m se mexeu do lugar em que estava. E, no meio da grande roda, iluminados amplamente pelo capitoso luar de abril, os dois homens, perfilados defronte um do outro, olhavam-se em desafio.

Jer�nimo era alto, espada�do, constru��o de touro, pesco�o de H�rcules, punho de quebrar um coco com um murro: era a for�a tranq�ila, o pulso de chumbo. O outro, franzino, um palmo mais baixo que o portugu�s, pernas e bra�os secos, agilidade de maracaj�: era a for�a nervosa; era o arrebatamento que tudo desbarata no sobressalto do primeiro instante. Um, s�lido e resistente; o outro, ligeiro e destemido, mas ambos corajosos.

- Senta! Senta!

- Nada de rolo!

- Segue a dan�a, gritaram em volta.

Piedade erguera-se para arredar o seu homem dali.

O cavouqueiro afastou-a com um empurr�o, sem tirar a vista de cima do mulato.

- Deixa-me ver o que quer de mim este cabra!... rosnou ele.

- Dar-te um banho de fuma�a, galego ordin�rio! respondeu Firmo, frente a frente; agora avan�ando e recuando, sempre com um dos p�s no ar, e bamboleando todo o corpo e meneando os bra�os, como preparado para agarr�-lo.

Jer�nimo, esbravecido pelo insulto, cresceu para o advers�rio com um soco armado; o cabra, por�m, deixou-se cair de costas, rapidamente, firmando-se nas m�os o corpo suspenso, a perna direita levantada; e o soco passou por cima, varando o espa�o, enquanto o portugu�s apanhava no ventre um pontap� inesperado.

- Canalha! berrou possesso; e ia precipitar-se em cheio sobre o mulato, quando uma cabe�ada o atirou no ch�o.

- Levanta-se, que n�o dou em defuntos! exclamou o Firmo, de p�, repetindo a sua dan�a de todo o corpo.

O outro erguera-se logo e, mal se tinha equilibrado, j� uma rasteira o tombava para a direita, enquanto da esquerda ele recebia uma tapona na orelha. Furioso, desferiu novo soco, mas o capoeira deu para tr�s um salto de gato e o portugu�s sentiu um pontap� nos queixos.

Espirrou-lhe sangue da boca e das ventas. Ent�o fez-se um clamor medonho. As mulheres quiseram meter-se de permeio, por�m o cabra as emborcava com rasteiras r�pidas, cujo movimento de pernas apenas se percebia. Um horr�vel sarilho se formava. Jo�o Rom�o fechou �s pressas as portas da venda e trancou o port�o da estalagem, correndo depois para o lugar da briga. O Bruno, os mascates, os trabalhadores da pedreira, e todos os outros que tentaram segurar o mulato, tinham rolado em torno dele, formando-se uma roda limpa, no meio da qual o terr�vel capoeira, fora de si, doido, reinava, saltando a um tempo para todos os lados, sem consentir que ningu�m se aproximasse. O terror arrancava gritos agudos. Estavam j� todos assustados, menos a Rita que, a certa distancia, via, de bra�os cruzados, aqueles dois homens a se baterem por causa dela; um ligeiro sorriso encrespava-lhe os l�bios. A lua escondera-se: mudara o tempo; o c�u, de limpo que estava, fizera-se cor de lousa; sentia-se um vento �mido de chuva. Piedade berrava reclamando pol�cia; tinha levado um troca-queixos do marido, porque insistia em tir�-lo da luta. As janelas do Miranda acumulavam-se de gente. Ouviam-se apitos, soprados com desespero.

Nisto, ecoou na estalagem um bramido de fera enraivecida: Firmo acabava de receber, sem esperar, uma formid�vel cacetada na cabe�a. � que Jer�nimo havia corrido � casa e armara-se com o seu varapau minhoto. E ent�o o mulato, com o rosto banhado de sangue, refilando as presas e espumando de c�lera, erguera o bra�o direito, onde se viu cintilar a lamina de uma navalha.

Fez-se uma debandada em volta dos dois advers�rios, estrepitosa, cheia de pavor. Mulheres e homens atropelavam-se, caindo uns por cima dos outros. Albino perdera os sentidos; Piedade clamava, estarrecida e em solu�os, que lhe iam matar o homem; a das Dores soltava censuras e maldi��es contra aquela estupidez de se destriparem por causa de entrepernas de mulher; a Machona, armada com um ferro de engomar, jurava abrir as fu�as a quem lhe desse um segundo coice como acabava ela de receber um nas ancas; Augusta enfiara pela porta do fundo da estalagem, para atravessar o capinzal e ir � rua ver se descobria o marido, que talvez estivesse de servi�o no quarteir�o. Por esse lado acudiam curiosos e o p�tio enchia-se de gente de fora. Dona Isabel e Pombinha, de volta da casa de L�onie, tiveram dificuldade em chegar ao n�mero 15, onde, mal entraram, fecharam-se por dentro, praguejando a velha contra a desordem e lamentando-se da sorte que as lan�ou naquele inferno. Entanto, no meio de uma nova roda, encintada pelo povo, o portugu�s e o brasileiro batiam-se.

Agora a luta era regular: havia igualdade de partidos, porque o cavouqueiro jogava o pau admiravelmente; jogava-o t�o bem quanto o outro jogava a sua capoeiragem. Embalde Firmo tentava alcan��-lo; Jer�nimo, sopesando ao meio a grossa vara na m�o direita, girava-a com tal per�cia e ligeireza em torno do corpo, que parecia embastilhado por uma teia impenetr�vel e sibilante. N�o se lhe via a arma; s� se ouvia um zunido do ar simultaneamente cortado em todas as dire��es.

E, ao mesmo tempo que se defendia, atacava. O brasileiro tinha j� recebido pauladas na testa, no pesco�o, nos ombros, nos bra�os, no peito, nos rins e nas pernas. O sangue inundava-o inteiro; ele rugia e arfava, iroso e cansado, investindo ora com os p�s, ora com a cabe�a, e livrando-se daqui, livrando-se dali, aos pulos e �s cambalhotas.

A vit�ria pendia para o lado do portugu�s. Os espectadores aclamavam-no j� com entusiasmo; mas, de s�bito, o capoeira mergulhou, num relance, at� as canelas do advers�rio e surgiu-lhe rente dos p�s, grupado nele, rasgando-lhe o ventre com uma navalhada.

Jer�nimo soltou um mugido e caiu de borco, segurando os intestinos.

- Matou! Matou! Matou! exclamaram todos com assombro.

Os apitos esfuziaram mais assanhados.

Firmo varou pelos fundos do corti�o e desapareceu no capinzal.

- Pega! Pega!

- Ai, o meu rico homem! ululou Piedade, atirando-se de joelhos sobre o corpo ensang�entado do marido. Rita viera tamb�m de carreira lan�ar-se ao ch�o junto dele, para lhe afagar as barbas e os cabelos.

- � preciso o doutor! suplicou aquela, olhando para os lados � procura de uma alma caridosa que lhe valesse.

Mas nisto um estardalha�o de formid�veis pranchadas estrugiu no port�o da estalagem. O port�o abalou com estrondo e gemeu.

- Abre! Abre! reclamavam de fora.

Jo�o Rom�o atravessou o p�tio, como um general em perigo, gritando a todos:

- N�o entra a pol�cia! N�o deixa entrar! Ag�enta! Ag�enta!

- N�o entra! N�o entra! repercutiu a multid�o em coro.

E todo o corti�o ferveu que nem uma panela ao fogo.

- Ag�enta! Ag�enta!

Jer�nimo foi carregado para o quarto, a gemer, nos bra�os da mulher e da mulata.

- Ag�enta! Ag�enta!

De cada casulo espipavam homens armados de pau, achas de lenha, varais de ferro. Um empenho coletivo os agitava agora, a todos, numa solidariedade briosa, como se ficassem desonrados para sempre se a pol�cia entrasse ali pela primeira vez. Enquanto se tratava de uma simples luta entre dois rivais, estava direito! �Jogassem l� as cristas, que o mais homem ficaria com a mulher!� mas agora tratava-se de defender a estalagem, a comuna, onde cada um tinha a zelar por algu�m ou alguma coisa querida.

- N�o entra! N�o entra!

E berros atroadores respondiam �s pranchadas, que l� fora se repetiam ferozes.

A pol�cia era o grande terror daquela gente, porque, sempre que penetrava em qualquer estalagem, havia grande estrop�cio; � capa de evitar e punir o jogo e a bebedeira, os urbanos invadiam os quartos, quebravam o que l� estava, punham tudo em polvorosa. Era uma quest�o de �dio velho.

E, enquanto os homens guardavam a entrada do capinzal e sustentavam de costas o port�o da frente, as mulheres, em desordem, rolavam as tinas, arrancavam jiraus, arrastavam carro�as, restos de colch�es e sacos de cal, formando �s pressas uma barricada.

As pranchadas multiplicavam-se. O port�o rangia, estalava, come�ava a abrir-se; ia ceder. Mas a barricada estava feita e todos entrincheirados atr�s dela. Os que entravam de fora por curiosidade n�o puderam sair e viam-se metidos no surumbamba. As cercas das hortas voaram A Machona terr�vel fungara as saias e empunhava na m�o o seu ferro de engomar. A das Dores, que ningu�m dava nada por ela, era uma das mais duras e que parecia mais empenhada na defesa.

Afinal o port�o lascou; um grande rombo abriu-se logo; ca�ram t�buas; e os quatro primeiros urbanos que se precipitaram dentro foram recebidos a pedradas e garrafas vazias. Seguiram-se outros. Havia uns vinte. Um saco de cal, despejado sobre eles, desnorteou-os.

Principiou ent�o o salseiro grosso. Os sabres n�o podiam alcan�ar ningu�m por entre a trincheira; ao passo que os projetis, arremessados l� de dentro, desbaratavam o inimigo. J� o sargento tinha a cabe�a partida e duas pra�as abandonavam o campo, � falta de ar.

Era imposs�vel invadir aquele baluarte com t�o poucos elementos, mas a pol�cia teimava, n�o mais por obriga��o que por necessidade pessoal de desfor�o. Semelhante resist�ncia os humilhava. Se tivessem espingardas fariam fogo. O �nico deles que conseguiu trepar � barricada rolou de l� abaixo sob uma carga de pau que teve de ser carregado para a rua pelos companheiros. O Bruno, todo sujo de sangue, estava agora armado de um refle e o Porfiro, mestre na capoeiragem, tinha na cabe�a uma barretina de urbano.

- Fora os morcegos!

- Fora! Fora!

E, a cada exclama��o, tome pedra! tome lenha! tome cal! tome fundo de garrafa!

Os apitos estridulavam mais e mais fortes.

Nessa ocasi�o, por�m, Nenen gritou, correndo na dire��o da barricada.

- Acudam aqui! Acudam aqui! H� fogo no n�mero 12. Est� saindo fuma�a!

- Fogo!

A esse grito um p�nico geral apoderou-se dos moradores do corti�o. Um inc�ndio lamberia aquelas cem casinhas enquanto o diabo esfrega um olho!

Fez-se logo medonha confus�o. Cada qual pensou em salvar o que era seu. E os policiais, aproveitando o terror dos advers�rios, avan�aram com �mpeto, levando na frente o que encontravam e penetrando enfim no infernal reduto, a dar espadeiradas para a direita e para a esquerda, como quem destro�a uma boiada. A multid�o atropelava-se, desembestando num alarido. Uns fugiam � pris�o; outros cuidavam em defender a casa. Mas as pra�as, loucas de c�lera, metiam dentro as portas e iam invadindo e quebrando tudo, sequiosas de vingan�a.

Nisto, roncou no espa�o a trovoada. O vento do norte zuniu mais estridente e um grande p�-d��gua desabou cerrado.

XI

A Bruxa, por influ�ncia sugestiva da loucura de Marciana, piorou do ju�zo e tentou incendiar o corti�o.

Enquanto os companheiros o defendiam a unhas e dentes, ela, com todo o disfarce, carregava palha e sarrafos para o n�mero 12 e preparava uma fogueira. Felizmente acudiram a tempo; mas as conseq��ncias foram do mesmo modo desastrosas, porque muitas outras casinhas, escapando como aquela ao fogo, n�o escaparam � devasta��o da pol�cia. Algumas ficaram completamente assoladas. E a coisa seria ainda mais feia, se n�o viera o providencial aguaceiro apagar tamb�m o outro inc�ndio ainda pior, que, de parte a parte, lavrava nos �nimos. A pol�cia retirou-se sem levar nenhum preso. �A ir um iriam todos � esta��o! Deus te livre! Demais, para qu�? o que ela queria fazer, fez! Estava satisfeita!�

Apesar do empenho do Jo�o Rom�o, ningu�m conseguiu descobrir o autor da sinistra tentativa, e s� muito tarde cada qual cuidou de pregar olho, depois de reacomodar, entre plangentes lamenta��es, o que se salvou do destro�o. O tempo levantou de novo � meia-noite. Ao romper da aurora j� muita gente estava de p� e o vendeiro passava uma revista minuciosa no p�tio, avaliando e carpindo, inconsol�vel e furioso, o seu preju�zo. De vez em quando soltava uma praga. Al�m do que escangalharam os urbanos dentro das casas, havia muita tina partida, muito jirau quebrado, lampi�es em fanicos, hortas e cercas arrasadas; o port�o da frente e a tabuleta foram reduzidos a lenha. Jo�o Rom�o meditava, para cobrir o dano, carregar um imposto sobre os moradores da estalagem, aumentando-lhes o aluguel dos c�modos e o pre�o dos g�neros. Viu-se numa dobadoura durante o dia inteiro; desde pela manh� dera logo as provid�ncias para que tudo voltasse aos seus eixos o mais depressa poss�vel: mandou buscar novas tinas; fabricar novos jiraus e consertar os quebrados; p�s gente a remendar o port�o e a tabuleta. Ao meio-dia teve de comparecer � presen�a do subdelegado na secretaria da pol�cia. Foi mesmo em mangas de camisa e sem meias; muitos do corti�o o acompanharam, quer por esp�rito de camaradagem, quer por simples curiosidade.

Uma verdadeira patuscada esse passeio � cidade! Parecia uma romaria; algumas mulheres levaram os seus pequenitos ao colo; um magote de italianos ia � frente, macarroneando, a fumar cachimbo; alguns cantavam. Ningu�m tomou bonde; e por toda a viagem discutiram e altercaram em grande tro�a, comentando com gargalhadas e chala�as gordas o que iam encontrando, a chamar a aten��o das ruas por onde desfilava a ruidosa far�ndola.

A sala da pol�cia encheu-se.

O interrogat�rio, exclusivamente dirigido a Jo�o Rom�o, era respondido por todos a um s� tempo, a despeito dos protestos e das amea�as da autoridade, que se viu tonta. Nenhum deles nada esclarecia e todos se queixavam da pol�cia, exagerando as perdas recebidas na v�spera.

A respeito de como se travara o conflito e quem o provocara, o taverneiro declarou que nada podia saber ao certo, porque na ocasi�o se achava ausente da estalagem. De que tinha certeza era de que as pra�as lhe invadiram a propriedade e puseram em cacos tudo o que encontraram, como se aquilo l� fosse roupa de franc�s!

- Bem feito! bradou o subdelegado. N�o resistissem!

Um coro de respostas assanhadas levantou-se para justificar a resist�ncia. �Ah! Estavam mais que fartos de ver o que pintavam os morcegos, quando lhes n�o saia algu�m pela frente! Esbodegavam at� � �ltima, s� pelo gostinho de fazer mal! Pois ent�o uma criatura, porque estava a divertir-se um bocado com os amigos, havia de ser aperreada que nem boi ladr�o?... Tinha l� jeito? Os rolos era sempre a pol�cia quem os levantava com as suas f�rias! N�o se metesse ela na vida de quem vivia sossegado no seu canto, e n�o seria tanto barulho!...� Como de costume, o esp�rito de coletividade, que unia aquela gente em circulo de ferro, impediu que transpirasse o menor vislumbre de den�ncia. O

subdelegado, depois de dirigir-se inutilmente a um por um, despachou o bando, que fez logo a sua retirada, no meio de uma alacridade mais quente ainda que a da ida.

L� no corti�o, de portas adentro, podiam esfaquear-se � vontade, que nenhum deles, e muito menos a vitima, seria capaz de apontar o criminoso; tanto que o m�dico, que, logo depois da invas�o da pol�cia, desceu da casa do Miranda � estalagem, para socorrer Jer�nimo, n�o conseguiu arrancar deste o menor esclarecimento sobre o motivo da navalhada. �N�o fora nada!... N�o fora de prop�sito!... Estavam a brincar e sucedera aquilo!... Ningu�m tivera a menor inten��o de fazer-lhe mossa!...�

Rita mostrou-se de uma incans�vel solicitude para com o ferido. Foi ela quem correu a buscar os rem�dios, quem serviu de ajudante ao medico e quem serviu de enfermeira ao doente. Muitos l� iam, demorando-se um instante, para dar f�; ela, por�m, desde que Jer�nimo se achou operado, n�o lhe abandonou a cabeceira; ao passo que Piedade, aflita e atarantada, n�o fazia sen�o chorar e arreliar-se.

A mulata, essa n�o chorava; mas a sua fisionomia tinha uma profunda express�o de m�goa enternecida. Agora toda ela se sentia apegar-se �quele homem bom e forte; �quele gigante inofensivo, �quele H�rcules tranq�ilo que mataria o Firmo com uma punhada, mas que, na sua boa-f�, se deixara navalhar pelo fac�nora. �E tudo por causa dela! s� por ela!� Seu cora��o de mulher rendia-se cativo a semelhante dedica��o ensang�entada e dolorosa. E ele, o m�sero, interrompia as contra��es do rosto para sorrir defronte dos olhos enamorados da baiana, feliz naquela desgra�a que lhe permitia gozar dos seus carinhos. E tomava-lhe as m�os, e cingia-lhe a cintura, resignado e comovido, sem uma palavra, sem um gesto, mas a dizer bem claro, na sua dor silenciosa e quieta de animal ferido, que a amava muito, que a amava loucamente.

Rita afagava-o, j� sem a menor sombra de escr�pulo, tratando-o por tu, ameigando-lhe os cabelos sujos de sangue com a polpa macia da sua m�o feminil. E ali mesmo em presen�a da mulher, dele, s� faltava beij�-lo com a boca, que com os olhos o devorava de beijos ardentes e sequiosos.

Depois da meia-noite dada, ela e Piedade ficaram sozinhas velando o enfermo. Deliberou-se que este iria pela manh� para a Ordem de Santo Ant�nio, de que era irm�o. E, com efeito, no dia imediato, enquanto o vendeiro e seu bando andavam l� �s voltas com a pol�cia, e o resto do corti�o formigava, tagarelando em volta do conserto das tinas e jiraus, Jer�nimo, ao lado da mulher e da Rita, seguia dentro de um carro para o hospital.

As duas s� voltaram de l� � noite, caindo de fadiga. De resto, toda a estalagem estava igualmente prostrada e morrendo pela cama, se bem que nesse dia as lavadeiras em geral gazeassem o trabalho; as que tinham roupa com mais pressa foram lavar fora ou arrastaram bacias de banho para debaixo das bicas, � falta de melhor vasilha para o servi�o. Discutiu-se a campanha da v�spera sem variar o assunto. Aqui era um que lembrava as suas proezas com os urbanos, descrevendo entusiasmado os pormenores da luta; ali, outro repetia, cheio de emp�fia, os desaforos que dissera depois nas bochechas da autoridade; mais adiante trocavam-se queixas e recrimina��es; cada qual, mulheres e homens, sofrera o seu preju�zo. ou a sua arranhadura, e mostravam entre si, numa febre de indigna��o, os objetos partidos ou a parte do corpo escoriada.

Mas �s nove da noite j� n�o havia viva alma no p�tio da estalagem. A venda fechou-se um pouco mais cedo que de costume. Bertoleza atirou-se ao colch�o, estrompada; Jo�o Rom�o recolheu-se junto dela, porem n�o conseguiu dormir; sentia calafrios e pontadas na cabe�a. Chamou pela amiga, a gemer, e pediu-lhe que lhe desse alguma coisa para suar. Supunha estar com febre.

A crioula s� descansou quando, muitas horas adiante, depois de mudar-lhe a roupa, o viu pegar no sono; e da� a pouco, �s quatro da madrugada, erguia-se ela, com estalos de juntas, a bocejar, fungando no seu estremunhamento pesad�o, e pigarreando forte. Acordou o caixeiro para ir ao mercado; gargarejou um pouco d��gua � torneira da cozinha e foi fazer fogo para o caf� dos trabalhadores, riscando f�sforos e acendendo cavacos num fogareiro, donde come�aram a borbotar grossos novelos de fumo espesso.

L� fora clareava j�, e a vida renascia no corti�o. A luta de todos os dias continuava, como se n�o houvera interrup��o. Principiava o burburinho. Aquela noite bem dormida punha-os a todos de bom humor.

Pombinha, entretanto, nessa manh� acordara abatida e nervosa, sem animo de sair dos len��is. Pediu caf� � m�e, bebeu, e tornou a abra�ar-se nos travesseiros, escondendo o rosto.

- N�o te sentes melhor hoje, minha filha?... perguntou-lhe Dona Isabel, apalpando-lhe a testa. Febre n�o tens.

- Ainda sinto o corpo mole... mas n�o � nada... isto passa!...

- Foi de tanto gelo, que tomaste em casa de madama!... N�o te dizia?... Agora, o melhor � dar-te um escalda-p�s!...

- N�o, n�o, por amor de Deus! Daqui a pouco estou em p�!

�s oito horas, com efeito, levantava-se e fazia, indolentemente, o alinho da cabe�a, defronte do seu modesto lavat�rio de ferro. Dir-se-ia sem for�as para a menor coisa; toda ela transpirava uma contemplativa melancolia de convalescente; havia uma doce express�o dolorosa na limpidez cristalina de seus olhos de mo�a enferma; um pobre

sorriso p�lido a entreabrir-lhe as p�talas da boca, sem lhe alegrar os l�bios, que pareciam ressequidos � mingua de beijos de amor; assim delicada planta murcha, languesce e morre, se carinhosa borboleta n�o vai sacudir sobre ela as asas prenhes de fecundo e dourado p�len.

O passeio � casa de L�onie fizera-lhe muito mal. Trouxe de l� impress�es de �ntimos vexames, que nunca mais se apagariam por toda a sua vida.

A cocote recebeu-a de bra�os abertos, radiante com apanh�-la junto de si, naqueles div�s fofos e traidores, entre todo aquele luxo extravagante e requintado pr�prio para os v�cios grandes. Ordenou � criada que n�o deixasse entrar ningu�m, ningu�m, nem mesmo o Beb�, e assentou-se ao lado da menina, bem juntinho uma da outra, tomando-lhe as m�os, fazendo-lhe uma infinidade de perguntas, e pedindo-lhe beijos, que saboreava gemendo, de olhos fechados.

Dona Isabel suspirava tamb�m, mas de outro modo; na sua parva compreens�o do conforto, aqueles impertinentes espelhos, aqueles m�veis casquilhos e aquelas cortinas escandalosas arrancavam-lhe saudosas recorda��es do bom tempo e avivavam a sua impaci�ncia por melhor futuro.

Ai! assim Deus quisesse ajud�-la!...

�s duas da tarde, L�onie, por sua pr�pria m�o serviu �s visitas um pequeno lanche de foie-gras, presunto e queijo, acompanhado de champanha, gelo e �gua de Seltz, e, sem se descuidar um instante da rapariga, tinha para ela extremas solicitudes de namorado; levava-lhe a comida � boca, bebia do seu copo, apertava-lhe os dedos por debaixo da mesa.

Depois da refei��o, Dona Isabel, que n�o estava habituada a tomar vinho, sentiu vontade de descansar o corpo; L�onie franqueou-lhe um bom quarto, com boa cama, e, mal percebeu que a velha dormia, fechou a porta pelo lado de fora, para melhor ficar em liberdade com a pequena.

Bem! Agora estavam perfeitamente a s�s!

- Vem c�, minha flor!... disse-lhe, puxando-a contra si e deixando-se cair sobre um div�. Sabes? Eu te quero cada vez mais!... Estou louca por ti!

E devorava-a de beijos violentos, repetidos, quentes, que sufocavam a menina, enchendo-a de espanto e de um instintivo temor, cuja origem a pobrezinha, na sua simplicidade, n�o podia saber qual era.

A cocote percebeu o seu enleio e ergueu-se, sem largar-lhe a m�o.

- Descansemos n�s tamb�m um pouco... prop�s, arrastando-a para a alcova.

Pombinha assentou-se, constrangida, no rebordo da cama e, toda perplexa, com vontade de afastar-se, mas sem animo de protestar, por acanhamento, tentou reatar o fio da conversa, que elas sustentavam um pouco antes, � mesa, em presen�a de Dona Isabel. L�onie fingia prestar-lhe aten��o e nada mais fazia do que afagar-lhe a cintura, as coxas e o colo. Depois, como que distraidamente, come�ou a desabotoar-lhe o corpinho do vestido.

- N�o! Para qu�!... N�o quero despir-me...

- Mas faz tanto calor... P�e-te a gosto...

- Estou bem assim. N�o quero!

- Que tolice a tua...! N�o v�s que sou mulher, tolinha?... De que tens medo?... Olha! Vou dar exemplo!

E, num relance, desfez-se da roupa, e prosseguiu na campanha.

A menina, vendo-se descomposta, cruzou os bra�os sobre o seio, vermelha de pudor.

- Deixa! segredou-lhe a outra, com os olhos envesgados, a pupila tr�mula.

E, apesar dos protestos, das s�plicas e at� das l�grimas da infeliz, arrancou-lhe a �ltima vestimenta, e precipitou-se contra ela, a beijar-lhe todo o corpo, a empolgar-lhe com os l�bios o r�seo bico do peito.

- Oh! Oh! Deixa disso! Deixa disso! reclamava Pombinha estorcendo-se em c�cegas, e deixando ver preciosidades de nudez fresca e virginal, que enlouqueciam a prostituta.

- Que mal faz?... Estamos brincando...

- N�o! N�o! balbuciou a vitima, repelindo-a.

- Sim! Sim! insistiu L�onie, fechando-a entre os bra�os, como entre duas colunas; e pondo em contacto com o dela todo o seu corpo nu.

Pombinha arfava, relutando; mas o atrito daquelas duas grossas pomas irrequietas sobre seu mesquinho peito de donzela imp�bere e o rogar vertiginoso daqueles cabelos �speros e crespos nas esta��es mais sensitivas da sua feminilidade, acabaram por foguear-lhe a p�lvora do sangue, desertando-lhe a raz�o ao rebate dos sentidos.

Agora, espolinhava-se toda, cerrando os dentes, fremindo-lhe a carne em crispa��es de espasmo; ao passo que a outra, por cima, doida de lux�ria, irracional, feroz, revoluteava, em corcovos de �gua, bufando e relinchando.

E metia-lhe a l�ngua tesa pela boca e pelas orelhas, e esmagava-lhe os olhos debaixo dos seus beijos lubrificados de espuma, e mordia-lhe o l�bulo dos ombros, e agarrava-lhe convulsivamente o cabelo, como se quisesse arranc�-lo aos punhados. At� que, com um assomo mais forte, devorou-a num abra�o de todo o corpo, ganindo ligeiros gritos, secos, curtos, muito agudos, e afinal desabou para o lado, ex�nime, inerte, os membros atirados num abandono de b�bedo, soltando de instante a instante um solu�o estrangulado.

A menina voltara a si e torcera-se logo em sentido contr�rio � advers�ria, cingindo-se rente aos travesseiros e abafando o seu pranto, envergonhada e corrida.

A impudica, mal orientada ainda e sem conseguir abrir os olhos, procurou anim�-la, ameigando-lhe a nuca e as esp�duas. Mas Pombinha parecia inconsol�vel, e a outra teve de erguer-se a meio e pux�-la como uma crian�a para o seu colo, onde ela foi ocultando o rosto, a solu�ar baixinho.

- N�o chores assim, meu amor!...

Pombinha continuou a solu�ar.

- Vamos! N�o quero ver-te deste modo!... Est�s zangada comigo?...

- N�o volto mais aqui! nunca mais! exclamou por fim a donzela, desgalgando o leito para vestir-se.

- Vem c�! N�o sejas ruim! Ficarei muito triste se estiveres mal com a tua negrinha!... Anda! N�o me feches a cara!...

- Deixe-me!

- Vem c�, Pombinha!

- N�o vou! J� disse!

E vestia-se com movimentos de raiva. L�onie saltara para junto dela e p�s-se a beijar-lhe, � for�a. os ouvidos e o pesco�o, fazendo se muito humilde, adulando-a, comprometendo-se a ser sua escrava, e obedecer-lhe como um cachorrinho, contanto que aquela tirana n�o se fosse assim zangada.

- Fa�o tudo! tudo! mas n�o fiques mel comigo! Ah! se soubesse como eu te adoro!...

- N�o sei! Largue-me!...

- Espera!

- Que amola��o! Oh!

- Deixa de tolice!... Escuta, por amor de Deus!

Pombinha acabava de encasar o �ltimo bot�o do corpinho, e repuxava o pesco�o e sacudia os bra�os, ajustando bem a sua roupa ao corpo. Mas L�onie ca�ra-lhe aos p�s, enleando-a pelas pernas e beijando-lhe as saias.

- Olha!... Ouve!... - Deixa-me sair!

- N�o! n�o h�s de ir zangada, ou fa�o aqui um esc�ndalo dos diabos! - E que mam�e j� acordou com certeza!...

- Que acordasse!

Agora a meretriz defendia a porta da alcova.

- Oh! meu Deus! Deixe-me sair!

- N�o deixo, sem fazermos as pazes...

- Que aborrecimento!

- D�-me um beijo!

- N�o dou!

- Pois ent�o n�o sais!

- Eu grito!

- Pois grita! Que me importa!

- Arrede-se da�, por favor!...

- Faz as pazes...

- N�o estou zangada, creia! Estou � indisposta... N�o me sinto boa!

- Mas eu fa�o quest�o do beijo!

- Pois bem! Est� ai!

E beijou-a.

- N�o quero assim! Foi dado de m� vontade!...

Pombinha deu-lhe outro.

- Ah! Agora bem! Espera um nada! Deixa arranjar-me! � um instante!

Em tr�s tempos, lavou-se ligeiramente no bid�, endireitou o penteado defronte do espelho, num movimento r�pido de dedos, e empoou-se, perfumou-se, e enfiou camisa, an�gua e penteador, tudo com uma expedi��o de quem est� habituada a vestir-se muitas vezes por dia. E, pronta, correu uma vista de olhos pela menina, desenrugou-lhe a saia, consertou-lhe melhor os cabelos e, readquirindo o seu ar tranq�ilo de mulher ajuizada, tomou-a pela cintura e levou-a vagarosamente at� � sala de jantar, para tomarem vermute com gasosa.

O jantar foi �s seis e meia. Correu frio, n�o tanto por parte de Pombinha, que ali�s se mostrava bem incomodada, como porque Dona Isabel, dormindo at� o momento de a chamarem para mesa, sentia-se aziada com o foie-gras. A dona da casa, todavia, n�o se forrou a desvelos e fez por alegr�-las rindo e contando anedotas burlescas. Ao caf� apareceu Juju, que a criada levara a passear desde logo depois do almo�o, e uma afeta��o de agrados levantou-se em torno da pequerrucha. L�onie p�s-se a conversar com ela, falando como crian�a, dizendo-lhe que mostrasse a Dona Isabel �o seu papatinho novo!�

Mais tarde, no terra�o, enquanto fumava um cigarro, tomou a m�o de Pombinha e meteu-lhe no dedo um anel com um diamante cercado de p�rolas. A menina recusou o mimo, formalmente. Foi preciso a interven��o da velha para que ela consentisse em aceit�-lo.

�s oito horas retiraram-se as visitas, seguindo direitinho para a estalagem. Durante toda a viagem Pombinha parecia preocupada e triste.

- Que tens tu?... perguntou-lhe a m�e duas vezes.

E de ambas a filha respondeu:

- Nada! Aborrecimento...

No pouco que dormiu essa noite, que foi a do baralho com a pol�cia, teve sonhos agitados e passou mal todo o dia seguinte, com molezas de febre e dores no �tero. N�o arredou p� de casa, nem para ver os destro�os do conflito. A noticia do defloramento e da fuga de Florinda, como a da loucura da velha Marciana, produziu-lhe grande abalo nos nervos.

Na manh� imediata, a despeito de fazer-se forte, torceu o nariz ao pobre almo�o que Dona Isabel lhe apresentou carinhosa. Persistiam-lhe as dores uterinas, n�o vivas, mas constantes. N�o teve animo de pegar na costura, e um livro que ela tentou ler, foi por v�rias vezes repelido.

As onze para o meio-dia era tal o seu constrangimento e era tal o seu desassossego entre as apertadas paredes do n�mero 15, que, malgrado os protestos da velha, saiu a dar uma volta por detr�s do corti�o, � sombra dos bambus e das mangueiras.

Uma irresist�vel necessidade de estar s�, completamente s�, uma afli��o de conversar consigo mesma, a apartava no seu estreito quarto sufocante, t�o tristonho e t�o pouco amigo. Pungia-lhe na brancura da alma virgem um arrependimento incisivo e negro das torpezas da antev�spera; mas, lubrificada por essa recorda��o, toda a sua carne ria e rejubilava-se, pressentindo delicias que lhe pareciam reservadas para mais tarde, junto de um homem amado, dentro dela balbuciavam desejos, at� ai mudos e adormecidos; e mist�rios desvendavam-se no segredo do seu corpo, enchendo-a de surpresa e mergulhando-a em fundas concentra��es de �xtase. Um inef�vel quebranto afrouxava-lhe a energia e distendia-lhe os m�sculos com uma embriaguez de flores trai�oeiras.

N�o p�de resistir: assentou-se debaixo das �rvores, um cotovelo em terra, a cabe�a reclinada contra a palma da m�o.

Na doce tranq�ilidade daquela sombra morna, ouvia-se retinir distante a picareta dos homens da pedreira e o martelo dos ferreiros na forja. E o canto dos trabalhadores ora mais claro, ora mais duvidoso, acompanhando o marulhar dos ventos, ondeava no espa�o, melanc�lico e sentido, como um coro religioso de penitentes.

O calor tirava do capim um cheiro sensual.

A mo�a fechou as p�lpebras, vencida pelo seu delicioso entorpecimento, e estendeu-se de todo no ch�o, de barriga para o ar, bra�os e pernas abertas.

Adormeceu.

Come�ou logo a sonhar que em redor ia tudo se fazendo de um cor-de-rosa, a princ�pio muito leve e transparente, depois mais carregado, e mais, e mais, at� formar-se em torno dela uma floresta vermelha, cor de sangue, onde largos tinhor�es rubros se agitavam lentamente.

E viu-se nua, toda nua, exposta ao c�u, sob a t�pida luz de um sol embriagador, que lhe batia de chapa sobre os seios.

Mas, pouco a pouco, seus olhos, posto que bem abertos, nada mais enxergavam do que uma grande claridade palpitante, onde o sol, feito de uma s� mancha reluzente, oscilava como um p�ndulo fant�stico.

Entretanto, notava que, em volta da sua nudez alourada pela luz, iam-se formando ondulantes camadas sang��neas, que se agitavam, desprendendo aromas de flor. E, rodando o olhar, percebeu, cheia de encantos, que se achava deitada entre p�talas gigantescas, no rega�o de uma rosa intermin�vel, em que seu corpo se atufava como em ninho de veludo carmesim, bordado de ouro, fofo, macio, trescalante e morno.

E suspirando, espregui�ou-se toda num enleio de vol�pia asc�tica.

L� do alto o sol a fitava obstinadamente, enamorado das suas mimosas formas de menina.

Ela sorriu para ele, requebrando os olhos, e ent�o o fogoso astro tremeu e agitou-se, e, desdobrando-se, abriu-se de par em par em duas asas e principiou a fremir, atra�do e perplexo. Mas de repente, nem que se de improviso lhe inflamassem os desejos, precipitou-se l� de cima agitando as asas, e veio, enorme borboleta de fogo, adejar luxuriosamente em torno da imensa rosa, em cujo rega�o a virgem permanecia com os peitos franqueados.

E a donzela, sempre que a borboleta se aproximava da rosa, sentia-se penetrar de um calor estranho, que lhe acendia, gota a gota, todo o seu sangue de mo�a.

E a borboleta, sem parar nunca, doidejava em todas as dire��es ora fugindo r�pida, ora se chegando lentamente, medrosa de tocar com as suas antenas de brasa a pele delicada e pura da menina.

Esta, delirante de desejos, ardia por ser alcan�ada e empinava o colo. Mas a borboleta fugia.

Uma sofreguid�o l�brica, desensofrida, apoderou-se da mo�a; queria a todo custo que a borboleta pousasse nela, ao menos um instante, um s� instante, e a fechasse num r�pido abra�o dentro das suas asas ardentes. Mas a borboleta, sempre doida, n�o conseguia deter-se; mal se adiantava, fugia logo, irrequieta, desvairada de vol�pia.

- Vem! Vem! suplicava a donzela, apresentando o corpo. Pousa um instante em mim! Queima-me a carne no calor das tuas asas!

E a rosa, que tinha ao colo, � que parecia falar e n�o ela. De cada vez que a borboleta se avizinhava com as suas nega�as, a flor arrega�ava-se toda, dilatando as p�talas, abrindo o seu pistilo vermelho e �vido daquele contato com a luz.

- N�o fujas! N�o fujas! Pousa um instante!

A borboleta n�o pousou; mas, num del�rio, convulsa de amor, sacudiu as asas com mais �mpeto e uma nuvem de poeira dourada desprendeu-se sobre a rosa, fazendo a donzela soltar gemidos e suspiros, tonta de gosto sob aquele efl�vio luminoso e fecundante.

Nisto, Pombinha soltou um ai formid�vel e despertou sobressaltada, levando logo ambas as m�os ao meio do corpo. E feliz, e cheia de susto ao mesmo tempo, a rir e a chorar, sentiu o grito da puberdade sair-lhe afinal das entranhas, em uma onda vermelha e quente.

A natureza sorriu-se comovida. Um sino, ao longe, batia alegre as doze badaladas do meio-dia. O sol, vitorioso, estava a pino e, por entre a copagem negra da mangueira, um dos seus raios descia em fio de ouro sobre o ventre da rapariga, aben�oando a nova mulher que se formava para o mundo.

XII

Pombinha ergueu-se de um pulo e abriu de carreira para casa.

No lugar em que estivera deitada o capim verde ficou matizado de pontos vermelhos. A m�e lavava � tina, ela chamou-a com inst�ncia, enfiando cheia de alvoro�o pelo n�mero 15. E ai, sem uma palavra, ergueu as saias do vestido e exp�s a Dona Isabel as suas fraldas ensang�entadas.

- Veio?! perguntou a velha com um grito arrancado do fundo d�alma.

A rapariga meneou a cabe�a afirmativamente, sorrindo feliz e enrubescida.

As l�grimas saltaram dos olhos da lavadeira.

- Bendito e louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo! exclamou ela, caindo de joelhos defronte da menina e erguendo para Deus o rosto e as m�os tr�mulas.

Depois abra�ou-se �s pernas da filha e, no arrebatamento de sua como��o, beijou-lhe repetidas vezes a barriga e parecia querer beijar tamb�m aquele sangue aben�oado, que lhes abria os horizontes da vida, que lhes garantia o futuro; aquele sangue bom, que descia do c�u, como a chuva benfazeja sobre uma pobre terra esterilizada pela seca.

N�o se p�de conter: enquanto Pombinha mudava de roupa, saiu ela ao p�tio, apregoando aos quatro ventos a linda noticia. E, se n�o fora a formal oposi��o da menina, teria passeado em triunfo a camisa ensang�entada, para que todos a vissem bem e para que todos a adorassem, entre hinos de amor, que nem a uma ver�nica sagrada de um Cristo.

- Minha filha � mulher! Minha filha � mulher!

O fato abalou o cora��o do corti�o, as duas receberam parab�ns e felicita��es. Dona Isabel acendeu velas de cera � frente do seu orat�rio, e nesse dia n�o pegou mais no trabalho, ficou estonteada, sem saber o que fazia, a entrar e a sair de casa, radiante de ventura. De cada vez que passava junto da filha dava-lhe um beijo na cabe�a e em segredo recomendava-lhe todo o cuidado. �Que n�o apanhasse umidade! que n�o bebesse coisas frias! que se agasalhasse o melhor poss�vel: e, no caso de sentir o corpo mole, que se metesse logo na cama! Qualquer imprud�ncia poderia ser fatal!...� O seu empenho era p�r o Jo�o da Costa, no mesmo instante, ao corrente da grande novidade e pedir-lhe que marcasse logo o dia do casamento; a menina entendia que n�o, que era feio, mas a m�e arranjou um portador e mandou chamar o rapaz com urg�ncia. Ele apareceu � tarde. A velha convidara gente para jantar; matou duas galinhas, comprou garrafas de vinho, e, � noite, serviu, �s nove horas, um ch� com biscoitos. Nenen e a das Dores apresentaram-se em trajos de festa; fez-se muita cerim�nia; conversou-se em voz baixa, formando todos em volta de Pombinha uma solicita cadeia de agrados, uma respeitosa preocupa��o de bons desejos, a que ela respondia sorrindo comovida, como que exalando da frescura da sua virgindade um vitorioso aroma de flor que desabrocha.

E a partir desse dia Dona Isabel mudou completamente. As suas rugas alegraram-se; ouviam-na cantarolar pela manh�, enquanto varria a casa e espanava os m�veis.

N�o obstante, depois do tremendo conflito que acabou em navalhada, uma tristeza ia minando uma grande parte da estalagem. J� se n�o faziam as quentes noitadas de viol�o e dan�a ao relento. A Rita andava aborrecida e concentrada, desde que Jer�nimo partiu para a Ordem; Firmo fora intimado pelo vendeiro a que lhe n�o pusesse, nunca mais, os p�s em casa, sob pena de ser entregue � pol�cia; Piedade, que vivia a dar ais, carpindo a aus�ncia do. marido, ainda ficou mais consumida com a primeira visita que lhe fez ao hospital; encontrou-o frio e sem uma palavra de ternura para ela, deixando at� perceber a sua impaci�ncia para ouvir falar da outra, daquela maldita mulata dos diabos, que, no fim de contas, era a �nica culpada de tudo aquilo e havia de ser a sua perdi��o e mais do seu homem! Quando voltou de l� atirou-se � cama, a solu�ar sem al�vio, e nessa noite n�o p�de pregar olho, sen�o j� pela madrugada. Um negro desgosto comia-a por dentro, como tub�rculos de t�sica, e tirava-lhe a vontade para tudo que n�o fosse chorar.

Outro que tamb�m, coitado! arrastava a vida muito triste, era o Bruno. A mulher, que a principio n�o lhe fizera grande falta, agora o torturava com a sua distancia; um m�s depois da separa��o, o desgra�ado j� n�o podia esconder o seu sofrimento e ralava-se de saudades. A Bruxa, a pedido dele, tirou a sorte nas cartas e disse-lhe misteriosamente que Leoc�dia ainda o amava.

S� Dona Isabel e a filha andavam deveras satisfeitas. Essas sim! nunca tinham tido uma �poca t�o boa e t�o esperan�osa. Pombinha abandonara o curso de dan�a; o noivo ia agora visit�-la, invariavelmente, todas as noites; chegava sempre �s sete horas e demorava-se at� �s dez; davam-lhe caf� numa x�cara especial, de porcelana; �s vezes jogavam a bisca, e ele mandava buscar, de sua algibeira, uma garrafa de cerveja alem�, e ficavam a conversar os tr�s, cada qual defronte do seu copo, a respeito dos projetos de felicidade comum; outras vezes o Costa, sempre muito respeitador, muito bom rapaz, acendia o seu charuto da Bahia e deixava-se cair numa pasmaceira, a olhar para a mo�a, todo embebido nela. Pombinha punha alegrias naqueles ser�es com as suas garrulices de pomba que prepara o ninho. Depois do seu id�lio com o sol fazia-se muito amiga da exist�ncia, sorvendo a vida em haustos largos, como quem acaba de sair de uma pris�o e saboreia o ar livre. Volvia-se carnuda e cheia, sazonava que nem uma fruta que nos

provoca o apetite de morder. Dona Isabel, ao lado deles, toscanejava do meio para o fim da visita, tra�ando cruzes na boca e afugentando os bocejos com voluptuosas pitadas da sua insigne tabaqueira.

Fixado o dia do casamento, o assunto inalter�vel da conversa era o enxoval da noiva e a casinha que o Costa preparava para a lua-de-mel. Iriam todos tr�s morar juntos; teriam cozinheiro e uma criada que lavasse e engomasse. O rapaz trouxera pe�as de linho e de algod�o, e ali, � luz amarela do velho candeeiro de querosene, enquanto a m�e talhava camisas e len��is, a filha cosia valentemente numa m�quina que lhe oferecera o noivo.

Uma vez, eram duas da tarde, ela pregava rendas numa fronha de almofada, quando o Bruno, cheio de hesita��es, a co�ar os cabelos da nuca, p�lido e mal asseado, disse-lhe, encostando-se � ombreira da porta:

- Ora, Nh� Pombinha... tinha-lhe um servicinho a pedir... mas vosmecezinha anda agora t�o tomada com o seu enxoval e n�o h� de querer dar-se a ma�os...

- Que queres tu, Bruno?

- N�� nada, � que precisava que vosmecezinha me fizesse uma carta p�raquele diabo... mas j� se v� que n�o tem cabimento... Fica pr�ao depois!

- Uma carta para tua mulher, n�o �?

- Coitada! � mais doida do que ruim! Pois se a gente at� dos brutos tem pena!...

- Pois est�s servido. Queres para j�?

- N�o vale estorvar! Continue seu servicinho! Eu volto pr�outra vez!...

- N�o! anda c�, entra! O que se tem de fazer, faz-se logo!

- Deus lhe pague! Vosmecezinha � mesmo um anjo! N�o sei a quem se chegue a gente ao depois que j� lhe n�o tivermos c�!...

E continuou a louvar a bondade da rapariga, enquanto esta, toda servi�al, preparava numa mesinha redonda os seus apetrechos de escrita.

- Vamos l�, Bruno! que queres tu mandar dizer � Leoc�dia?

- Diga-lhe, antes de mais nada, que aquilo que quebrei dela, que dou outro! Que ela fez mal em quebrar tamb�m o que era meu, mas que fecho os olhos! �guas passadas n�o movem moinho! Que sei que ela agora est� desempregada e aos paus; que est� a dever para mais de m�s na estalagem; mas que n�o precisa dar cabe�adas: que me mande c� o senhorio, que me entendo com ele. Que acho bom que ela deixe a casa da crioula onde come, porque a mulher j� se queixou e j� disse, a quem quis ouvir, que aquilo l� n�o era ponto de vadios e mulheres de m� vida! Que ela, se tivesse um pouco de tino, nem precisava estar �s migalhas dos outros, que eu na forja fazia para a trazer de barriga cheia e mais aos filhos que Deus mandasse... - Principiava a tomar calor. - Que a culpada de tudo isto � s� ela e mais ningu�m! tivesse um bocado de ju�zo e n�o precisava envergonhar a cara por ai...

- Isso j� est� dito, Bruno!

- Pois arrame-lhe outra vez a ver se ela toma brio!

- E que mais?

- Que lhe n�o quero mal, nem lhe rogo pragas, mas que � bem feito que ela amargue um pouco do p�o do diabo, pra ficar sabendo que uma mulher direita n�o deve olhar se n�o pra seu marido; e que, se ela n�o fosse t�o maluca...

- J� a� vai voc� repetir inda uma vez a mesma cantiga!...

- Mas diga-lhe sempre, tenha paci�ncia, Nh� Pombinha!... Que ainda estaria aqui, comigo, como dantes, sem ag�entar repel�es de estranhos!...

- Adiante, Bruno!

- Diga-lhe...

E interrompeu-se.

Ora, que mais ele tinha a dizer?...

Co�ou a cabe�a.

- Veja, Bruno, voc� � quem sabe o que precisa escrever a sua mulher...

- Diga-lhe...

N�o se animava.

- Que...

- Diga-lhe... N�o! n�o lhe diga mais nada!...

- Posso ent�o fechar a carta?...

- Est� bom... resmungou o ferreiro, decidindo-se. V� l�! Diga-lhe que...

- Que...

Houve um sil�ncio, no qual o desgra�ado parecia arrancar de dentro uma frase que, no entanto, era a �nica id�ia que o levava a dirigir-se � mulher. Afinal, depois de co�ar mais vivamente a cabe�a, gaguejou com a voz estrangulada de solu�os:

- Diga-lhe que... se ela quiser tornar pra minha companhia... que pode vir... Eu esque�o tudo!

Pombinha, impressionada pela transforma��o da voz dele, levantou o rosto e viu que as l�grimas lhe desfilavam duas a duas, tr�s a tr�s, pela cara, indo afogar-se-lhe na moita cerdosa das barbas. E, coisa estranha, ela, que escrevera tantas cartas naquelas mesmas condi��es; que tantas vezes presenciara o choro rude de outros muitos trabalhadores do corti�o, sobressaltava-se agora com os desalentados solu�os do ferreiro.

Porque, s� depois que o sol lhe aben�oou o ventre; depois que nas suas entranhas ela sentiu o primeiro grito de sangue de mulher, teve olhos para essas violentas mis�rias dolorosas, a que os poetas davam o bonito nome de amor. A sua intelectualidade, tal como seu corpo, desabrochara inesperadamente, atingindo de s�bito, em pleno desenvolvimento, uma lucidez que a deliciava e surpreendia. N�o a comovera tanto a revolu��o f�sica Como que naquele instante o mundo inteiro se despia � sua vista, de improviso esclarecida, patenteando-lhe todos os segredos das suas paix�es. Agora, encarando as l�grimas do Bruno, ela compreendeu e avaliou a fraqueza dos homens, a fragilidade desses animais fortes, de m�sculos valentes, de patas esmagadoras, mas que se deixavam encabrestar e conduzir humildes pela soberana e delicada m�o da f�mea.

Aquela pobre flor de corti�o, escapando � estupidez do meio em que desabotoou, tinha de ser fatalmente vitima da pr�pria intelig�ncia. � mingua de educa��o, seu esp�rito trabalhou � revelia, e atrai�oou-a, obrigando-a a tirar da subst�ncia caprichosa da sua fantasia de mo�a ignorante e viva a explica��o de tudo que lhe n�o ensinaram a ver e sentir.

Bruno retirou-se com a carta. Pombinha pousou os cotovelos na mesa e tulipou as m�os contra o rosto, a cismar nos homens.

Que estranho poder era esse, que a mulher exercia sobre eles, a tal ponto, que os infelizes, carregados de desonra e de ludibrio, ainda vinham covardes e suplicantes mendigar-lhe o perd�o pelo mal que ela lhes fizera?...

E surgiu-lhe ent�o uma id�ia bem clara da sua pr�pria for�a e do seu pr�prio valor.

Sorriu.

E no seu sorriso j� havia garras.

Uma aluvi�o de cenas, que ela jamais tentara explicar e que at� ai jaziam esquecidas nos meandros do seu passado, apresentavam-se agora n�tidas e transparentes. Compreendeu como era que certos velhos respeit�veis, cujas fotografias L�onie lhe mostrara no dia que passaram juntas, deixavam-se vilmente cavalgar pela loureira, cativos e submissos, pagando a escravid�o com a honra, os bens, e at� com a pr�pria vida, se a prostituta, depois de os ter esgotado, fechava-lhes o corpo. E continuou a sorrir, desvanecida na sua superioridade sobre esse outro sexo, vaidoso e fanfarr�o, que se julgava senhor e que no entanto fora posto no mundo simplesmente para servir ao feminino; escravo rid�culo que, para gozar um pouco, precisava tirar da sua mesma ilus�o a subst�ncia do seu gozo; ao passo que a mulher, a senhora, a dona dele, ia tranq�ilamente desfrutando o seu imp�rio, endeusada e querida, prodigalizando mart�rios que os miser�veis aceitavam contritos, a beijar os p�s que os deprimiam e as implac�veis m�os que os estrangulavam.

- Ah! homens! homens!... sussurrou ela de envolta com um suspiro.

E pegou de novo na costura, deixando que o pensamento vadiasse � solta, enquanto os dedos iam maquinalmente pregando as rendas naquela almofada, em que a sua cabe�a teria de repousar para receber o primeiro beijo genital.

Num s� lance de vista, como quem apanha uma esfera entre as pontas de um compasso, mediu com as antenas da sua perspic�cia mulheril toda aquela esterqueira, onde ela, depois de se arrastar por muito tempo como larva, um belo dia acordou borboleta � luz do sol. E sentiu diante dos olhos aquela massa informe de machos e f�meas, a comichar, a fremir concupiscente, sufocando-se uns aos outros. E viu o Firmo e o Jer�nimo atassalharem-se, como dois c�es que disputam uma cadela da rua; e viu o Miranda, li defronte, subalterno ao lado da esposa infiel, que se divertia a faz�-lo dan�ar a seus p�s seguro pelos chifres; e viu o Domingos, que fora da venda, furtando horas ao sono, depois de um trabalho de barro, e perdendo o seu emprego e as economias ajuntadas com sacrif�cio, para ter um instante de lux�ria entre as pernas de uma desgra�adinha irrespons�vel e tola; e tornou a ver o Bruno a solu�ar pela mulher; e outros ferreiros e hortel�es, e cavouqueiros, e trabalhadores de toda a esp�cie, um ex�rcito de bestas sensuais, cujos segredos ela possu�a, cujas �ntimas correspond�ncias escrevera dia a dia, cujos cora��es conhecia como as palmas das m�os,

porque a sua escrivaninha era um pequeno confession�rio, onde toda a salsugem e todas as fezes daquela praia de despejo foram arremessadas espumantes de dor e aljofradas de l�grimas.

E na sua alma enfermi�a e aleijada, no seu esp�rito rebelde de flor mimosa e peregrina criada num monturo, violeta infeliz, que um estrume forte demais para ela atrofiara, a mo�a pressentiu bem claro que nunca daria de si ao marido que ia ter uma companheira amiga, leal e dedicada; pressentiu que nunca o respeitaria sinceramente como a um ser superior por quem damos a vida; que nunca lhe votaria entusiasmo, e por conseguinte nunca lhe teria amor; desse de que ela se sentia capaz de amar algu�m, se na terra houvera homens dignos disso. Ah! n�o o amaria decerto, porque o Costa era como os outros, passivo e resignado, aceitando a exist�ncia que lhe impunham as circunst�ncias, sem ideais pr�prios, sem temeridades de revolta, sem atrevimentos de ambi��o, sem v�cios tr�gicos, sem capacidade para grandes crimes; era mais um animal que viera ao mundo para propagar a esp�cie; um pobre-diabo enfim que j� a adorava cegamente e que mais tarde, com ou sem raz�o, derramaria aquelas mesmas l�grimas, rid�culas e vergonhosas, que ela vira decorrendo em quentes camarinhas pelas �speras e maltratadas barbas do marido de Leoc�dia.

E n�o obstante, at� ent�o, aquele matrim�nio era o seu sonho dourado. Pois agora, nas v�speras de obt�-lo, sentia repugn�ncia em dar-se ao noivo, e, se n�o fora a m�e, seria muito capaz de dissolver o ajuste.

Mas, da� a uma semana, a estalagem era toda em rebuli�o desde logo pela manh�. S� se falava em casamento; havia em cada olhar um sang��neo reflexo de noites nupciais. Desfolharam-se rosas � porta da Pombinha. �s onze horas parou um carro � entrada do corti�o com uma senhora gorda, vestida de seda cor de p�rola. Era a madrinha que vinha buscar a noiva para a igreja de S�o Jo�o Batista. A cerim�nia estava marcada para o meio-dia. Toda esta formalidade embatucava os circunstantes, que se alinhavam im�veis defronte do n�mero 15, com as m�os cruzadas atr�s, o rosto paralisado por uma como��o respeitosa; alguns sorriam enternecidos; quase todos tinham os olhos ressumbrados d��gua.

Pombinha surgiu � porta de casa, j� pronta para desferir o grande v�o; de v�u e grinalda, toda de branco, vaporosa, linda. Parecia comovida; despedia-se dos companheiros atirando-lhes beijos com o seu ramalhete de flores artificiais. Dona Isabel chorava como crian�a, abra�ando as amigas, uma por uma.

- Deus lhe ponha virtude! exclamou a Machona. E que lhe d� um bom parto, quando vier a primeira barriga.

A noiva sorria, de olhos baixas. Uma f�mbria de desd�m toldava-lhe a rosada candura de seus l�bios. Encaminhou-se para o port�o, cercada pela b�n��o de toda aquela gente, cujas l�grimas rebentaram afinal, feliz cada um por v�-la feliz e em caminho da posi��o que lhe competia na sociedade.

- N�o! aquela n�o nascera para isto!... sentenciou o Alexandre, retorcendo o reluzente bigode. Seria l�stima se a deixassem ficar aqui!

O velho Lib�rio, cascalhando uma risada decr�pita, queixou-se de que o magan�o do Costa lhe passara a perna roubando-lhe a namorada.

Ingrata! Ele que estava disposto a fazer uma asneira!

Nenen deu uma corrida at� � noiva, na ocasi�o em que esta chegava � carruagem e, estalando-lhe um beijo na boca, pediu-lhe com empenho que se n�o esquecesse de mandar-lhe um bot�o da sua grinalda de flores de laranjeira.

- Diz que � muito bom para quem deseja casar!... e eu tenho tanto medo de ficar solteira!... � todo o meu susto!

XIII

� propor��o que alguns locat�rios abandonavam a estalagem, muitos pretendentes surgiam disputando os c�modos desalugados. Delporto e Pompeo foram varridos pela febre amarela e tr�s outros italianos estiveram em risco de vida. O n�mero dos h�spedes crescia; os casulos subdividiam-se em cub�culos do tamanho de sepulturas; e as mulheres iam despejando crian�as com uma regularidade de gado procriador. Uma fam�lia; composta de m�e vi�va e cinco filhas solteiras, das quais destas a mais velha tinha trinta anos e a mais mo�a quinze, veio ocupar a casa que Dona Isabel esvaziou poucos dias depois do casamento de Pombinha.

Agora, na mesma rua, germinava outro corti�o ali perto, o �Cabe�a-de-Gato�. Figurava como seu dono um portugu�s que tamb�m tinha venda, mas o legitimo propriet�rio era um abastado conselheiro, homem de gravata lavada, a quem n�o convinha, por decoro social, aparecer em semelhante g�nero de especula��es. E Jo�o Rom�o, estalando de raiva, viu que aquela nova rep�blica da mis�ria prometia ir adiante e amea�ava fazer-lhe � sua, perigosa concorr�ncia. P�s-se logo em campo, disposto � luta, e come�ou a perseguir o rival por todos os modos, peitando fiscais e guardas municipais, para que o n�o deixassem respirar um instante com multas e exig�ncias vexat�rias; enquanto pela sorrelfa plantava no esp�rito dos seus inquilinos um verdadeiro �dio de partido, que os incompatibilizava com a gente do �Cabe�a-de-Gato�. Aquele que n�o estivesse disposto a isso ia direitinho para a rua, �que ali se n�o admitiam meias medidas a tal respeito! Ali: ou bem peixe ou bem carne! Nada de embrulho!� � in�til dizer que a parte contr�ria lan�ou m�o igualmente de todos os meios para guerrear o inimigo, n�o tardando que entre os moradores da duas estalagens rebentasse uma tremenda rivalidade, dia a dia agravada por pequenas brigas e rezingas, em que as lavadeiras se destacavam sempre com quest�es de freguesia de roupa. No fim de pouco tempo os dois partidos estavam j� perfeitamente determinados; os habitantes do �Cabe�a-de-Gato� tomaram por alcunha o titulo do seu corti�o, e os de �S�o Rom�o�, tirando o nome do peixe que a Bertoleza mais vendia � porta da taverna, foram batizados por �Carapicus�. Quem se desse com um carapicu n�o podia entreter a mais ligeira amizade com um cabe�a-de-gato; mudar-se algu�m de uma estalagem para outra era renegar id�ias e princ�pios e ficava apontado a dedo; denunciar a um contr�rio o que se passava, fosse o que fosse, dentro do circulo oposto, era cometer trai��o tamanha, que os companheiros a puniam a pau. Um vendedor de peixe, que caiu na asneira de falar a um cabe�a-de-gato a respeito de uma briga entre a Machona e sua filha, a das Dores, foi encontrado quase morto perto do cemit�rio de S�o Jo�o Batista. Alexandre, esse ent�o n�o cochilava com os advers�rios: nas suas partes policiais figurava sempre o nome de um deles pelo menos, mas entre os pr�prios pol�cias havia adeptos de um e de outro partido; o urbano que entrava na venda do Jo�o Rom�o tinha escr�pulo de tomar qualquer coisa ao balc�o da outra venda. Em meio do p�tio do �Cabe�a-de-Gato� arvorara-se uma bandeira amarela; os carapicus responderam logo levantando um pavilh�o vermelho. E as duas cores olhavam-se no ar como um desafio de guerra.

A batalha era inevit�vel. Quest�o de tempo.

Firmo, assim que se instaurara a nova estalagem, abandonou o quarto na oficina e meteu-se l� de s�cia com o Porfiro, apesar da oposi��o de Rita, que mais depressa o deixaria a ele do que aos seus velhos camaradas de corti�o. Da� nasceu certa ponta de disc�rdia entre os dois amantes; as suas entrevistas tornavam-se agora mais raras e mais dif�ceis. A baiana, por coisa alguma desta vida, poria os p�s no �Cabe�a-de-Gato� e o Firmo achava-se, como nunca, incompatibilizado com os carapicus. Para estarem juntos tinham encontros misteriosos num caloji de uma velha miser�vel da Rua de S�o Jo�o Batista, que lhe cedia a cama mediante esmolas. O capoeira fazia quest�o de ficar no �Cabe�a-de-Gato�, porque ai se sentia resguardado contra qualquer persegui��o que o seu delito motivasse; de resto, Jer�nimo n�o estava morto e, uma vez bem curado, podia vir sobre ele com gana. No �Cabe�a-de-Gato�, o Firmo conquistara r�pidas simpatias e constitu�ra-se chefe de malta. Era querido e venerado; os companheiros tinham entusiasmo pela sua destreza e pela sua coragem; sabiam-lhe de cor a legenda rica de fa�anhas e vit�rias. O Porfiro secundava-o sem lhe disputar a primazia, e estes dois, s� por si, impunham respeito aos carapicus, entre os quais, n�o obstante, havia muito boa gente para o que desse e viesse.

Mas ao cabo de tr�s meses, Jo�o Rom�o, notando que os seus interesses nada sofriam com a exist�ncia da nova estalagem e, at� pelo contr�rio, lucravam com o progressivo movimento de povo que se ia fazendo no bairro, retornou � sua primitiva preocupa��o com o Miranda, �nica rivalidade que verdadeiramente o estimulava.

Desde que o vizinho surgiu com o baronato, o vendeiro transformava-se por dentro e por fora a causar pasmo. Mandou fazer boas roupas e aos domingos refestelava-se de casaco branco e de meias, assentado defronte da venda, a ler jornais. Depois deu para sair a passeio, vestido de casimira, cal�ado e de gravata. Deixou de tosquiar o cabelo � escovinha; p�s a barba abaixo, conservando apenas o bigode, que ele agora tratava com brilhantina todas as vezes que ia ao barbeiro. J� n�o era o mesmo lambuz�o! E n�o parou a�: fez-se s�cio de um clube de dan�a e, duas noites por semana, ia aprender a dan�ar; come�ou a usar rel�gio e cadeia de ouro; correu uma limpeza no seu quarto de dormir, mandou soalh�-lo, forrou-o e pintou-o; comprou alguns m�veis em segunda m�o; arranjou um chuveiro ao lado da retrete; principiou a comer com guardanapo e a ter toalha e copos sobre a mesa; entrou a tomar vinho, n�o do ordin�rio que vendia aos trabalhadores, mas de um especial que guardava para seu gasto. Nos dias de folga atirava-se para o Passeio P�blico depois do jantar ou ia ao teatro S�o Pedro de Alc�ntara assistir aos espet�culos da tarde; do �Jornal do Com�rcio�, que era o �nico que ele assinava havia j� tr�s anos e tanto, passou a receber mais dois outros e a tomar

fasc�culos de romances franceses traduzidos, que o ambicioso lia de cabo a rabo, com uma paci�ncia de santo, na doce convic��o de que se instru�a.

Admitiu mais tr�s caixeiros; j� n�o se prestava muito a servir pessoalmente � negralhada da vizinhan�a, agora at� mal chegava ao balc�o. E em breve o seu tipo come�ou a ser visto com freq��ncia na Rua Direita, na pra�a do com�rcio e nos bancos, o chap�u alto derreado para a nuca e o guarda-chuva debaixo do bra�o. Principiava a meter-se em altas especula��es, aceitava a��es de companhias de t�tulos ingleses e s� emprestava dinheiro com garantias de boas hipotecas.

O Miranda tratava-o j� de outro modo, tirava-lhe o chap�u, parava risonho para lhe falar quando se encontravam na rua, e �s vezes trocava com ele dois dedos de palestra � porta da venda. Acabou por oferecer-lhe a casa e convid�-lo para o dia de anos da mulher, que era da� a pouco tempo. Jo�o Rom�o agradeceu o obs�quio, desfazendo-se em demonstra��es de reconhecimento, mas n�o foi l�.

Bertoleza � que continuava na cepa torta, sempre a mesma crioula suja, sempre atrapalhada de servi�o, sem domingo nem dia santo; essa, em nada, em nada absolutamente, participava das novas regalias do amigo; pelo contr�rio, � medida que ele galgava posi��o social, a desgra�ada fazia-se mais e mais escrava e rasteira. Jo�o Rom�o subia e ela ficava c� embaixo, abandonada como uma cavalgadura de que j� n�o precisamos para continuar a viagem. Come�ou a cair em tristeza.

O velho Botelho chegava-se tamb�m para o vendeiro, e ainda mais do que o pr�prio Miranda. O parasita n�o saia agora depois do almo�o para a sua prosa na charutaria, nem voltava � tarde para o jantar, sem deter-se um instante � porta do vizinho ou, pelo menos, sem lhe gritar l� de dentro: �Ent�o, seu Jo�o, isso vai ou n�o vai?...� E tinha sempre uma frase amig�vel para lhe atirar c� de fora. Em geral o taverneiro acudia a apertar-lhe a m�o, de cara alegre, e propunha-lhe que bebesse alguma coisa.

Sim, Jo�o Rom�o j� convidava para beber alguma coisa. Mas n�o era � loa que o fazia, que aquele mesmo n�o metia prego sem estopa! Tanto assim que uma vez, em que os dois sa�ram � tardinha para dar um giro at� � praia, Botelho, depois de falar com o costumado entusiasmo do seu belo amigo Bar�o e da virtuos�ssima fam�lia deste, acrescentou com o olhar fito:

- Aquela pequena � que lhe estava a calhar, seu Jo�o!...

- Como? Que pequena?

- Ora morda aqui! Pensa que j� n�o dei pelo namoro?... Magan�o! O vendeiro quis negar, mas o outro atalhou:

- � um bom partido, �! Excelente menina... tem um g�nio de pomba... uma educa��o de princesa: at� o franc�s sabe! Toca piano como voc� tem ouvido... canta o seu bocado... aprendeu desenho... muito boa m�o de agulha!... e...

Abaixou a voz e segredou grosso no ouvido do interlocutor:

- Ali, tudo aquilo � s�lido!... Pr�dios e a��es do banco!...

- Voc� tem certeza disso? J� viu?

- J�! Palavra d�honra!

Calaram-se um instante.

Botelho continuou depois:

- O Miranda � bom homem, coitado! tem l� as suas fuma�as de grandeza, mas n�o o podemos criminar... s�o coisas pegadas da mulher; no entanto acho-o com boas disposi��es a seu respeito... e, se voc� souber lev�-lo, apanha-lhe a filha...

- Ela talvez n�o queira...

- Qual o qu�! Pois uma menina daquelas, criada a obedecer aos pais, sabe l� o que � n�o querer? Tenha voc� uma pessoa, de intimidade com a fam�lia; que de dentro empurre o neg�cio e ver� se consegue ou n�o! Eu, por exemplo!

- Ah! se voc� se metesse nisso, que d�vida! Dizem que o Miranda s� faz o que voc� quer...

- Dizem com raz�o.

- E voc� est� resolvido a... ?

- A proteg�-lo?... Sim, decerto: neste mundo estamos n�s para servir uns aos outros!... apenas, como n�o sou rico...

- Ah! Isso � dos livros! Arranje-me voc� o neg�cio e n�o se arrepender�...

- Conforme, conforme...

- Creio que n�o me sup�e um velhaco!...

- Pelo amor de Deus! Sou incapaz de semelhante sacril�gio!

- Ent�o!...

- Sim, sim... em todo o caso falaremos depois, com mais vagar... N�o � sangria desatada!

E desde ent�o, com efeito, sempre que os dois se pilhavam a s�s discutiam o seu plano de ataque � filha do Miranda. Botelho queria vinte contos de r�is, e com papel passado a prazo de casamento; o outro oferecia dez.

- Bom! ent�o n�o temos nada feito... resumiu o velho. Trate voc� do neg�cio s� por si; mas j� lhe vou prevenindo de que n�o conte comigo absolutamente... Compreende?

- Quer dizer que me far� guerra...

- Valha-me Deus, criatura! n�o fa�o guerra a ningu�m! guerra est� voc� a fazer-me, que n�o me quer deixar comer uma migalha da bela fatia que lhe vou meter no papo!... O Miranda hoje tem para mais de mil contos de r�is! Agora, fique sabendo que a coisa n�o � assim tamb�m t�o f�cil, como lhe parece talvez...

- Paci�ncia!

- O Bar�o h� de sonhar com um genro de certa ordem!... Ai algum deputado... algum homem que fa�a figura na pol�tica aqui da terra!

- N�o! melhor seria um pr�ncipe!...

- E mesmo a pequena tem um doutorzinho de boa fam�lia; que lhe ronda muito a porta... E ela, ao que parece, n�o lhe faz m� cara...

- Ah! nesse caso � deix�-los l� arranjar a vida!

- � melhor, �! Creio at� que com ele ser� mais f�cil qualquer transa��o...

- Ent�o n�o falemos mais nisso! Est� acabado!

- Pois n�o falemos!

Mas no dia seguinte voltaram � quest�o:

- Homem! disse o vendeiro; para decidir, dou-lhe quinze!

- Vinte!

- Vinte, n�o!

- Por menos n�o me serve!

- E eu vinte n�o dou!

- Nem ningu�m o obriga... Adeuzinho!

- At� mais ver.

Quando se encontraram de novo, Jo�o Rom�o riu-se para o outro, sem dizer palavra. O Botelho, em resposta, fez um gesto de quem n�o quer intrometer-se com o que n�o � da sua conta.

- Voc� � o diabo!... faceteou aquele, dando-lhe no ombro uma palmada amig�vel. Ent�o n�o h� meio de chegarmos a um acordo?...

- Vinte!

- E, caso esteja eu pelos vinte, posso contar que...?

- Caso o meu nobre amigo se decida pelos vinte, receber� do Bar�o um chamado para l� ir jantar ao primeiro domingo; aceita o convite, vai, e encontrar� o terreno preparado.

- Pois seja l� como voc� quer! mais vale um gosto do que quatro vint�ns!

O Botelho n�o faltou ao prometido: dias depois do contrato selado e assinado, Jo�o Rom�o recebeu uma carta do vizinho, solicitando-lhe a fineza de ir jantar com ele mais a fam�lia;

Ah! que revolu��o n�o se feriu no esp�rito do vendeiro! passou dias a estudar aquela visita; ensaiou o que tinha que dizer, conversando sozinho defronte do espelho do seu lavat�rio; afinal, no dia marcado, banhou-se em varias �guas, areou os dentes at� faz�-los bem limpos, perfumou-se todo dos p�s � cabe�a, escanhoou-se com esmero, aparou e

bruniu as unhas, vestiu-se de roupa nova em folha, e �s quatro e meia da tarde apresentou-se, risonho e cheio de timidez, no espelhado e pretensioso sal�o de Sua Excel�ncia.

Aos primeiros passos que dera sobre o tapete, onde seus grandes p�s, afeitos por toda vida � independ�ncia do chinelo e do tamanco, se destacavam como um par de tartarugas, sentiu logo o suor dos grandes apuros inundar-lhe o corpo e correr-lhe em bagada pela fronte e pelo pesco�o, nem que se o desgra�ado acabasse de vencer naquele instante uma l�gua de carreira ao sol. As suas m�os vermelhas e redondas gotejavam, e ele n�o sabia o que fazer delas, depois que o Bar�o, muito solicito, lhe tomou o chap�u e o guarda-chuva.

Arrependia-se j� de ter l� ido.

- Fique a gosto, homem! bradou-lhe o dono da casa. Se tem calor venha antes aqui para a janela. N�o fa�a cerim�nia! � Leonor! traz o vermute! Ou o amigo prefere tomar um copinho de cerveja?

Jo�o Rom�o aceitava tudo, com sorrisos de acanhamento, sem animo de arriscar palavra. A cerveja f�-lo suar ainda mais e, quando apareceram na sala Dona Estela e a filha, o pobre-diabo chegava a causar d� de t�o atrapalhado que se via Por duas vezes escorregou, e numa delas foi apoiar-se a uma cadeira que tinha rod�zios; a cadeira afastou-se e ele quase vai ao ch�o.

Zulmira riu-se, mas disfar�ou logo a sua hilaridade pondo-se a conversar com a m�e em voz baixa. Agora, refeita nos seus dezessete anos, n�o parecia t�o an�mica e deslavada; vieram-lhe os seios e engrossara-lhe o quadril. Estava melhor assim. Dona Estela, coitada! � que se precipitava, a passos de granadeiro, para a velhice, a despeito da resist�ncia com que se rendia; tinha j� dois dentes posti�os, pintava o cabelo, e dos cantos da boca duas rugas serpenteavam-lhe pelo queixo abaixo, desfazendo-lhe a primitiva gra�a maliciosa dos l�bios; ainda assim, por�m, conservava o pesco�o branco, liso e grosso, e os seus bra�os n�o desmereciam dos antigos cr�ditos.

� mesa, a visita comeu t�o pouco e t�o pouco bebeu, que os donos da casa a censuraram jovialmente, fingindo aceitar o fato como prova segura de que o jantar n�o prestava; o obsequiado pedia por amor de Deus que n�o acreditassem em tal e jurava sob palavra de honra que se sentia satisfeito e que nunca outra comida lhe soubera t�o bem. Botelho l� estava, ao lado de um velhote fazendeiro, que por essa ocasi�o hospedava-se com o Miranda. Henrique, aprovado no seu primeiro ano de Medicina, fora visitar a fam�lia; em Minas. Isaura e Leonor serviam aos comensais, rindo ambas � socapa por verem ali o Jo�o da venda engravatado e com piegas de visita.

Depois do jantar apareceu uma fam�lia; conhecida, trazendo um rancho de mo�as; vieram tamb�m alguns rapazes; formaram-se jogos de prendas, e Jo�o Rom�o, pela primeira vez em sua vida, viu-se metido em tais funduras. N�o se saiu mal todavia.

O ch� das dez e meia correu sem novidade; e, quando enfim o ne�fito se pilhou na rua, respirou com independ�ncia, remexendo o pesco�o dentro do colarinho engomado e soprando com al�vio. Uma alegria de vit�ria transbordava-lhe do cora��o e fazia-o feliz nesse momento. Bebeu o ar fresco da noite com uma vol�pia nova para ele e, muito satisfeito consigo mesmo, entrou em casa e recolheu-se, rejubilando com a id�ia de que ia descal�ar aquelas botas, desfazer-se de toda aquela roupa e atirar-se � cama, para pensar mais � vontade no seu futuro, cujos horizontes se rasgavam agora iluminados de esperan�a.

Mas a bolha do seu desvanecimento engelhou logo � vista de Bertoleza que, estendida na cama, roncava, de papo para o ar, com a boca aberta, a camisa soerguida sobre o ventre, deixando ver o negrume das pernas gordas e lustrosas.

E tinha de estirar-se ali, ao lado daquela preta fedorenta a cozinha e bodum de peixe! Pois, t�o cheiroso e radiante como se sentia, havia de p�r a cabe�a naquele mesmo travesseiro sujo em que se enterrava a hedionda carapinha da crioula?...

- Ai! ai! gemeu o vendeiro, resignando-se.

E despiu-se.

Uma vez deitado, sem animo de afastar-se da beira da cama, para n�o se encostar com a amiga, surgiu-lhe n�tida ao esp�rito a compreens�o do estorvo que o diabo daquela negra seria para o seu casamento.

E ele que at� a� n�o pensara nisso!... Ora o demo!

N�o p�de dormir; p�s-se a malucar:

Ainda bem que n�o tinham filhos! Aben�oadas drogas que a Bruxa dera � Bertoleza nas duas vezes em que esta se sentiu gr�vida! Mas, afinal, de que modo se veria livre daquele trambolho? E n�o se ter lembrado disso h� mais tempo!... parecia incr�vel!

Jo�o Rom�o, com efeito, t�o ligado vivera com a crioula e tanto se habituara a v�-la ao seu lado, que nos seus devaneios de ambi��o pensou em tudo, menos nela.

E agora?

E malucou no caso at� �s duas da madrugada, sem achar furo. S� no dia seguinte, a contempl�-la de c�coras � porta da venda, abrindo e destripando peixe, foi que, por associa��o de id�ias, lhe acudiu esta hip�tese:

- E se ela morresse?...

XIV

Iam-se assim os dias, e assim mais de tr�s meses se passaram depois da noite da navalhada. Firmo continuava a encontrar-se com a baiana na Rua de S�o Jo�o Batista, mas a mulata j� n�o era a mesma para ele: apresentava-se fria, distra�da, �s vezes impertinente, puxando quest�o por d� c� aquela palha.

- Hum! hum! temos mouro na costa! rosnava o capad�cio com ci�mes. Ora queira Deus que eu me engane!

Nas entrevistas apresentava-se ela agora sempre um pouco depois da hora marcada, e sua primeira frase era para dizer que tinha pressa e n�o podia demorar-se.

- Estou muito apertada de servi�o! acrescentava � r�plica do amante. Uma roupa de uma fam�lia que embarca amanh� para o Norte! Tem de ficar pronta esta noite! J� ontem fiz ser�o!

- Agora est�s sempre apertada de servi�o!... resmungava o Firmo.

- E que � preciso puxar por ele, filho! Ponha-me eu a dormir e quero ver do que como e com que pago a casa! N�o h� de ser com o que levo daqui!

- Or�essa! Tens coragem de dizer que n�o te dou nada? E quem foi que te deu esse vestido que tens no corpo?!

- N�o disse que nunca me desse nada, mas com o que voc� me d� n�o pago a casa e n�o ponho a panela no fogo! Tamb�m n�o lhe estou pedindo coisa alguma! Oh!

Azedavam-se deste modo as suas entrevistas, esfriando as poucas horas que os dois tinham para o amor. Um domingo, Firmo esperou bastante tempo e Rita n�o apareceu. O quarto era acanhado e sombrio, sem janelas, com um cheiro mau de bafio e umidade. Ele havia levado um embrulho de peixe frito, p�o e vinho, para almo�arem juntos. Deu meio-dia e Firmo esperou ainda, passeando na estreiteza da miser�vel alcova, como um on�a enjaulada, rosnando pragas obscenas; o sobrolho intumescido, os dentes cerrados. �Se aquela safada lhe aparecesse naquele momento, ele seria capaz de torc�-la nas m�os!�

� vista do embrulho da comida estourou-lhe a raiva. Deu um pontap� numa bacia de lou�a que havia no ch�o, perto da cama, e soltou um marro na cabe�a.

- Diabo!

Depois assentou-se no leito, esperou ainda algum tempo, fungando forte, sacudindo as pernas cruzadas, e afinal saiu, atirando para dentro do quarto uma palavra porca.

Pela rua, durante o caminho, jurava que �aquela caro pagaria a mulata!� Um s�frego desejo de castig�-la, no mesmo instante, o atra�a ao corti�o de S�o Rom�o, mas n�o se sentiu com animo de l� ir, e contentou-se em rondar a estalagem. N�o conseguiu v�-la; resolveu esperar at� � noite para lhe mandar um recado. E vagou aborrecido pelo bairro, arrastando o seu desgosto por aquele domingo sem pagode. �s duas horas da tarde entrou no botequim do Garnis�, uma espelunca, perto da praia, onde ele costumava beber de s�cia com o Porfiro. O amigo n�o estava l�. Firmo atirou-se numa cadeira, pediu um martelo de parati e acendeu um charuto, a pensar. Um mulatinho, morador no �Cabe�a-de-Gato�, veio assentar-se na mesma mesa e, sem rodeios, deu-lhe a noticia de que na v�spera o Jer�nimo, tivera alta do hospital.

Firmo acordou com um sobressalto.

- O Jer�nimo?!

- Apresentou-se hoje pela manh� na estalagem.

- Como soubeste?

- Disse-me o Pataca.

- Ora ai est� o que �! exclamou o capoeira, soltando um murro na mesa.

- Que � o qu�? interrogou o outro.

- Nada! � c� comigo. Toma alguma coisa?

Veio novo copo, e Firmo resmungou no fim de uma pausa:

- �! n�o h� d�vida! Por isto � que a perua ultimamente me anda de vento mudado!...

E um ci�me doido, um desespero feroz rebentou-lhe por dentro e cresceu logo como a sede de um ferido. �Oh! precisava vingar-se dela! dela e dele! O amaldi�oado resistiu � primeira, mas n�o lhe escaparia da segunda!�

- Veja mais um martelo de parati! gritou para o portuguesinho da espelunca. E acrescentou, batendo com toda a for�a o seu petr�polis no ch�o:

- E n�o passa de hoje mesmo!

Com o chap�u � r�, a gaforina mais assanhada que de costume, os olhos vermelhos, a boca espumando pelos cantos, todo ele respirava uma febre de vingan�a e de �dio.

- Olha! disse ao companheiro de mesa. Disto, nem pio l� com os carapicus! Se abrires o bico dou-te cabo da pele! J� me conheces!

- Tenho nada que falar! Pra qu�?

- Bom!

E ficaram ainda a beber.

Jer�nimo, com efeito, tivera alta e tornara aquele domingo ao corti�o, pela primeira vez depois da doen�a. Vinha magro, p�lido, desfigurado, apoiando-se a um peda�o de bambu. Crescera-lhe a barba e o cabelo, que ele n�o queria cortar sem ter cumprido certo juramento feito aos seus brios. A mulher fora busc�-lo ao hospital e caminhava ao seu lado, igualmente abatida com a mol�stia do marido e com as causas que a determinaram. Os companheiros receberam-no compungidos, tomados de uma tristeza respeitosa; um sil�ncio fez-se em torno do convalescente; ningu�m falava sen�o a meia voz; a Rita Baiana tinha os olhos arrasados d��gua.

Piedade levou o seu homem para o quarto.

- Queres tomar um caldinho? perguntou-lhe. Creio que ainda n�o est�s de todo pronto...

- Estou! contrap�s ele. Diz o doutor que preciso � de andar, para ir chamando for�a �s pernas. Tamb�m estive tanto tempo preso � cama! S� de uma semana pra c� � que encostei os p�s no ch�o!

Deu alguns passos na sua pequena sala e disse depois, tornando junto da mulher:

- O que me saberia bem agora era uma xicrinha de caf�, mas queria-o bom como o faz a Rita... Olha! pede-lhe que o arranje.

Piedade soltou um suspiro e saiu vagarosamente, para ir pedir o obs�quio � mulata. Aquela prefer�ncia pelo caf� da outra do�a-lhe duro que nem uma infidelidade.

- L� o meu homem quer do seu caf� e torceu nariz ao de casa... Manda pedir-lhe que lhe fa�a uma x�cara. Pode ser? perguntou a portuguesa � baiana.

- N�o custa nada! respondeu esta. Com poucas est� l�!

Mas n�o foi preciso que o levasse, porque da� a um instante, Jer�nimo, com o seu ar tranq�ilo e passivo de quem ainda se n�o refez de todo depois de uma longa mol�stia, surgiu-lhe � porta.

- N�o vale a pena estorvar-se em l� ir... Se me d� licen�a, bebo o cafezinho aqui mesmo...

- Entra, seu Jer�nimo.

- Aqui ele sabe melhor...

- Voc� pega j� com partes! Olha, sua mulher anda de p� atr�s comigo! E eu n�o quero hist�rias!...

Jer�nimo sacudiu os ombros com desd�m.

- Coitada!... resmungou depois. Muito boa criatura, mas...

- Cala a boca, diabo! Toma o caf� e deixa de maldiz�ncia! � mesmo vicio de Portugal: comendo e dizendo mal!

O portugu�s sorveu com del�cia um gole de caf�.

- N�o digo mal, mas confesso que n�o encontro nela umas tantas coisas que desejava...

E chupou os bigodes.

- Voc�s s�o tudo a mesma s�cia! Bem tola � quem vai atr�s de l�bia de homem! Eu c� n�o quero mais saber disso... Ao outro despachei j�!

O cavouqueiro teve um tremor de todo o corpo.

- Outro quem?! O Firmo?

Rita arrependeu-se do que dissera, e gaguejou:

- � um coisa-ruim! N�o quero saber mais dele!... Um traste!

- Ele ainda vem c�? perguntou o cavouqueiro.

- Aqui? Qual! Nessa n�o caio! E se vier n�o lhe abro a porta! Ah! quando embirro com uma pessoa � que embirro mesmo!

- Isso � verdade, Rita?

- Qu�? Que n�o quero saber mais dele? Esta que aqui est� nunca mais far� vida com semelhante c�bula! Juro por esta luz!

- Ele fez-lhe alguma?

- N�o sei! n�o quero! acabou-se!

- � que ent�o voc� tem outro agora...

- Que esperan�a! N�o tenho, nem quero mais ter homem!

- Por que, Rita?

- Ora! n�o paga a pena!

- E... se voc� encontrasse um... que a quisesse deveras... para sempre?...

- N�o � com essas!...

- Pois sei de um que a quer como Deus aos seus!...

- Pois diga-lhe que siga outro oficio!

Ela se chegou para recolher a x�cara, e ele apalpou-lhe a cintura.

- Olha! Escuta!

Rita fugiu com uma rabanada, e disse r�pido, muito a s�rio:

- Deixa disso. Pode tua mulher ver!

- Vem c�!

- Logo.

- Quando?

- Logo mais.

- Onde?

- N�o sei.

- Preciso muito te falar...

- Pois sim, mas aqui fica feio.

- Onde nos encontramos ent�o?

- Sei c�!

E, vendo que Piedade entrava, ela disfar�ou, dizendo sem transi��o:

- Os banhos frios � que s�o bons para isso. P�em duro o corpo!

A outra, embesourada, atravessou em sil�ncio a pequena sala, foi ter com o marido e comunicou-lhe que o Z� Carlos queria falar-lhe, junto com o Pataca.

- Ah! fez Jer�nimo. J� sei o que �. At� logo, Nh� Rita. Obrigado. Quando quiser qualquer coisa de n�s, l� estamos.

Ao sair no p�tio, aqueles dois vieram ao seu encontro. O cavouqueiro levou-os para casa, onde a mulher havia posto j� a mesa do almo�o, e com um sinal preveniu-os de que n�o falassem por enquanto sobre o assunto que os trouxera ali. Jer�nimo comeu �s pressas e convidou as visitas a darem um giro l� fora.

Na rua, perguntou-lhes em tom misterioso:

- Onde poderemos falar � vontade?

O Pataca lembrou a venda do Manuel Pep�, defronte do cemit�rio. - Bem achado! confirmou Z� Carlos. H� l� bons fundos para se conversar.

E os tr�s puseram-se a caminho, sem trocar mais palavras at� � esquina.

- Ent�o est� de p� o que dissemos?... indagou afinal aquele �ltimo. - De pedra e cal! respondeu o cavouqueiro.

- E o que � que se faz?

- Ainda n�o sei... Preciso antes de tudo saber onde o cabra � encontrado � noite.

- No Garnis�, afirmou o Pataca.

- Garnis�?

- Aquele botequim ali ao entrar da Rua da Passagem, onde est� um galo � tabuleta.

- Ah! Defronte da farm�cia nova...

- Justo! Ele vai l� agora todas as noites, e l� esteve ontem, que o vi, por sinal que num gole...

- Muito b�bado, hein?

- Como um gamb�! Aquilo foi alguma, que a Rita Baiana lhe pregou de fresco!

Tinham chegado � venda. Entraram pelos fundos e assentaram-se sobre caixas de sab�o vazias, em volta de uma mesa de pinho. Pediram parati com a��car.

- Onde � que eles se encontravam?... informou-se Jer�nimo, afetando que fazia esta pergunta sem interesse especial. L� mesmo no S�o Rom�o?...

- Quem? A Rita mais ele? Ora o qu�! Pois se ele agora � todo cabe�a-de-gato!...

- Ela ia l�?

- Duvido! Ent�o logo aquela! Aquela � carapicu at� o sabugo das unhas!

- Nem sei como ainda n�o romperam! interveio Z� Carlos, que continuou a falar a respeito da mulata, enquanto Jer�nimo o escutava abstrato, sem tirar os olhos de um ponto.

O Pataca, como se acompanhasse o pensamento do cavouqueiro, disse-lhe emborcando o resto do copo:

- Talvez o melhor fosse liquidar a coisa hoje mesmo!...

- Ainda estou muito fraco... observou lastimoso o convalescente.

- Mas o teu pau est� forte! E al�m disso c� estamos n�s dois. Tu podes at� ficar em casa, se quiseres...

- Isso � que n�o! atalhou aquele. N�o dou o meu quinh�o pelos dentes da boca!

- Eu c� tamb�m vou que o melhor seria pespegar-lhe hoje mesmo a sova... declarou o outro. P�o de um dia para outro fica duro!

- E eu estou-lhe com uma gana!... acrescentou o Pataca.

- Pois seja hoje mesmo! resolveu Jer�nimo. E o dinheiro l� est� em casa, quarenta pra cada um! Em seguida � mela corre logo o cobre! E ao depois vai a gente tomar uma fartadela de vinho fino!

- A que horas nos juntamos? perguntou Z� Carlos.

- Logo ao cair da noite, aqui mesmo. Est� dito?

- E ser� feito, se Deus quiser!

O Pataca acendeu o cachimbo, e os tr�s puseram-se a cavaquear animadamente sobre o efeito que aquela sova havia de produzir; a cara que o cabra faria entre tr�s bons cacetes. �Ent�o � que queriam ver at� onde ia a impostura da navalha! Diabo de um calhorda que, por um - vai tu, irei eu - arrancava logo pelo ferro!...�

Dois trabalhadores, em camisa de meia, entraram na tasca e o grupo calou-se. Jer�nimo fogueou um cigarro no cachimbo do Pataca e despediu-se, relembrando aos companheiros a hora da entrevista e atirando sobre a mesa um n�quel de duzentos r�is.

Foi direito para o corti�o.

- Fazes mal em andar por ai com este sol!... repreendeu Piedade, ao v�-lo entrar.

- Pois se o doutor me disse que andasse quanto pudesse...

Mas recolheu-se � casa, estirou-se na cama e ferrou logo no sono. A mulher, que o acompanhara at� l�, assim que o viu dormindo, enxotou as moscas de junto dele, cobriu-lhe a cara com uma cambraia que servia para os tabuleiros de roupa engomada, e saiu na ponta dos p�s, deixando a porta encostada.

Jantaram da� a duas horas. Jer�nimo comeu com apetite, bebeu uma garrafa de vinho, e a tarde passaram-na os dois de palestra, assentados � frente de casa, formando grupo com a Rita e a gente da Machona. Em torno deles a liberdade feliz do domingo punha alegrias naquela tarde. Mulheres amamentavam o filhinho ali mesmo, ao ar livre,

mostrando a uberdade das tetas cheias. Havia muito riso, muito parolar de papagaios; pequenos travessavam, t�o depressa rindo como chorando; os italianos faziam a ruidosa digest�o dos seus jantares de festa; ouviam-se cantigas e pragas entre gargalhadas. A Augusta, que estava gr�vida de sete meses, passeava solenemente o seu bandulho, levando um outro filho ao colo. O Albino, instalado defronte de uma mesinha em frente � sua porta, fazia, � for�a de paci�ncia, um quadro, composto de figurinhas de caixa de f�sforos, recortadas a tesoura e grudadas em papel�o com goma-ar�bica. E l� em cima, numa das janelas do Miranda, Jo�o Rom�o, vestido de casimira clara, uma gravata � moda, j� familiarizado com a roupa e com a gente fina, conversava com Zulmira que, ao lado dele, sorrindo de olhos baixos, atirava migalhas de p�o para as galinhas do corti�o; ao passo que o vendeiro lan�ava para baixo olhares de desprezo sobre aquela gentalha sensual, que o enriquecera, e que continuava a mourejar estupidamente, de sol a sol, sem outro ideal sen�o comer, dormir e procriar.

Ao cair da noite, Jer�nimo foi, como ficara combinado, � venda do Pep�. Os outros dois j� l� estavam. Infelizmente, havia mais algu�m na tasca. Tomaram juntos, pelo mesmo copo, um martelo de parati e conversaram em voz surda numa conspira��o sombria em que as suas barbas ro�avam umas com as outras.

- Os paus onde est�o?... perguntou o cavouqueiro.

- Ali, junto �s pipas... segredou o Pataca, apontando com disfarce para uma esteira velha enrolada. Preparei-os ainda h� pouco... N�o os quis muito grandes... Deste tamanho.

E abriu a m�o contra a terra no lugar do peito.

- Estiveram de molho at� agora... acrescentou, piscando o olho.

- Bom! aprovou Jer�nimo, esgotando o copo com um �ltimo gole. Agora onde vamos n�s! Parece-me ainda cedo para o Garnis�.

- Ainda! confirmou o Pataca. Deixemo-nos ficar por aqui mais um pouco e ao depois ent�o seguiremos. Eu entro no botequim e voc�s me esperam fora no lugar que marcamos... Se o cabra n�o estiver l�, volto logo a dizer-lhes, e, caso esteja, fico... chego-me para ele, procuro entrar em conversa, puxo discuss�o e afinal desafio-o pra rua; ele cai na esparrela, e ent�o voc�s dois surgem e metem-se na dan�a, como quem n�o quer a coisa! Que acham?

- Perfeito! aplaudiu Jer�nimo, e gritou para dentro: - Olha mais um martelo de parati!

Em seguida enterrou a m�o no bolso da cal�a e sacou um rolo grosso de notas.

- Podem enxugar � vontade! disse. Aqui ainda h� muito com qu�!

E, ordenando as notas, separou oitenta mil-r�is, em c�dulas de vinte.

- Isto � o do ajuste! Este � sagrado! acrescentou, guardando-as na algibeira do lado esquerdo.

Depois separou ainda vinte mil-r�is, que atirou sobre a mesa.

- Esse a� � para festejarmos a nossa vit�ria!

E fazendo do resto do seu dinheiro um bolo, que ele, um pouco �brio, apertava nos dedos, agora, claros e quase descalejados, socou-o na algibeira do lado direito explicando entre dentes que ali ficava ainda bastante para o que desse e viesse, no caso de algum contratempo.

- Bravo! exclamou Z� Carlos. Isto � o que se chama fazer as coisas � fidalga! Haja contar comigo pra vida e pra morte!

O Pataca entendia que podiam tomar agora um pouco de cerveja.

- C� por mim n�o quero, mas bebam-na voc�s, acudiu Jer�nimo.

- Preferia um trago de vinho branco, contraveio o terceiro.

- Tudo o que quiserem! franqueou aquele. Eu tomo tamb�m um pouco de vinho. N�o! que o que estamos a beber n�o � dinheiro de navalhista, foi ganho ao sol e � chuva com o suor do meu rosto! � entornar pra baixo sem caretas, que este n�o pesa na consci�ncia de ningu�m!

- Ent�o, � sua! brindou Z� Carlos, logo que veio o novo refor�o. Pra que n�o torne voc� a dar que fazer � m� casta dos botic�rios!

- � sua, mestre Jer�nimo! concorreu o outro.

Jer�nimo agradeceu e disse, depois de mandar encher os copos:

- Aos amigos e patr�cios com quem me achei para o meu desfor�o!

E bebeu.

- � da S�ora Piedade de Jesus! reclamou o Pataca.

- Obrigado! respondeu o cavouqueiro, erguendo-se. Bem! N�o nos deixemos agora ficar aqui toda a noite; m�os a obra! S�o quase oito horas.

Os outros dois esvaziaram de um trago o que ainda havia no fundo dos copos e levantaram-se tamb�m.

- � muito cedo ainda... obtemperou Z� Carlos, cuspindo de esguelha e limpando o bigode nas costas da m�o.

- Mas talvez tenhamos alguma demora pelo caminho, advertiu o companheiro, indo buscar junto �s pipas o embrulho dos cacetes.

- Em todo o caso vamos seguindo, resolveu Jer�nimo, impaciente, nem se temesse que a noite lhe fugisse de s�bito.

Pagou a despesa, e os tr�s sa�ram, n�o cambaleando, mas como que empurrados por um vento forte, que os fazia de vez em quando dar para a frente alguns passos mais r�pidos. Seguiram pela Rua de Sorocaba e tomaram depois a dire��o da praia, conversando em voz baixa, muito excitados. S� pararam perto do Garnis�.

- Vais tu ent�o, n�o �? perguntou o cavouqueiro ao Pataca.

Este respondeu entregando-lhe o embrulho dos paus e afastando-se de m�os nas algibeiras, a olhar para os p�s, fingindo-se mais b�bedo do que realmente estava.

XV

O Garnis� tinha bastante gente essa noite. Em volta de umas doze mesinhas toscas, de pau, com uma coberta de folha-de-flandres pintada de branco fingindo m�rmore, viam-se grupos de tr�s e quatro homens, quase todos em mangas de camisa, fumando e bebendo no meio de grande algazarra. Fazia-se largo consumo de cerveja nacional, vinho virgem, parati e laranjinha. No ch�o coberto de areia havia cascas de queijo-de-minas, restos de iscas de f�gado, espinhas de peixe, dando id�ia de que ali n�o s� se enxugava como tamb�m se comia. Com efeito, mais para dentro, num engordurado bufete, junto ao balc�o e entre as prateleiras de garrafas cheias e arrolhadas, estava um travess�o de assado com batatas, um osso de presunto e v�rios pratos de sardinhas fritas. Dois candeeiros de querosene lumiavam, encarvoando o teto. E de uma porta ao fundo, que escondia o interior da casa com uma cortina de chita vermelha, vinha de vez em quando uma baforada de vozes roucas, que parecia morrer em caminho, vencida por aquela densa atmosfera cor de opala.

O Pataca estacou a entrada, afetando grande bebedeira e procurando, com disfarce, em todos os grupos, ver se descobria o Firmo. N�o o conseguiu; mas algu�m, em certa mesa, lhe chamara a aten��o, porque ele se dirigiu para l�. Era uma mulatinha magra, mal vestida, acompanhada por uma velha quase cega e mais um homem, inteiramente calvo, que sofria de asma e, de quando em quando, abalava a mesa com um frouxo de tosse, fazendo dan�ar os copos.

O Pataca bateu no ombro da rapariga.

- Como vais tu, Florinda?

Ela olhou para ele, rindo; disse que ia bem, e perguntou-lhe como passava.

- Rola-se, filha. Tu que fim levaste? H� um par de quinze dias que te n�o vejo!

- E mesmo. Desde que estou com seu Bento n�o tenho sa�do quase.

- Ah! disse o Pataca, est�s amigada? Bom!...

- Sempre estive!

E ela ent�o, muito expansiva com a sua folga daquele domingo e com o seu bocado de cerveja, contou que, no dia em que fugiu da estalagem, ficou na rua e dormiu numas obras de uma casa em constru��o na Travessa da Passagem, e que no seguinte oferecendo-se de porta em porta, para alugar-se de criada ou de ama-seca, encontrou um velho solteiro e agimbado que a tomou ao seu servi�o e meteu-se com ela.

- Bom! muito bom! anuiu Pataca.

Mas o diabo do velho era um safado; dava-lhe muita coisa, dinheiro at�, trazia-a sempre limpa e de barriga cheia, sim senhor! mas queria que ela se prestasse a tudo! Brigaram. E, como o vendeiro da esquina estava sempre a cham�-la para casa, um belo dia arribou, levando o que apanhara ao velho.

- Est�s ent�o agora com o da venda?

N�o! O tratante, a pretexto de que desconfiava dela com o Bento marceneiro, p�-la na rua, chamando a si o que a pobre de Cristo trouxera da casa do outro e deixando-a s� com a roupa do corpo e ainda por cima doente por causa de um aborto que tivera logo que se metera com semelhante peste. O Bento tomara-a ent�o � sua conta, e ela, gra�as a Deus, por enquanto n�o tinha raz�es de queixa.

O Pataca olhou em torno de si com o ar de quem procura algu�m, e Florinda, supondo que se tratava do seu homem, acrescentou:

- N�o est� c�, est� l� dentro. Ele, quando joga, n�o gosta que eu fique perto; diz que encabula.

- E tua m�e?

- Coitada! foi pro hosp�cio...

E passou logo a falar a respeito da velha Marciana; o Pataca, por�m, j� lhe n�o prestava aten��o, porque nesse momento acabava de abrir-se a cortina vermelha, e Firmo surgia muito �brio, a dar bordos, contando, sem conseguir, uma massagada de dinheiro, em notas pequenas, que ele afinal entrouxou num bolo e recolheu na algibeira das cal�as.

- � Porfiro! n�o vens? gritou l� para dentro, arrastando a voz.

E, depois de esperar inutilmente pela resposta, fez alguns passos na sala.

O Pataca deu � Florinda um �at� logo� r�pido e, fingindo-se de novo muito b�bedo, encaminhou-se na dire��o em que vinha o mulato.

Esbarraram-se.

- Oh! Oh! exclamou o Pataca. Desculpe!

Firmo levantou a cabe�a e encarou-o com arrog�ncia; mas desfranziu o rosto logo que o reconheceu.

- Ah! �s tu, seu galego? Como vai isso? A ladroeira corre?

- Ladroeira tinha a av� na cuia! Anda a tomar alguma coisa. Queres?

- Que h� de ser?

- Cerveja. Vai?

- V� l�.

Chegaram-se para o balc�o.

- Uma Guarda-Velha, � pequeno! gritou o Pataca.

Firmo puxou logo dinheiro para pagar.

- Deixa! disse o outro. A lembran�a foi minha!

Mas, como Firmo insistisse, consentiu-lhe que fizesse a despesa.

E os n�queis do troco rolaram no ch�o, fugindo por entre os dedos do mulato, que os tinha duros na tens�o muscular da sua embriaguez.

- Que horas s�o? perguntou Pataca, olhando quase de olhos fechados o rel�gio da parede. Oito e meia. Vamos a outra garrafa, mas agora pago eu!

Beberam de novo, e o coadjutor de Jer�nimo observou depois:

- Voc� hoje ferrou-a deveras! Est�s que te n�o podes lamber!

- Desgostos... resmungou o capoeira, sem conseguir lan�ar da boca a saliva que se lhe grudava � l�ngua.

- Limpa o queixo que est�s cuspido. Desgostos de qu�? Neg�cios de mulher, aposto!

- A Rita n�o me apareceu hoje, sabes? N�o foi e eu bem calculo por qu�!

- Por qu�?

- Porque a peste do Jer�nimo voltou hoje � estalagem!

- Ahn! n�o sabia!... A Rita est� ent�o com ele?...

- N�o est�, nem nunca h� de estar, que eu daqui mesmo vou � procura daquele galego ordin�rio e ferro-lhe a sardinha no pandulho!

- Vieste armado?

Firmo sacou da camisa uma navalha.

- Esconde! n�o deves mostrar isso aqui! Aquela gente ali da outra mesa j� n�o nos tira os olhos de cima!

- Estou-me ninando pra eles! E que n�o olhem muito, que lhes dou uma de amostra!

- Entrou um urbano! Passa-me a navalha!

O capad�cio fitou o companheiro, estranhando o pedido.

- � que, explicou aquele, se te prenderem n�o te encontram ferro...

- Prender a quem? a mim? Ora, vai-te catar!

- E ela � boa? Deixa ver!

- Isto n�o � coisa que se deixe ver!

- Bem sabes que n�o me entendo com armas de barbeiro!

- N�o sei! Esta � que n�o me sai das unhas, nem para meu pai, que a pedisse!

- E porque n�o tens confian�a em mim!

- Confio nos meus dentes, e esses mesmo me mordem a l�ngua!

- Sabes quem vi ainda h� pouco? N�o �s capaz de adivinhar!...

- Quem?

- A Rita.

- Onde?

- Ali na Praia da Saudade.

- Com quem?

- Com um tipo que n�o conhe�o...

Firmo levantou-se de improviso e cambaleou para o lado da sa�da.

- Espera! rosnou o outro, detendo-o. Se queres vou contigo; mas � preciso ir com jeito, porque, se ela nos bispa, foge!

O mulato n�o fez caso desta observa��o e saiu a esbarrar-se por todas as mesas. Pataca alcan�ou-o j� na rua e passou-lhe o bra�o na cintura, amigavelmente.

- Vamos devagar... disse; se n�o o p�ssaro se arisca!

A praia estava deserta. Caia um chuvisco. Ventos frios sopravam do mar. O c�u era um fundo negro, de uma s� tinta; do lado oposto da bala os lampi�es pareciam surgir d��gua, como algas de fogo, mergulhando bem fundo as suas tr�mulas ra�zes luminosas.

- Onde est� ela? perguntou o Firmo, sem se ag�entar nas pernas.

- Ali mais adiante, perto da pedreira. Caminha, que h�s de ver!

E continuaram a andar para as bandas do hosp�cio. Mas dois vultos surdiram da treva; o Pataca reconheceu-os e abra�ou-se de improviso ao mulato.

- Segurem-lhe as pernas! gritou para os outros.

Os dois vultos, pondo o cacete entre os dentes, apoderaram-se de Firmo, que bracejava seguro pelo tronco.

Deixara-se agarrar - estava perdido.

Quando o Pataca o viu preso pelos sovacos e pela dobra dos joelhos, sacou-lhe fora a navalha.

- Pronto! Est� desarmado!

E tomou tamb�m o seu pau.

Soltaram-no ent�o. O capoeira, mal tocou com os p�s em terra, desferiu um golpe com a cabe�a, ao mesmo tempo que a primeira cacetada lhe abria a nuca. Deu um grito e voltou-se cambaleando. Uma nova paulada cantou-lhe nos ombros, e outra em seguida nos rins, e outra nas coxas, outra mais violenta quebrou-lhe a clav�cula, enquanto outra logo lhe rachava a testa e outra lhe apanhava a espinha, e outras, cada vez mais r�pidas, batiam de novo nos pontos j� espancados, at� que se converteram numa carga continua de porretadas, a que o infeliz n�o resistiu, rolando no ch�o, a gotejar sangue de todo o corpo.

A chuva engrossava. Ele agora, assim debaixo daquele bate-bate sem tr�guas, parecia muito menor, minguava como se estivesse ao fogo. Lembrava um rato morrendo a pau. Um ligeiro tremor convulsivo era apenas o que ainda lhe denunciava um resto de vida. Os outros tr�s n�o diziam palavra, arfavam, a bater sempre, tomados de uma irresist�vel vertigem de pisar bem a cacete aquela trouxa de carne mole e ensang�entada, que grunhia frouxamente a seus p�s. Afinal, quando de todo j� n�o tinham for�as para bater ainda, arrastaram a trouxa at� a ribanceira da praia e lan�aram-na ao mar. Depois, arquejantes, deitaram a fugir, � toa, para os lados da cidade.

Chovia agora muito forte. S� pararam no Catete, ao p� de um quiosque; estavam encharcados; pediram parati e beberam como quem bebe �gua. Passava j� de onze horas. Desceram pela Praia da Lapa; ao chegarem debaixo de um lampi�o, Jer�nimo parou suando apesar do aguaceiro que cala.

- Aqui t�m voc�s, disse, tirando do bolso as quatro notas de vinte mil-r�is. Duas para cada um! E agora vamos tomar qualquer coisa quente em lugar seco.

- Ali h� um botequim, indicou o Pataca, apontando a Rua da Gl�ria.

Subiram por uma das escadinhas que ligam essa rua � praia, e da� a pouco instalavam-se em volta de uma mesa de ferro. Pediram de comer e de beber e puseram-se a conversar em voz soturna, muito cansados.

A uma hora da madrugada o dono do caf� p�-los fora. Felizmente chovia menos. Os tr�s tomaram de novo a dire��o de Botafogo; em caminho Jer�nimo perguntou ao Pataca se ainda tinha consigo a navalha do Firmo e pediu-lha, ao que o companheiro cedeu sem obje��o.

- � para conservar uma lembran�a daquele bisb�rria! explicou o cavouqueiro, guardando a arma.

Separaram-se defronte da estalagem. Jer�nimo entrou sem ru�do; foi at� � casa, espiou pelo buraco da fechadura; havia luz no quarto de dormir; compreendeu que a mulher estava � sua espera, acordada talvez; pensou sentir, vindo l� de dentro, o bodum azedo que ela punha de si, fez uma careta de nojo e encaminhou-se resolutamente para a casa da mulata, em cuja porta bateu devagarinho.

Rita, essa noite, recolhera-se aflita e assustada. Deixara de ir ter com o amante e mais tarde admirava-se como fizera semelhante imprud�ncia; como tivera coragem de p�r em pr�tica, justamente no momento mais perigoso, uma coisa que ela, at� ai, n�o se sentira com animo de praticar. No intimo respeitava o capoeira; tinha-lhe medo. Amara-o a principio por afinidade de temperamento, pela irresist�vel conex�o do instinto luxurioso e canalha que predominava em ambos, depois continuou a estar com ele por h�bito, por uma esp�cie de vicio que amaldi�oamos sem poder larg�-lo; mas desde que Jer�nimo propendeu para ela, fascinando-a com a sua tranq�ila seriedade de animal bom e forte, o sangue da mesti�a reclamou os seus direitos de apura��o, e Rita preferiu no europeu o macho de ra�a superior. O cavouqueiro, pelo seu lado, cedendo �s imposi��es mesol�gicas, enfarava a esposa, sua cong�nere, e queria a mulata, porque a mulata era o prazer, era a vol�pia, era o fruto dourado e acre destes sert�es americanos, onde a alma de Jer�nimo aprendeu lasc�vias de macaco e onde seu corpo porejou o cheiro sensual dos bodes.

Amavam-se brutalmente, e ambos sabiam disso. Esse amor irracional e emp�rico carregara-se muito mais, de parte a parte, com o tr�gico incidente da luta, em que o portugu�s fora vitima Jer�nimo aureolou-se aos olhos dela com uma simpatia de m�rtir sacrificado � mulher que ama; cresceu com aquela navalhada; iluminou-se com o seu pr�prio sangue derramado, e, depois, a aus�ncia no hospital veio a completar a cristaliza��o do seu prestigio, como se o cavouqueiro houvera baixado a uma sepultura, arrastando atr�s de si a saudade dos que o choravam.

Entretanto, o mesmo fen�meno se operava no esp�rito de Jer�nimo com rela��o � Rita: arriscar espontaneamente a vida por algu�m � aceitar um compromisso de ternura, em que empenhamos alma e cora��o; a mulher por quem fazemos tamanho sacrif�cio, sela ela quem for assume de um s� v�o em nossa fantasia as propor��es de um ideal. O desterrado, � primeira troca de olhares com a baiana, amou-a logo, porque sentiu nela o resumo de todos os quentes mist�rios que os enlearam voluptuosamente nestas terras da lux�ria; amou-a muito mais quando teve ocasi�o de jogar a exist�ncia por esse amor, e amou-a loucamente durante a triste e dolorosa solid�o da enfermaria, em que os seus gemidos e suspiros eram todos para ela.

A mulata bem que o compreendeu, mas n�o teve animo de confessar-lhe que tamb�m morria de amores por ele; receou prejudic�-lo. Agora, com aquela loucura de faltar � entrevista justamente no dia em que Jer�nimo voltava � estalagem, a situa��o parecia-lhe muito melindrosa. Firmo, desesperado com a aus�ncia dela, embebedava-se naturalmente e vinha ao corti�o provocar o cavouqueiro; a briga rebentaria de novo, fatal para um dos dois, se � que n�o seria para ambos. Do que ela sentira pelo navalhista persistia agora apenas o medo, n�o como ele era dantes, indeterminado e frouxo, mas ao contr�rio, sobressaltado, nervoso, cheio de apreens�es que a punham aflita. Firmo j� n�o lhe aparecia no esp�rito como um amante ciumento e perigoso, mas como um simples fac�nora, armado de uma velha navalha desleal e homicida. O seu medo transformava-se em uma mistura de asco e terror. E sem achar sossego na cama, deixava-se atordoar pelos seus pressentimentos, quando ouviu bater na porta.

- � ele! disse, com o cora��o a saltar.

E via j� defronte de si o Firmo, b�bado, a reclamar o Jer�nimo aos berros, para esfaque�-lo ali mesmo. N�o respondeu ao primeiro chamado; ficou escutando.

Depois de uma pausa bateram de novo.

Ela estranhou o modo pelo qual batiam. N�o era natural que o fac�nora procedesse com tanta prud�ncia. Ergueu-se, foi a janela, abriu uma das folhas e espreitou pelas r�tulas.

- Quem est� ai?... perguntou a meia voz.

- Sou eu... disse Jer�nimo, chegando-se.

Reconheceu-o logo e correu a abrir.

- Como?! � voc�, Jeromo?

- Chit! fez ele, pondo o dedo na boca. Fala baixo.

Rita come�ou a tremer: no olhar do portugu�s, nas suas m�os encardidas de sangue, no seu todo de homem �brio, encharcado e sujo, havia uma terr�vel express�o de crime.

- Donde vens tu?... segredou ela.

- De cuidar da nossa vida... Ai tens a navalha com que fui ferido!

E atirou-lhe sobre a mesa a navalha de Firmo, que a mulata conhecia como as palmas da m�o.

- E ele?

- Est� morto.

- Quem o matou?

- Eu.

Calaram-se ambos.

- Agora... acrescentou o cavouqueiro, no fim de um sil�ncio arquejado por ambos; estou disposto a tudo para ficar contigo. Sairemos os dois daqui para onde melhor for... Que dizes tu?

- E tua mulher?...

- Deixo-lhe as minhas economias de muito tempo e continuarei a pagar o col�gio � pequena. Sei que n�o devia abandon�-la, mas podes ter como certo que, ainda que n�o queiras vir comigo, n�o ficarei com ela! N�o sei! j� n�o a posso suportar! Um homem enfara-se! Felizmente minha caixa de roupa est� ainda na Ordem e posso ir busc�-la pela manh�.

- E para onde iremos?

- O que n�o falta � p�r�onde ir! Em qualquer parte estaremos bem. Tenho aqui sobre mim uns quinhentos mil-r�is, para as primeiras despesas. Posso ficar c� at� �s cinco horas; s�o duas e meia; saio sem ser visto por Piedade; mando-te ao depois dizer o que arranjei, e tu ir�s ter comigo... Est� dito? Queres?

Rita, em resposta, atirou-se ao pesco�o dele e pendurou-se-lhe nos l�bios, devorando-o de beijos.

Aquele novo sacrif�cio do portugu�s; aquela dedica��o extrema que o levava a arremessar para o lado fam�lia, dignidade, futuro, tudo, tudo por ela, entusiasmou-a loucamente. Depois dos sobressaltos desse dia e dessa noite, seus nervos estavam afiados e toda ela el�trica.

Ah! n�o se tinha enganado! Aquele homenzarr�o herc�leo, de m�sculos de touro, era capaz de todas as meiguices do carinho.

- Ent�o? insistiu ele.

- Sim, sim, meu cativeiro! respondeu a baiana, falando-lhe na boca; eu quero ir contigo; quero ser a tua mulata, o bem do teu cora��o! Tu �s os meus feiti�os! - E apalpando-lhe o corpo:- Mas como estas ensopado! Espera! espera! o que n�o falta aqui e roupa de homem pra mudar!... Podias ter uma reca�da, cruzes! Tira tudo isso que est� alagado! Eu vou acender o fogareiro e estende-se em cima o que � casimira, para te poderes vestir �s cinco horas. Tira as botas! Olha o chap�u como est�! Tudo isto seca! Tudo isto seca! Mira, toma j� um gole de parati p�r�atalhar a friagem! Depois passa em todo o corpo! Eu vou fazer caf�!

Jer�nimo bebeu um bom trago de parati, mudou de roupa e deitou-se na cama de Rita.

- Vem pra c�... disse, um pouco rouco.

- Espera! espera! O caf� est� quase pronto!

E ela s� foi ter com ele, levando-lhe a ch�vena fumegante da perfumosa bebida que tinha sido a mensageira dos seus amores; assentou-se ao rebordo da cama e, segurando com uma das m�os o pires, e com a outra a x�cara, ajudava-o a beber, gole por gole, enquanto seus olhos o acarinhavam, cintilantes de impaci�ncia no antegozo daquele primeiro enlace.

Depois, atirou fora a saia e, s� de camisa, lan�ou-se contra o seu amado, num frenesi de desejo doido.

Jer�nimo, ao senti-la inteira nos seus bra�os; ao sentir na sua pele a carne quente daquela brasileira; ao sentir inundar-lhe o rosto e as esp�duas, num efl�vio de baunilha e cumaru, a onda negra e fria da cabeleira da mulata; ao sentir esmagarem-se no seu largo e pelado colo de cavouqueiro os dois globos t�midos e macios, e nas suas coxas as coxas dela; sua alma derreteu-se, fervendo e borbulhando como um metal ao fogo, e saiu-lhe pela boca, pelos olhos, por todos os poros do corpo, escandescente, em brasa, queimando-lhe as pr�prias carnes e arrancando-lhe gemidos surdos, solu�os irreprim�veis, que lhe sacudiam os membros, fibra por fibra, numa agonia extrema, sobrenatural, uma agonia de anjos violentados por diabos, entre a vermelhid�o cruenta das labaredas do inferno.

E com um arranco de besta-fera ca�ram ambos prostrados, arquejando. Ela tinha a boca aberta, a l�ngua fora, os bra�os duros, os dedos inteiri�ados, e o corpo todo a tremer-lhe da cabe�a aos p�s, continuamente, como se estivesse morrendo; ao passo que ele, de s�bito arremessado longe da vida por aquela explos�o inesperada dos seus sentidos, deixava-se mergulhar numa embriaguez deliciosa, atrav�s da qual o mundo inteiro e todo o seu passado fugiam como sombras f�tuas. E, sem consci�ncia de nada que o cercava, nem mem�ria de si pr�prio, sem olhos, sem tino, sem ouvidos, apenas conservava em todo o seu ser uma impress�o bem clara, viva, inextingu�vel: o atrito daquela carne quente e palpitante, que ele em del�rio apertou contra o corpo, e que ele ainda sentia latejar-lhe debaixo das m�os, e que ele continuava a comprimir maquinalmente, como a crian�a que, j� dormindo, afaga ainda as tetas em que matou ao mesmo tempo a fome e a sede com que veio ao mundo.

XVI

A essas horas Piedade de Jesus ainda esperava pelo marido.

Ouvira, assentada impaciente � porta de sua casa, darem oito horas, oito e meia; nove, nove e meia. "Que teria acontecido, M�e Sant�ssima?... Pois o homem ainda n�o estava pronto de todo e punha-se ao fresco, mal engolira o jantar, para demorar-se daquele modo?... Ele que nunca fora capaz de semelhantes tonteiras!..."

- Dez horas! Valha-me Nosso Senhor Jesus Cristo!

Foi at� o port�o da estalagem, perguntou a conhecidos que passavam se tinham visto Jer�nimo; ningu�m dava noticias dele. Saiu, correu � esquina da rua; um sil�ncio de cansa�o bocejava naquele resto de domingo; �s dez e meia recolheu-se sobressaltada, com o cora��o a sair-lhe pela garganta, o ouvido alerta, para que ela acudisse ao primeiro toque na porta; deitou-se sem tirar a saia, nem apagar de todo o candeeiro. A ceia frugal de leite fervido e queijo assado com a��car e manteiga ficou intacta sobre a mesa.

N�o conseguiu dormir: trabalhava-lhe a cabe�a, afastando para longe o sono. Come�ou a imaginar perigos, rolos, em que o seu homem recebia novas navalhadas; Firmo figurava em todas as cenas do del�rio; em todas elas havia sangue. Afinal, quando, depois de muito virar de um para outro lado do colch�o, a infeliz ia caindo em modorra, o mais leve rumor l� fora a fazia erguer-se de pulo e correr � r�tula da janela. Mas n�o era o cavouqueiro, da primeira, nem da segunda, nem de nenhuma das vezes.

Quando principiou a chover, Piedade ficou ainda mais aflita; na sua sobreexcita��o afigurava-se-lhe agora que o marido estava sobre as �guas do mar, embarcado, entregue unicamente � prote��o da Virgem, em meio de um temporal medonho. Ajoelhou-se defronte do orat�rio e rezou com a voz emaranhada por uma agonia sufocadora. A cada trov�o redobrava o seu sobressalto. E ela, de joelhos, os olhos fitos na imagem de Nossa Senhora, sem consci�ncia do tempo que corria, arfava solu�ando. De repente, ergueu-se, muito admirada de se ver sozinha, como se s� naquele instante dera pela falta do marido a seu lado. Olhou em torno de si, espavorida, com vontade de chorar, de pedir socorro; as sombras espichadas em volta do candeeiro, tracejando tr�mulas pelas paredes e pelo teto, pareciam querer dizer-lhe alguma coisa misteriosa. Um par de cal�as, dependurado � porta do quarto, com um palet� e um chap�u por cima, representou-lhe de relance o vulto de um enforcado, a mexer com as pernas. Benzeu-se. Quis saber que horas eram e n�o p�de; afigurava-se-lhe terem decorrido j� tr�s dias pelo menos durante aquela afli��o. Calculou que n�o tardaria a amanhecer, se � que ainda amanheceria: se � que aquela noite infernal n�o se fosse prolongando infinitamente, sem nunca mais aparecer o sol! Bebeu um copo d��gua, bem cheio, apesar de haver pouco antes tomado outro, e ficou im�vel, de ouvido atento, na expectativa de escutar as horas de algum rel�gio da vizinhan�a.

A chuva diminu�ra e os ventos principiavam a soprar com desespero. L� de fora a noite dizia-lhe segredos pelo buraco da fechadura e pelas frinchas do telhado e das portas; a cada assobio a m�sera julgava ver surgir um espectro que vinha contar-lhe a morte de Jer�nimo. O desejo impaciente de saber que horas eram punha-a doida: foi � janela, abriu-a; uma rajada �mida entrou na sala, esfuziando, e apagou a luz. Piedade soltou um grito e come�ou a procurar a caixa de f�sforos, aos esbarr�es, sem conseguir reconhecer os objetos que tateava. Esteve a perder os sentidos; afinal achou os f�sforos, acendeu de novo o candeeiro e fechou a janela. Entrara-lhe um pouco de chuva em casa; sentiu a roupa molhada no corpo; tomou um novo copo d��gua; um calafrio de febre percorreu-lhe a espinha, e ela atirou-se para a cama, batendo o queixo, e meteu-se debaixo dos len��is, a tiritar de febre. Veio de novo a modorra, fechou os olhos; mas ergueu-se logo, assentando-se no colch�o; parecia-lhe ter ouvido algu�m falar l� fora, na rua; o calafrio voltou; ela, tr�mula, procurava escutar. Se se n�o enganava, distinguira vozes abafadas, conversando, e as vozes eram de homem; deixou-se ficar � escuta, concheando a m�o atr�s da orelha; depois ouviu baterem, n�o na sua porta, mas l� muito mais para diante, na casa da das Dores, da Rita, ou da Augusta. "Devia ser o Alexandre que voltava do servi�o..." Quis ir ter com ele e pedir-lhe not�cias de Jer�rimo, o calafrio, por�m, obrigou-a a ficar debaixo das cobertas.

�s cinco horas levantou-se de novo com um salto. "J� havia gente l� fora com certeza!..." Ouvira ranger a primeira porta; abriu a janela, mas ainda estava t�o escuro que se n�o distinguia patavina. Era uma pregui�osa madrugada de agosto, nebulosa, �mida; parecia disposta a resistir ao dia. "O senhores! aquela noite dos diachos n�o acabaria nunca mais?..." Entretanto, adivinhava-se que ia amanhecer. Piedade ouviu dentro do p�tio, do lado contr�rio � sua casa, um zunzum de duas vozes cochichando com interesse. "Virgem do c�u! dir-se-ia a voz do seu homem! e a outra era voz de mulher, credo! Ilus�o sua com certeza! ela essa noite estava para ouvir o que n�o se dava..." Mas aqueles cochichos dialogados na escurid�o causavam-lhe extremo alvoro�o. "N�o! Como poderia ser ele?... Que loucura! se o homem estivesse ali teria sem d�vida procurado a casa!..." E os cochichos persistiam, enquanto Piedade, toda ouvidos, estalava de agonia.

- Jeromo! gritou ela.

As vozes calaram-se logo, fazendo o sil�ncio completo: depois nada mais se ouviu.

Piedade ficou � janela. As trevas dissolveram-se afinal; uma claridade triste formou-se no nascente e foi, a pouco e pouco, se derramando pelo espa�o. O c�u era uma argamassa cinzenta e gorda. O corti�o acordava com o remancho

das segundas-feiras; ouviam-se os pigarros das ressacas de parati. As casinhas abriam-se; vultos espregui�ados vinham bocejando fazer a sua lavagem � bica; as chamin�s principiavam a fumegar; recendia o cheiro do caf� torrado.

Piedade atirou um xale em cima dos ombros e saiu ao p�tio; a Machona, que acabava de aparecer � porta do n�mero 7 com um berro para acordar a fam�lia de uma s� vez, gritou-lhe:

- Bons dias, vizinha! Seu marido como vai? melhor?

Piedade soltou um suspiro.

- Ai, n�o mo pergunte, S�ora Leandra!

- Piorou, filha?

- N�o veio esta noite pra casa...

- Olha o demo! Como n�o veio? Onde ficou ele ent�o?

- C� est� quem n�o lho sabe responder.

- Ora j� se viu?!

- Estou com o miolo que � �gua de bacalhau! N�o preguei olho durante a noite! Forte desgra�a a minha!

- Teria a ele lhe sucedido alguma?...

Piedade p�s-se a solu�ar, enxugando as l�grimas no xale de l�; ao passo que a outra, com a sua voz rouca e forte, que nem o som de uma trompa enferrujada, passava adiante a nova de que o Jer�nimo n�o se recolhera aquela noite � estalagem.

- Talvez voltasse pro hospital... obtemperou Augusta, que lavava junto a uma tina a gaiola do seu papagaio.

- Mas ele ontem veio de muda... contrap�s Leandra.

- E l� n�o se entra depois das oito horas da noite, acrescentou outra lavadeira.

E os coment�rios multiplicavam-se, palpitando de todos os lados, numa boa disposi��o para fazer daquilo o esc�ndalo do dia. Piedade respondia friamente �s perguntas curiosas que lhe dirigiam as companheiras; estava triste e sucumbida; n�o se lavou, n�o mudou de roupa, n�o comeu nada, porque a comida lhe crescia na boca e n�o lhe passava da garganta; o que fazia s� era chorar e lamentar-se.

- Forte desgra�a a minha! repetia a infeliz a cada instante.

- Se vais assim, filha, est�s bem arranjada! exclamou-lhe a Machona, chegando � porta de sua casa a dar dentadas num p�o recheado de manteiga. Que diabo, criatura! O homem n�o te morreu, pra estares agora ai a carpir desse modo!

- Sei-o eu l� se me morreu?... disse Piedade entre solu�os. Vi tanta coisa esta noite!...

- Ele te apareceu nos sonhos?... perguntou Leandra com assombro.

- Nos sonhos n�o, que n�o dormi, mas vi a modos que fantasmas...

E chorava.

- Ai, credo, filha!

- Estou desgra�ada!

- Se te apareceram almas, decerto; mas p�e a f� em Deus, mulher! e n�o te rales desse modo, que a desgra�a pode ser maior! O choro puxa muita coisa!

- Ai, o meu rico homem!

E o mugido l�gubre daquela pobre criatura abandonada antepunha � rude agita��o do corti�o uma nota lamentosa e tristonha de uma vaca chamando ao longe, perdida ao cair da noite num lagar desconhecido e agreste. Mas o trabalho aquecia j� de uma ponta � outra da estalagem; ria-se, cantava-se, soltava-se a l�ngua; o formigueiro assanhava-se com as compras para o almo�o; os mercadores entravam e saiam: a m�quina de massas principiava a bufar. E Piedade, assentada � soleira de sua porta, paciente e ululante como um c�o que espera pelo dono, maldizia a hora em que sa�ra da sua terra, e parecia disposta a morrer ali mesmo, naquele limiar de granito, onde ela, tantas vezes, com a cabe�a encostada ao ombro do seu homem, suspirava feliz, ouvindo gemer na guitarra dele os queridos fados de al�m-mar.

E Jer�nimo n�o aparecia.

Ela ergueu-se finalmente, foi l� fora ao capinzal, p�s-se a andar agitada, falando sozinha, a gesticular forte. E nos seus movimentos de desespero, quando levantava para o c�u os punhos fechados, dir-se-ia que n�o era contra o marido que se revoltava, mas sim contra aquela amaldi�oada luz alucinadora, contra aquele sol crapuloso, que fazia ferver o

sangue aos homens e metia-lhes no corpo lux�rias de bode. Parecia rebelar-se contra aquela natureza alcoviteira, que lhe roubara o seu homem para d�-lo a outra, porque a outra era gente do seu peito e ela n�o.

E maldizia solu�ando a hora em que sa�ra da sua terra; essa boa terra cansada, velha como que enferma; essa boa terra tranq�ila, sem sobressaltos nem desvarios de juventude. Sim, l� os campos eram frios e melanc�licos, de um verde alourado e quieto, e n�o ardentes e esmeraldinos e afogados em tanto sol e em tanto perfume como o deste inferno, onde em cada folha que se pisa h� debaixo um r�ptil venenoso, como em cada flor que desabotoa e em cada moscardo que adeja h� um v�rus de lasc�via. L�, nos saudosos campos da sua terra, n�o se ouvia em noites de lua clara roncar a on�a e o maracaj�, nem pela manh�, ao romper do dia, rilhava o bando truculento das queixadas; l� n�o varava pelas florestas a anta feia e terr�vel, quebrando �rvores; l� a sucuruju n�o chocalhava a sua campainha f�nebre, anunciando a morte, nem a coral esperava traidora o viajante descuidado para lhe dar o bote certeiro e decisivo; l� o seu homem n�o seria anavalhado pelo ci�me de um capoeira; l� Jer�nimo seria ainda o mesmo esposo casto, silencioso e meigo; seria o mesmo lavrador triste e contemplativo, como o gado que � tarde levanta para o c�u de opala o seu olhar humilde, compungido e b�blico.

Maldita a hora em que ela veio! Maldita! mil vezes maldita!

E tornando � casa, Piedade ainda mais se enraivecia, porque ali defronte, no n�mero 9, a mulata baiana, a dan�adeira de chorado, a cobra assanhada, cantava alegremente, chegando de vez em quando � janela para vir soprar fora a cinza da fornalha do seu ferro de engomar, olhando de passagem para a direita e para a esquerda, a afetar indiferen�a pelo que n�o era de sua conta, e desaparecendo logo, sem interromper a cantiga, muito embebida no seu servi�o. Ah! essa n�o fez coment�rios sobre o estranho procedimento de mestre Jer�nimo, nem mesmo quis ouvir noticias dele; pouco arredou o p� de dentro de casa e, nesse pouco que saiu, foi �s pressas e sem dar trela a ningu�m.

Nada! que as penas e desgostos n�o punham a panela no fogo!

Entretanto, ah! ah! ela estava bem preocupada. Apesar do al�vio que lhe trouxera ao esp�rito a morte do Firmo e a despeito do seu contentamento de passar por uma vez aos bra�os do cavouqueiro, um sobressalto vago e opressivo esmagava-lhe o cora��o e matava-a de impaci�ncia por atirar-se � procura de noticias sobre as ocorr�ncias da noite; tanto assim que, �s onze horas, mel percebeu que Piedade, depois de esperar em v�o pelo marido, saia aflita em busca dele, disposta a ir ao hospital, � pol�cia, ao necrot�rio, ao diabo, contanto que n�o voltasse sem algum esclarecimento, ela atirou logo o trabalho p�ro canto, enfiou uma saia, cruzou o xale no ombro, e ganhou o mundo, tamb�m disposta a n�o voltar sem saber tintim por tintim o que havia de novo.

Foi cada uma para seu lado e s� voltaram � tarde, quase ao mesmo tempo, encontrando o corti�o cheio j� e assanhado com a noticia da morte do Firmo e do terr�vel efeito que esta causara no "Cabe�a-de-Gato", onde o crime era atribu�do aos carapicus, contra os quais juravam-se extremas vingan�as de desafronta. Soprava de l�, rosnando, um h�lito morno de c�lera malsofrida e sequiosa que crescia com a aproxima��o da noite e parecia sacudir no ar, amea�adoramente, a irrequieta fl�mula amarela.

O sol descambava para o ocaso, indefeso, e nu, tingindo o c�u de uma vermelhid�o pressaga e sinistra.

Piedade entrou carrancuda na estalagem; n�o vinha triste, vinha enfurecida; soubera na rua a respeito do marido mais do que esperava. Soubera em primeiro lugar que ele estava vivo, perfeitamente vivo, pois fora visto aquele mesmo dia, mais de uma vez, no Garnis� e na Praia da Saudade, a vagar macamb�zio; soubera, por interm�dio de um rondante amigo de Alexandre, que Jer�nimo surgira de manh�zinha do capinzal perto da pedreira de Jo�o Rom�o, o que fazia crer viesse ele naquele momento de casa, saindo pelos fundos do corti�o; soubera ainda que o cavouqueiro fora � Ordem buscar a sua caixa de roupa e que, na v�spera, estivera a beber � farta na venda do Pep�, de s�cia com o Z� Carlos e com o Pataca, e que depois seguiram para os lados da praia, todos tr�s mais ou menos no gole. Sem a menor desconfian�a do crime, a desgra�ada ficou convencida de que o marido n�o se recolhera aquela noite � casa, porque ficara em grossa p�ndega com os amigos e que, voltando tarde e b�bedo, dera-lhe para meter-se com a mulata, que o aceitou logo. "Pudera! Pois se havia muito a deslambida n�o queria outra coisa!..." Com esta convic��o inchou-lhe de s�bito por dentro um novelo de ci�mes, e ela correu incontinenti para a estalagem, certa de que iria encontrar o homem e despejaria contra ele aquela tremenda tempestade de ressentimentos e despeitos acumulados, que amea�avam sufoc�-la se n�o rebentassem de vez. Atravessou o corti�o sem dar palavra a ningu�m e foi direito � casa; contava encontr�-la aberta e a sua decep��o foi cruel ao v�-la fechada como a deixara. Pediu a chave � Machona, que, ao entreg�-la, inquiriu sobre Jer�nimo e pespegou-lhe ao mesmo tempo a noticia do assassinato de Firmo.

Com esta nova � que Piedade n�o contava. Ficou l�vida; um pavoroso pressentimento varou-lhe o esp�rito como um raio. Afastou-se logo, com medo de falar, e foi tr�mula e ofegante que abriu a porta e meteu-se no n�mero 35.

Atirou-se a uma cadeira. Estava morta de cansa�o; n�o tinha comido nada esse dia e n�o sentia fome; a cabe�a andava-lhe � roda, as pernas pareciam-lhe de chumbo.

Seria ele?!... interrogou a si pr�pria.

E os racioc�nios come�aram a surdir-lhe em massa, ensarilhados, atropelando-lhe a raz�o. N�o conseguia coorden�-los; entre todas uma id�ia insubordinava-se com mais teima, a perturbar as outras, ficando superior, como

uma carta maior que o resto do baralho: "Se ele matou o Firmo, dormiu na estalagem e n�o veio ter comigo, � porque ent�o deixou-me de feita pela Rita!"

Tentou fugir a semelhante hip�tese; repeliu-a indignada. N�o! n�o era poss�vel que o Jer�nimo, seu marido de tanto tempo, o pai de sua filha, um homem a quem ela nunca dera raz�o de queixa e a quem sempre respeitara e quisera com o mesmo carinho e com a mesma dedica��o, a abandonasse de um momento para outro; e por quem?! por uma n�o-sei-que-diga! um diabo de uma mulata assanhada, que t�o depressa era de Pedro como de Paulo! uma sirigaita, que vivia mais para a folia do que para o trabalho! uma peste, que... N�o! Qual! Era l� poss�vel?! Mas ent�o por que ele n�o viera?... por que n�o vinha?... por que n�o dava noticias suas?... por que fora pela manh� � Ordem buscar a caixa da roupa?...

O Roberto Papa-Defuntos dissera-lhe que o encontrara �s duas da tarde ali perto, ao dobrar da Rua Bambina, e que at� pararam um instante para conversar. Com mais alguns passos chegado � casa! Seria poss�vel, santos do c�u! que o seu homem estivesse disposto a nunca mais tornar para junto dela?

Nisto entrou a outra, acompanhada por um pequeno descal�o. Vinha satisfeita; estivera com Jer�nimo, jantaram juntos, numa casa de pasto; ficara tudo combinado; arranjara-se o ninho. N�o se mudaria logo para n�o dar que falar na estalagem, mas levaria alguma roupa e os objetos mais indispens�veis e que n�o dessem na vista por ocasi�o do transporte. Voltaria no dia seguinte ao corti�o, onde continuaria a trabalhar; � noite iria ter com o novo amante, e, no fim de uma semana - z�s! fazia-se a mudan�a completa, e adeus cora��o! - Por aqui � o caminho! O cavouqueiro, pelo seu lado, mandaria uma carta a Jo�o Rom�o, despedindo-se do seu servi�o, e outra � mulher, dizendo com boas palavras que, por uma dessas fatalidades de que nenhuma criatura est� livre, deixava de viver em companhia dela, mas que lhe conservaria a mesma estima e continuaria a pagar o col�gio da filha; e, feito isto, pronto! entraria em vida nova, senhor da sua mulata, livres e sozinhos, independentes, vivendo um para o outro, numa eterna embriaguez de gozos.

Mas, na ocasi�o em que a baiana, seguida pelo pequeno, passava defronte da porta de Piedade, esta deu um salto da cadeira e gritou-lhe:

- Faz favor?

- Que �? resmungou Rita, parando sem voltar sen�o o rosto, e j� a dizer no seu todo de impaci�ncia que n�o estava disposta a muita conversa.

- Diga-me uma coisa, inquiriu aquela; voc� muda-se?

A mulata n�o contava com semelhante pergunta, assim � queima-roupa; ficou calada sem achar o que responder.

- Muda-se, n�o � verdade? insistiu a outra, fazendo-se vermelha.

- E o que tem voc� com isso? Mude-me ou n�o, n�o lhe tenho de dar satisfa��es! Meta-se com a sua vida! Ora esta!

- Com a minha vida � que te meteste tu, cigana! exclamou a portuguesa, sem se conter e avan�ando para a porta com �mpeto.

- Hein?! Repete, cutruca ordin�ria! berrou a mulata, dando um passo em frente.

- Pensas que j� n�o sei de tudo? Maleficiaste-me o homem e agora carregas-me com ele! Que a m� coisa te saiba, cabra do inferno! Mas deixa estar que h�s de amargar o que o diabo n�o quis! quem to jura sou eu!

- Pula c� pra fora, perua choca, se �s capaz!

Em torno de Rita j� o povar�u se reunia alvoro�ado; as lavadeiras deixaram logo as tinas e vinham, com os bra�os nus, cheios de espuma de sab�o, estacionar ali ao p�, formando roda, silenciosas, sem nenhuma delas querer meter-se no barulho. Os homens riam e atiravam chufas �s duas contendoras, como sucedia sempre quando no corti�o qualquer mulher se disputava com outra.

- Isca! Isca! gritavam eles.

Ao desafio da mulata, Piedade saltara ao p�tio, armada com um dos seus tamancos. Uma pedrada recebeu-a em caminho, rachando-lhe a pele do queixo, ao que ela respondeu desfechando contra a advers�ria uma formid�vel pancada na cabe�a.

E pegaram-se logo a unhas e dentes.

Por algum tempo lutaram de p�, engalfinhadas, no meio de grande algazarra dos circunstantes. Jo�o Rom�o acudiu e quis separ�-las; todos protestaram. A fam�lia do Miranda assomou � janela, tomando ainda o caf� de depois do jantar, indiferente, j� habituada �quelas cenas. Dois partidos todavia se formavam em torno das lutadoras; quase todos os brasileiros eram pela Rita e quase todos os portugueses pela outra. Discutia-se com febre a superioridade de cada qual delas; rebentavam gritos de entusiasmo a cada mossa que qualquer das duas recebia; e estas, sem se desunharem, tinham j� arranh�es e mordeduras por todo o busto.

Quando menos se esperava, ouviu-se um baque pesado e viu-se Piedade de bru�os no ch�o e a Rita por cima, escarranchada sobre as suas largas ancas, a socar-lhe o cacha�o de murros cont�nuos, desgrenhada, rota, ofegante, os cabelos caldos sobre a cara, gritando vitoriosa, com a boca correndo sangue:

- Toma pro teu tabaco! Toma, galinha podre! Toma, pra n�o te meteres comigo! Toma! Toma, baiacu da praia!

Os portugueses precipitaram-se para tirar Piedade de debaixo da mulata. Os brasileiros opuseram-se ferozmente.

- N�o pode!

- Enche!

- N�o deixa!

- N�o tira!

- Entra! Entra!

E as palavras "galego" e "cabra" cruzaram-se de todos os pontos, como bofetadas. Houve um vavau r�pido e surdo, e logo em seguida um formid�vel rolo, um rolo a valer, n�o mais de duas mulheres, mas de uns quarenta e tantos homens de pulso, rebentou como um terremoto. As cercas e os jiraus desapareceram do ch�o e estilha�aram-se no ar, estalando em descarga; ao passo que numa berraria infernal, num fecha-fecha de formigueiro em guerra, aquela onda viva ia arrastando o que topava no caminho; barracas e tinas, baldes, regadores e caix�es de planta, tudo rolava entre aquela centena de pernas confundidas e doidas. Das janelas do Miranda apitava-se com f�ria; da rua, em todo o quarteir�o, novos apitos respondiam; dos fundos do corti�o e pela frente surgia povo e mais povo. O p�tio estava quase cheio; ningu�m mais se entendia; todos davam e todos apanhavam; mulheres e crian�as berravam. Jo�o Rom�o, clamando furioso, sentia-se impotente para conter semelhantes dem�nios. "Fazer rolo aquela hora, que imprud�ncia!" N�o conseguiu fechar as portas da venda, nem o port�o da estalagem; guardou �s pressas na barra o que havia em dinheiro na gaveta, e, armando-se com uma tranca de ferro, p�s-se de sentinela �s prateleiras, disposto a abrir o casco ao primeiro que se animasse a saltar-lhe o balc�o. Bertoleza, l� dentro na cozinha, aprontava uma grande chaleira de �gua quente, para defender com ela a propriedade do seu homem. E o rolo a ferver l� fora, cada vez mais inflamado com um terr�vel sopro de rivalidade nacional. Ouviam-se, num clamor de pragas e gemidos, vivas a Portugal e vivas ao Brasil. De vez em quando, o povar�u, que continuava a crescer, afastava-se em massa, rugindo de medo, mas tornava logo, como a onda no refluxo dos mares. A pol�cia apareceu e n�o se achou com animo de entrar, antes de vir um refor�o de pra�as, que um permanente fora buscar a galope.

E o rolo fervia.

Mas, no melhor da lata, ouvia-se na rua um coro de vozes que se aproximavam das bandas do "Cabe�a-de-Gato". Era o canto de guerra dos capoeiras do outro corti�o, que vinham dar batalha aos carapicus, pra vingar com sangue a morte de Firmo, seu chefe de malta.

XVII

Mal os carapicus sentiram a aproxima��o dos rivais, um grito de alarma ecoou por toda a estalagem e o rolo dissolveu-se de improviso, sem que a desordem cessasse. Cada qual correu � casa, rapidamente, em busca do ferro, do pau e de tudo que servisse para resistir e para matar. Um s� impulso os impelia a todos; j� n�o havia ali brasileiros e portugueses, havia um s� partido que ia ser atacado pelo partido contr�rio; os que se batiam ainda h� pouco emprestavam armas uns aos outros, limpando com as costas das m�os o sangue das feridas. Agostinho, encostado ao lampi�o do meio do corti�o, cantava em altos berros uma coisa que lhe parecia responder � m�sica b�rbara que entoavam l� fora os inimigos; a m�e dera-lhe licen�a, a pedido dele, para p�r um cinto de Nenen, em que o pequeno enfiou a faca da cozinha. Um mulatinho franzino, que at� ai n�o fora notado por ningu�m no S�o Rom�o, postou-se defronte da entrada, de m�os limpas, � espera dos invasores; e todos tiveram confian�a nele porque o ladr�o, al�m de tudo, estava rindo.

Os cabe�as-de-gato assomaram afinal ao port�o. Uns cem homens, em que se n�o via a arma que traziam. Porfiro vinha na frente, a dan�ar, de bra�os abertos, bamboleando o corpo e dando rasteiras para que ningu�m lhe estorvasse a entrada. Trazia o chap�u � r�, com um la�o de fita amarela flutuando na copa.

- Ag�enta! Ag�enta! Faz frente! clamavam de dentro os carapicus.

E os outros, cantando o seu hino de guerra, entraram e aproximaram-se lentamente, a dan�ar como selvagens.

As navalhas traziam-nas abertas e escondidas na palma da m�o.

Os carapicus enchiam a metade do corti�o. Um sil�ncio arquejado sucedia � estrepitosa vozeria do rolo que findara. Sentia-se o hausto impaciente da ferocidade que atirava aqueles dois bandos de capoeiras um contra o outro. E, no entanto, o sol, �nico causador de tudo aquilo, desaparecia de todo nos limbos do horizonte, indiferente, deixando atr�s de si as melancolias do crep�sculo, que � a saudade da terra quando ele se ausenta, levando consigo a alegria da luz e do calor.

L� na janela do Bar�o, o Botelho, entusiasmado como sempre por tudo que lhe cheirava a guerra, soltava gritos de aplauso e dava brados de comando militar.

E os cabe�as-de-gato aproximavam-se cantando, a dan�ar, rastejando alguns de costas para o ch�o, firmados nos pulsos e nos calcanhares.

Dez carapicus sa�ram em frente; dez cabe�as-de-gato se alinharam defronte deles.

E a batalha principiou, n�o mais desordenada e cega, por�m com m�todo, sob o comando de Porfiro que, sempre a cantar ou assoviar, saltava em todas as dire��es, sem nunca ser alcan�ado por ningu�m.

Desferiram-se navalhas contra navalhas, jogaram-se as cabe�adas e os voa-p�s. Par a par, todos os capoeiras tinham pela frente um advers�rio de igual destreza que respondia a cada investida com um salto de gato ou uma queda repentina que anulava o golpe. De parte a parte esperavam que o cansa�o desequilibrasse as for�as, abrindo furo � vit�ria; mas um fato veio neutralizar inda uma vez a campanha: imenso rebent�o de fogo esgargalhava-se de uma das casas do fundo, o n�mero 88. E agora o inc�ndio era a valer.

Houve nas duas maltas um s�bito espasmo de terror. Abaixaram-se os ferros e calou-se o hino de morte. Um clar�o tremendo ensang�entou o ar, que se fechou logo de fuma�a fulva.

A Bruxa conseguira afinal realizar o seu sonho de louca: o corti�o ia arder; n�o haveria meio de reprimir aquele cruento devorar de labaredas. Os cabe�as-de-gato, leais nas suas justas de partido, abandonaram o campo, sem voltar o rosto, desdenhosos de aceitar o auxilio de um sinistro e dispostos at� a socorrer o inimigo, se assim fosse preciso. E nenhum dos carapicus os feriu pelas costas. A luta ficava para outra ocasi�o. E a cena transformou-se num relance; os mesmos que barateavam t�o facilmente a vida, apressavam-se agora a salvar os miser�veis bens que possu�am sobre a terra. Fechou-se um entra-e-sai de maribondos defronte daquelas cem casinhas amea�adas pelo fogo. Homens e mulheres corriam de c� para l� com os tarecos ao ombro, numa balb�rdia de doidos. O p�tio e a rua enchiam-se agora de camas velhas e colch�es espocados. Ningu�m se conhecia naquela zumba de gritos sem nexo, e choro de crian�as esmagadas, e pragas arrancadas pela dor e pelo desespero. Da casa do Bar�o saiam clamores apopl�ticos; ouviam-se os guinchos de Zulmira que se espolinhava com um ataque. E come�ou a aparecer �gua. Quem a trouxe? Ningu�m sabia diz�-lo; mas viam-se baldes e baldes que se despejavam sobre as chamas.

Os sinos da vizinhan�a come�aram a badalar.

E tudo era um clamor.

A Bruxa surgiu � janela da sua casa, como � boca de uma fornalha acesa. Estava horr�vel; nunca fora t�o bruxa. O seu moreno trigueiro, de cabocla velha, reluzia que nem metal em brasa; a sua crina preta, desgrenhada, escorrida e abundante como as das �guas selvagens, dava-lhe um car�ter fant�stico de f�ria sa�da do inferno. E ela ria-se, �bria de

satisfa��o, sem sentir as queimaduras e as feridas, vitoriosa no meio daquela orgia de fogo, com que ultimamente vivia a sonhar em segredo a sua alma extravagante de maluca.

Ia atirar-se c� para fora, quando se ouviu estalar o madeiramento da casa incendiada, que abateu rapidamente, sepultando a louca num mont�o de brasas.

Os sinos continuavam a badalar aflitos. Surgiam aguadeiros com as suas pipas em carro�a, alvoro�ados, fazendo cada qual maior empenho em chegar antes dos outros e apanhar os dez mil-r�is da gratifica��o. A pol�cia defendia a passagem ao povo que queria entrar. A rua l� fora estava j� atravancada com o despojo de quase toda a estalagem. E as labaredas iam galopando desembestadas para a direita e para a esquerda do n�mero 88. Um papagaio, esquecido � parede de uma das casinhas e preso � gaiola, gritava furioso, como se pedisse socorro.

Dentro de meia hora o corti�o tinha de ficar em cinzas. Mas um fragor de repiques de campainhas e estridente silvar de v�lvulas encheu de s�bito todo o quarteir�o, anunciando que chegava o corpo dos bombeiros.

E logo em seguida apontaram carros � desfilada, e um bando de dem�nios de blusa clara, armados uns de archotes e outros de escadilhas de ferro, apoderaram-se do sinistro, dominando-o incontinenti, como uma expedi��o m�gica, sem uma palavra, sem hesita��es e sem atropelos. A um s� tempo viram-se fartas mangas d��gua chicoteando o fogo por todos os lados; enquanto, sem se saber como, homens, mais �geis que macacos, escalavam os telhados abrasados por escadas que mal se distinguiam; e outros invadiam o cora��o vermelho do inc�ndio, a dardejar duchas em torno de si, rodando, saltando, piruetando, at� estrangularem as chamas que se atiravam ferozes para cima deles, como dentro de um inferno; ao passo que outros, c� de fora, imperturb�veis, com uma limpeza de m�quina moderna, fuzilavam de �gua toda a estalagem, n�mero por n�mero, resolvidos a n�o deixar uma s� telha enxuta.

O povo aplaudia-os entusiasmado, j� esquecido do desastre e s� aten��o para aquele duelo contra o inc�ndio. Quando um bombeiro, de cima do telhado, conseguiu sufocar uma ninhada de labaredas, que surgia defronte dele, rebentou c� debaixo uma roda de palmas, e o her�i voltou-se para a multid�o, sorrindo e agradecendo.

Algumas mulheres atiravam-lhe beijos, entre brados de ova��o.

XVIII

Por esse tempo, o amigo de Bertoleza, notando que o velho Lib�rio, depois de escapar de morrer na confus�o do inc�ndio, fugia agoniado para o seu esconderijo, seguiu-o com disfarce e observou que o miser�vel, mal deu luz � candeia, come�ou a tirar ofegante alguma coisa do seu colch�o imundo.

Eram garrafas. Tirou a primeira, a segunda, meia d�zia delas. Depois puxou �s pressas a coberta do catre e fez uma trouxa. Ia de novo ganhar a sa�da, mas soltou um gemido surdo e caiu no ch�o sem for�a, arrevessando uma golfada de sangue e cingindo contra o peito o misterioso embrulho.

Jo�o Rom�o apareceu, e ele, assim que o viu, redobrou de afli��o e torceu-se todo sobre as garrafas, defendendo-as com o corpo inteiro, a olhar aterrado e de esguelha para o seu interventor, como se dera cara a cara com um bandido. E, a cada passo que o vendeiro adiantava, o tremor e o sobressalto do velho recresciam, tirando-lhe da garganta grunhidos roucos de animal batido e assustado. Duas vezes tentou erguer-se; duas vezes rolou por terra moribundo. Jo�o Rom�o objurgou-lhe que qualquer demora ali seria morte certa: o inc�ndio avan�ava. Quis ajud�-lo a carregar o fardo. Lib�rio, por �nica resposta, arrega�ou os bei�os, mostrando as gengivas sem dentes e tentando morder a m�o que o vendeiro estendia j� sobre as garrafas.

Mas, l� de cima, a ponta de uma l�ngua; de fogo varou o teto e iluminou de vermelho a miser�vel pocilga. Lib�rio tentou ainda um esfor�o supremo, e nada p�de, come�ando a tremer da cabe�a aos p�s, a tremer, a tremer, grudando-se cada vez mais � sua trouxa, e j� estrebuchava, quando o vendeiro lha arrancou das garras com viol�ncia. Tamb�m era tempo, porque, depois de insinuar a l�ngua; o fogo mostrou a boca e escancarou afinal a goela devoradora.

O tratante fugiu de carreira, abra�ado � sua presa, enquanto o velho, sem conseguir p�r-se de p�, rastreava na pista dele, dificultosamente, estrangulado de desespero senil, j� sem fala, rosnando uns vagidos de morte, os olhos turvos, todo ele roxo, os dedos enri�ados como as unhas de abutre ferido.

Jo�o Rom�o atravessou o p�tio de carreira e meteu-se na sua toca para esconder o furto. Ao primeiro exame, de relance, reconheceu logo que era dinheiro em papel o que havia nas garrafas. Enterrou a trouxa na prateleira de um arm�rio velho cheio de frascos e voltou l� fora para acompanhar o servi�o dos bombeiros.

� meia-noite estava j� completamente extinto o fogo e quatro sentinelas rondavam a ru�na das trinta e tantas casinhas que arderam. O vendeiro s� p�de voltar � trouxa das garrafas �s cinco horas da manh�, quando Bertoleza, que fizera prod�gios contra o inc�ndio, passava pelo sono, encostada na cama, com a saia ainda encharcada de �gua, o corpo cheio de pequenas queimaduras. Verificou que as garrafas eram oito e estavam cheias at� � boca de notas de todos os valores, que ai foram metidas, uma a uma, depois de cuidadosamente enroladas e dobradas � moda de bilhetes de rifa. Receoso, por�m, de que a crioula n�o estivesse bem adormecida e desse pela coisa, Jo�o Rom�o resolveu adiar para mais tarde a contagem do dinheiro e guardou o tesouro noutro lugar mais seguro.

No dia seguinte a pol�cia averiguou os destro�os do inc�ndio e mandou proceder logo ao desentulho, para retirar os cad�veres que houvesse.

Rita desaparecera da estalagem durante a confus�o da noite; Piedade ca�ra de cama, com um febr�o de quarenta graus; a Machona tinha uma orelha rachada e um p� torcido; a das Dores a cabe�a partida; o Bruno levara uma navalhada na coxa; dois trabalhadores da pedreira estavam gravemente feridos; um italiano perdera dois dentes da frente, e uma filhinha da Augusta Carne-Mole morrera esmagada pelo povo. E todos, todos se queixavam de danos recebidos e revoltaram-se contra os rigores da sorte. O dia passou-se inteiro na computa��o dos preju�zos e a dar-se balan�o no que se salvara do inc�ndio. Sentia-se um fartum aborrecido de estorrilho e cinza molhada. Um duro sil�ncio de desconsolo embrutecia aquela pobre gente. Vultos sombrios, de m�os cruzadas atr�s, permaneciam horas esquecidas, a olhar im�veis os esqueletos carbonizados e ainda �midos das casinhas queimadas. Os cad�veres da Bruxa e do Lib�rio foram carregados para o meio do p�tio, disformes, horrorosos, e jaziam entre duas velas acesas, ao relento, � espera do carro da Miseric�rdia. Entrava gente da rua para os ver; descobriam-se defronte deles, e alguns curiosos lan�avam piedosamente uma moeda de cobre no prato que, aos p�s dos dois defuntos, recebia a esmola para a mortalha. Em casa de Augusta, sobre uma mesa coberta por uma cerimoniosa toalha de rendas, estava o cadaverzinho da filha morta, todo enfeitado de flores, com um Cristo de lat�o � cabeceira e dois c�rios que ardiam tristemente. Alexandre, assentado a um canto da sala, com o rosto escondido nas m�os, chorava, aguardando o p�same das visitas; fardara-se, s� para isso, com o seu melhor uniforme, coitado!

O enterro da pequenita foi feito � custa de L�onie, que apareceu �s tr�s da tarde, vestida de cetineta cor de creme, num carrinho dirigido por um cocheiro de cal��o de flanela branca e libr� agaloada de ouro.

O Miranda apresentou-se na estalagem logo pela manh�, o ar compungido, por�m superior. Deu um ligeiro abra�o em Jo�o Rom�o, falou-lhe em voz baixa, lamentando aquela cat�strofe, mas felicitou-o porque tudo estava no seguro.

O vendeiro, com efeito, impressionado com a primeira tentativa de inc�ndio, tratara de segurar todas as suas propriedades; e, com tamanha inspira��o o fez que, agora, em vez de lhe trazer o fogo preju�zo, at� lhe deixaria lucros.

- Ah, ah, meu caro! Cautela e caldo de galinha nunca fizeram mal a doente!... segredou o dono do corti�o, a rir. Olhe, aqueles � que com certeza n�o gostaram da brincadeira! acrescentou, apontando para o lado em que maior era o grupo dos infelizes que tomavam conta dos restos de seus tarecos atirados em mont�o.

- Ah, mas esses, que diabo! nada t�m que perder!... considerou o outro.

E os dois vizinhos foram at� o fim do p�tio, conversando em voz baixa.

- Vou reedificar tudo isto! declarou Jo�o Rom�o, com um gesto en�rgico que abrangia toda aquela Babil�nia desmantelada.

E exp�s o seu projeto: tencionava alargar a estalagem, entrando um pouco pelo capinzal. Levantaria do lado esquerdo, encostado ao muro do Miranda, um novo correr de casinhas, aproveitando assim parte do p�tio, que n�o precisava ser t�o grande; sobre as outras levantaria um segundo andar, com uma longa varanda na frente toda gradeada. Negociozinho para ter ali, a dar dinheiro, em vez de um centena de c�modos, nada menos de quatrocentos a quinhentos, de doze a vinte e cinco mil-r�is cada um!

Ah! ele havia de mostrar como se fazem as coisas bem feitas.

O Miranda escutava-o calado, fitando-o com respeito.

- Voc� � um homem dos diabos! disse afinal, batendo-lhe no ombro.

E, ao sair de l�, no seu cora��o vulgar de homem que nunca produziu e levou a vida, como todo o mercador, a explorar a boa-f� de uns e o trabalho intelectual de outros, trazia uma grande admira��o pelo vizinho. O que ainda lhe restava da primitiva inveja transformou-se nesse instante num entusiasmo ilimitado e cego.

- � um filho da m�e! resmungava ele pela rua, em caminho do seu armaz�m. � de muita for�a! Pena � estar metido com a peste daquela crioula! Nem sei como um homem t�o esperto caiu em semelhante asneira!

S� l� pelas dez e tanto da noite foi que Jo�o Rom�o, depois de certificar-se de que Bertoleza ferrara num sono de pedra, resolveu dar balan�o �s garrafas de Lib�rio. O diabo � que ele tamb�m quase que n�o se ag�entava nas pernas e sentia os olhos a fecharem-se-lhe de cansa�o. Mas n�o podia sossegar sem saber quanto ao certo apanhara do avarento.

Acendeu uma vela, foi buscar a imunda e preciosa trouxa, e carregou com esta para a casa de pasto ao lado da cozinha.

Dep�s tudo sobre uma das mesas, assentou-se, e principiou a tarefa. Tomou a primeira garrafa, tentou despej�-la, batendo-lhe no fundo; foi-lhe, por�m, necess�rio extrair as notas, uma por uma, porque estavam muito socadas e peganhentas de bolor. � propor��o que as fisgava, ia logo as desenrolando e estendendo cuidadosamente em ma�o, depois de secar-lhes a umidade no calor das m�os e da vela. E o prazer que ele desfrutava neste servi�o punha-lhe em jogo todos os sentidos e afugentava-lhe o sono e as fadigas. Mas, ao passar � segunda garrafa, sofreu uma dolorosa decep��o: quase todas as c�dulas estavam j� prescritas pelo Tesouro; veio-lhe ent�o o receio de que a melhor parte do bolo se achasse inutilizada: restava-lhe todavia a esperan�a de que fosse aquela garrafa a mais antiga de todas e a pior por conseguinte.

E continuou com mais ardor o seu delicioso trabalho.

Tinha j� esvaziado seis, quando notou que a vela, consumida at� o fim, bruxuleava a extinguir-se; foi buscar outra nova e viu ao mesmo tempo que horas eram. "Oh! como a noite correra depressa!..." Tr�s e meia da madrugada. "Parecia imposs�vel!" "

Ao terminar a contagem, as primeiras carro�as passavam l� fora na rua.

- Quinze contos, quatrocentos e tantos mil-r�is!... disse Jo�o Rom�o entre dentes, sem se fartar de olhar para as pilhas de c�dulas que tinha defronte dos olhos.

Mais oito contos e seiscentos eram em notas j� prescritas. E o vendeiro, � vista de t�o bela soma, assim t�o estupidamente comprometida, sentiu a indigna��o de um roubado. Amaldi�oou aquele maldito velho Lib�rio por tamanho relaxamento; amaldi�oou o governo porque limitava, com inten��es velhacas, o prazo da circula��o dos seus t�tulos; chegou at� a sentir remorsos por n�o se ter apoderado do tesouro do avarento, logo que este, um dos primeiros moradores do corti�o, lhe apareceu com o colch�o �s costas, a pedir chorando que lhe dessem de esmola um cantinho onde ele se metesse com sua mis�ria. Jo�o Rom�o tivera sempre uma vidente cobi�a sobre aquele dinheiro engarrafado; fariscara-o desde que fitou de perto os olhinhos vivos e redondos do abutre decr�pito, e convenceu-se de todo, notando que o miser�vel dava pronto sumi�o a qualquer moedinha que lhe caia nas garras.

- Seria um ato de justi�a! concluiu Jo�o Rom�o; pelo menos seria impedir que todo este pobre dinheiro apodrecesse t�o barbaramente!

Ora adeus! mas sete ricos continhos quase inteiros ficavam-lhe nas unhas. "E depois, que diabo! os outros assim mesmo haviam de ir com jeito... Hoje impingiam-se dois mil-r�is, amanh� cinco. N�o nas compras, mas nos trocos...

Por que n�o? Algu�m reclamaria, mas muitos engoliriam a bucha... Para isso n�o faltavam estrangeiros e caipiras!... E demais, n�o era crime!... Sim! se havia nisso ladroeira, queixassem-se do governo! o governo � que era o ladr�o!"

- Em todo caso, rematou ele, guardando o dinheiro bom e mau e dispondo-se a descansar; isto j� serve para principiar as obras! Deixem estar, que daqui a dias eu lhes mostrarei para quanto presto!

XIX

Da� a dias, com efeito, a estalagem metia-se em obras. � desordem do desentulho do inc�ndio sucedia a do trabalho dos pedreiros; martelava-se ali de pela manh� at� � noite, o que ali�s n�o impedia que as lavadeiras continuassem a bater roupa e as engomadeiras reunissem ao barulho das ferramentas o choroso falsete das suas eternas cantigas.

Os que ficaram sem casa foram aboletados a trouxe e mouxe por todos os cantos, � espera dos novos c�modos. Ningu�m se mudou para o "Cabe�a-de-Gato".

As obras principiaram pelo lado esquerdo do corti�o, o lado do Miranda; os antigos moradores tinham prefer�ncia e vantagens nos pre�os. Um dos italianos feridos morreu na Miseric�rdia e o outro, tamb�m l�, continuava ainda em risco de vida. Bruno recolhera-se � Ordem de que era irm�o, e Leoc�dia, que n�o quis atender �quela carta escrita por Pombinha, resolveu-se a ir visitar o seu homem no hospital. Que alegr�o para o infeliz a volta da mulher, aquela mulher levada dos diabos, mas de carne dura, a quem ele, apesar de tudo, queria muito. Com a visita reconciliaram-se, chorando ambos, e Leoc�dia decidiu tornar para o S�o Rom�o e viver de novo com o marido. Agora fazia-se muito s�ria e amea�ava com pancada a quem lhe propunha brejeirices.

Piedade, essa e que se levantou das febres completamente transformada. N�o parecia a mesma depois do abandono de Jer�nimo; emagrecera em extremo, perdera as cores do rosto, ficara feia, triste e resmungona; mas n�o se queixava, e ningu�m lhe ouvia falar no nome do esposo.

Esses meses, durante as obras, foram uma �poca especial para a estalagem. O corti�o n�o dava id�ia do seu antigo car�ter, t�o acentuado e, no entanto, t�o misto: aquilo agora parecia uma grande oficina improvisada, um arsenal, em cujo fragor a gente s� se entende por sinais. As lavadeiras fugiram para o capinzal dos fundos, porque o p� da terra e da madeira sujava-lhes a roupa lavada. Mas, dentro de pouco tempo, estava tudo pronto; e, com imenso pasmo, viram que a venda, a sebosa bodega, onde Jo�o Rom�o se fez gente, ia tamb�m entrar em obras. O vendeiro resolvera aproveitar dela somente algumas das paredes, que eram de um metro de largura, talhadas � portuguesa; abriria as portas em arco, suspenderia o teto e levantaria um sobrado, mais alto que o do Miranda e, com toda a certeza, mais vistoso. Pr�dio para meter o do outro no chinelo; quatro janelas de frente, oito de lado, com um terra�o ao fundo. O lugar em que ele dormia com Bertoleza, a cozinha e a casa de pasto seriam abobadadas, formando, com a parte de taverna, um grande armaz�m, em que o seu com�rcio iria fortalecer-se e alargar-se.

O Bar�o e o Botelho apareciam por l� quase todos os dias, ambos muito interessados pela prosperidade do vizinho; examinavam os materiais escolhidos para a constru��o, batiam com a biqueira do chap�u de sol no pinho-de-riga destinado ao assoalho, e afetando-se bons entendedores, tomavam na palma da m�o e esfarelavam entre os dedos um punhado da terra e da cal com que os oper�rios faziam barro. �s vezes chegavam a ralhar com os trabalhadores, quando lhes parecia que n�o iam bem no servi�o! Jo�o Rom�o, agora sempre de palet�, engravatado, cal�as brancas, colete e corrente de rel�gio, j� n�o parava na venda, e s� acompanhava as obras na folga das ocupa��es da rua. Principiava a tomar tino no jogo da Bolsa; comia em hot�is caros e bebia cerveja em larga camaradagem com capitalistas nos caf�s do com�rcio.

E a crioula? Como havia de ser?

Era isto justamente o que, tanto o Bar�o como o Botelho, morriam por que lhe dissessem. Sim, porque aquela boa casa que se estava fazendo, e os ricos m�veis encomendados, e mais as pratas e as porcelanas que haviam de vir, n�o seriam decerto para os bei�os da negra velha! Conserv�-la-ia como criada? Imposs�vel! Todo Botafogo sabia que eles at� ai fizeram vida comum!

Todavia, tanto o Miranda, como o outro, n�o se animavam a abrir o bico a esse respeito com o vizinho e contentavam-se em boquejar entre si misteriosamente, palpitando ambos por ver a sa�da que o vendeiro acharia para semelhante situa��o.

Maldita preta dos diabos! Era ela o �nico defeito, o sen�o de um homem t�o importante e t�o digno.

Agora, n�o se passava um domingo sem que o amigo de Bertoleza fosse jantar � casa do Miranda. Iam juntos ao teatro. Jo�o Rom�o dava o bra�o � Zulmira, e, procurando galante�-la e mais ao resto da fam�lia, desfazia-se em obs�quios brutais e dispendiosos, com uma franqueza exagerada que n�o olhava gastos. Se tinham de tomar alguma coisa, ele fazia vir logo tr�s, quatro garrafas ao mesmo tempo, pedindo sempre o triplo do necess�rio e acumulando compras in�teis de doces, flores e tudo o que aparecia. Nos leil�es das festas de arraial era t�o feroz a sua febre de obsequiar a gente do Miranda, que nunca voltava para casa sem um homem atr�s, carregado com os mimos que o vendeiro arrematava.

E Bertoleza bem que compreendia tudo isso e bem que estranhava a transforma��o do amigo. Ele ultimamente mal se chegava para ela e, quando o fazia, era com tal repugn�ncia, que antes n�o o fizesse. A desgra�ada muita vez sentia-lhe cheiro de outras mulheres, perfumes de cocotes estrangeiras e chorava em segredo, sem animo de reclamar os seus direitos. Na sua obscura condi��o de animal de trabalho, j� n�o era amor o que a m�sera desejava, era somente

confian�a no amparo da sua velhice quando de todo lhe faltassem as for�as para ganhar a vida. E contentava-se em suspirar no meio de grandes sil�ncios durante o servi�o de todo o dia, covarde e resignada, como seus pais que a deixaram nascer e crescer no cativeiro. Escondia-se de todos, mesmo da gentalha do frege e da estalagem, envergonhada de si pr�pria, amaldi�oando-se por ser quem era, triste de sentir-se a mancha negra, a indecorosa n�doa daquela prosperidade brilhante e clara.

E, no entanto, adorava o amigo, tinha por ele o fanatismo irracional das caboclas do Amazonas pelo branco a que se escravizam, dessas que morrem de ci�mes, mas que tamb�m s�o capazes de matar-se para poupar ao seu �dolo a vergonha do seu amor. O que custava aquele homem consentir que ela, uma vez por outra, se chegasse para junto dele? Todo o dono, nos momentos de bom humor, afaga o seu c�o... Mas qual! o destino de Bertoleza fazia-se cada vez mais estrito e mais sombrio; pouco a pouco deixara totalmente de ser a amante do vendeiro, para ficar sendo s� uma sua escrava. Como sempre, era a primeira a erguer-se e a ultima a deitar-se; de manh� escamando peixe, � noite vendendo-o � porta, para descansar da trabalheira grossa das horas de sol; sempre sem domingo nem dia santo, sem tempo para cuidar de si, feia, gasta, imunda, repugnante, com o cora��o eternamente emprenhado de desgostos que nunca vinham � luz. Afinal, convencendo-se de que ela, sem ter ainda morrido, j� n�o vivia para ningu�m, nem tampouco para si, desabou num fundo entorpecimento ap�tico, estagnado como um charco podre que causa nojo. Fizera-se �spera, desconfiada, sobrolho carrancudo, uma linha dura de um canto ao outro da boca. E durante dias inteiros, sem interromper o servi�o, que ela fazia agora automaticamente, por um h�bito de muitos anos, gesticulava e mexia com os l�bios, monologando sem pronunciar as palavras. Parecia indiferente a tudo, a tudo que a cercava.

N�o obstante, certo dia em que Jo�o Rom�o conversou muito com Botelho, as l�grimas saltaram dos olhos da infeliz, e ela teve de abandonar a obriga��o, porque o pranto e os solu�os n�o lhe deixavam fazer nada.

Botelho havia dito ao vendeiro:

- Fa�a o pedido! � ocasi�o.

- Hein?

- Pode pedir a m�o da pequena. Est� tudo pronto!

- O Bar�o d�-ma?

- D�.

- Tem certeza disso?

- Ora! se n�o tivesse n�o lho diria deste modo!

- Ele prometeu?

- Falei-lhe; fiz-lhe o pedido em seu nome. Disse que estava autorizado por voc�. Fiz mal?

- Mal? Fez muito bem. Creio at� que n�o � preciso mais nada!

- N�o, se o Miranda n�o vier logo ao seu encontro � bom voc� lhe falar, compreende?

- Ou escrever.

- Tamb�m!

- E a menina?

- Respondo por ela. Voc� n�o tem continuado a receber as flores?

- Tenho.

- Pois ent�o n�o deixe pelo seu lado de ir mandando tamb�m as suas e fa�a o que lhe disse. Atire-se, seu Jo�o, atire-se enquanto o angu est� quente!

Por outro lado, Jer�nimo empregara-se na pedreira de S�o Diogo, onde trabalhava dantes, e morava agora com a Rita numa estalagem da Cidade Nova.

Tiveram de fazer muita despesa para se instalarem; foi-lhes preciso comprar de novo todos os arranjos de casa, porque do S�o Rom�o Jer�nimo s� levou dinheiro, dinheiro que ele j� n�o sabia poupar. Com o asseio da mulata a sua casinha ficou, todavia, que era um regalo; tinham cortinado na cama, len��is de linho, fronhas de renda, muita roupa branca, para mudar todos os dias, toalhas de mesa, guardanapos; comiam em pratos de porcelana e usavam sabonetes finos. Plantaram � porta uma trepadeira que subia para o telhado, abrindo pela manh� flores escarlates, de que as abelhas gostavam muito; penduraram gaiolas de passarinho na sala de jantar; sortiram a despensa de tudo que mais gostavam; compraram galinhas e marrecos e fizeram um banheiro s� para eles, porque o da estalagem repugnou � baiana que, nesse ponto, era muito escrupulosa.

A primeira parte da sua lua-de-mel foi uma cadeia de delicias continuas; tanto ele como ela, pouco ou nada trabalharam; a vida dos dois resumira-se, quase que exclusivamente, nos oitos palmos de colch�o novo, que nunca

chegava a esfriar de todo. Jamais a exist�ncia pareceu t�o boa e corredia para o portugu�s; aqueles primeiros dias fugiram-lhe como estrofes seguidas de uma deliciosa can��o de amor, apenas espacejada pelo estribilho dos beijos em dueto; foi um prazer prolongado e amplo, bebido sem respirar, sem abrir os olhos, naquele colo carnudo e dourado da mulata, a que o cavouqueiro se abandonara como um b�bedo que adormece abra�ado a um garraf�o inesgot�vel de vinho gostoso.

Estava completamente mudado. Rita apagara-lhe a �ltima r�stia das recorda��es da p�tria; secou, ao calor dos seus l�bios grossos e vermelhos, a derradeira l�grima de saudade, que o desterrado lan�ou do cora��o com o extremo arpejo que a sua guitarra suspirou!

A guitarra! substituiu-a ela pelo viol�o baiano, e deu-lhe a ele uma rede, um cachimbo, e embebedou-lhe os sonhos de amante prostrado com as suas cantigas do norte, tristes, deleitosas, em que h� caboclinhos curupiras, que no sert�o v�m pitar � beira das estradas em noites de lua clara, e querem que todo o viajante que vai passando lhes ceda fumo e cacha�a, sem o que, ai deles! o curupira transforma-os em bicho-do-mato. E deu-lhe do seu comer da Bahia, temperado com fogoso azeite-de-dend�, cor de brasa; deu-lhe das suas muquecas escandescentes, de fazer chorar, habituou-lhe a carne ao cheiro sensual daquele seu corpo de cobra, lavado tr�s vezes ao dia e tr�s vezes perfumado com ervas arom�ticas.

O portugu�s abrasileirou-se para sempre; fez-se pregui�oso, amigo das extravag�ncias e dos abusos, luxurioso e ciumento; fora-se-lhe de vez o esp�rito da economia e da ordem; perdeu a esperan�a de enriquecer, e deu-se todo, todo inteiro, � felicidade de possuir a mulata e ser possu�do s� por ela, s� ela, e mais ningu�m.

A morte do Firmo n�o vinha nunca a toldar-lhes o gozo da vida; quer ele, quer a amiga, achavam a coisa muito natural. "O fac�nora matara tanta gente; fizera tanta maldade; devia, pois, acabar como acabou! Nada mais justo! Se n�o fosse Jer�nimo, seria outro! Ele assim o quis- bem feito!"

Por esse tempo, Piedade de Jesus, sem se conformar com a aus�ncia do marido, chorava o seu abandono e ia tamb�m agora se transformando de dia para dia, vencida por um desmazelo de chumbo, uma dura desesperan�a, a que nem as l�grimas bastavam para ado�ar as agruras. A principio, ainda a pobre de Cristo tentou resistir com coragem �quela viuvez pior que essa outra, em que h�, para elemento de resigna��o, a certeza de que a pessoa amada nunca mais ter� olhos para cobi�ar mulheres, nem boca para pedir amores; mas depois come�ou a afundar sem resist�ncia na lama do seu desgosto, covardemente, sem forcas para iludir-se com uma esperan�a f�tua, abandonando-se ao abandono, desistindo dos seus princ�pios, do seu pr�prio car�ter, sem se ter j� neste mundo na conta de alguma coisa e continuando a viver somente porque a vida era teimosa e n�o queria deix�-la ir apodrecer l� embaixo, por uma vez. Deu para desleixar-se no servi�o; as suas freguesas de roupa come�aram a reclamar; foi-lhe fugindo o trabalho pouco a pouco; fez-se madra�a e moleirona, precisando j� empregar grande esfor�o para n�o bulir nas economias que Jer�nimo lhe deixara, porque isso devia ser para a filha, aquela pobrezita orfanada antes da morte dos pais.

Um dia, Piedade levantou-se queixando-se de dores de cabe�a, zoada nos ouvidos e o est�mago embrulhado; aconselharam-lhe que tomasse um trago de parati. Ela aceitou o conselho e passou melhor. No dia seguinte repetiu a dose; deu-se bem com a perturba��o em que a punha o �lcool, esquecia-se um pouco durante algum tempo das amofina��es da sua vida; e, gole a gole, habituara-se a beber todos os dias o seu meio martelo de aguardente, para enganar os pesares.

Agora, que o marido j� n�o estava ali para impedir que a filha pusesse os p�s no corti�o, e agora que Piedade precisava de consolo, a pequena ia passar os domingos com ela. Sa�ra uma crian�a forte e bonita; puxara do pai o vigor f�sico e da m�e a express�o bondosa da fisionomia. J� tinha nove anos.

Eram esses agora os �nicos bons momentos da pobre mulher, esses que ela passava ao lado da filha. Os antigos moradores da estalagem principiavam a distinguir a menina com a mesma predile��o com que amavam Pombinha, porque em toda aquela gente havia uma necessidade moral de eleger para mimoso da sua ternura um entezinho delicado e superior, a que eles privilegiavam respeitosamente, como s�ditos a um pr�ncipe. Crismaram-na logo com o cognome de "Senhorinha".

Piedade, apesar do procedimento do marido, ainda no intimo se impressionava com a id�ia de que n�o devia contrari�-lo nas suas disposi��es de pai. "Mas que mal tinha que a pequena fosse ali? Era uma esmola que fazia � m�e! L� pelo risco de perder-se... Ora adeus, s� se perdia quem mesmo j� nascera para a perdi��o! A outra n�o se conservara s� e pura? n�o achara noivo? n�o casara e n�o vivia dignamente com o seu marido? Ent�o?!" E Senhorinha continuou a ir � estalagem, a principio nos domingos pela manh�, para voltar � tarde, depois j� de v�spera, nos s�bados, para s� tornar ao col�gio na segunda-feira.

Jer�nimo ao saber disto, por interm�dio da professora, revoltou-se no primeiro �mpeto, mas, pensando bem no caso, achou que era justo deixar � mulher aquele consolo. "Coitada! devia viver bem aborrecida da sorte!" Tinha ainda por ela um sentimento compassivo, em que a melhor parte nascera com o remorso. "Era justo, era! que a pequena aos domingos e dias santos lhe fizesse companhia!" E ent�o, para ver a filha, tinha que ir ao col�gio nos dias de semana. Quase sempre levava-lhe presentes de doce, frutas, e perguntava-lhe se precisava de roupa ou de cal�ado. Mas, um belo dia, apresentou-se t�o �brio, que a diretora lhe negou a entrada. Desde essa ocasi�o, Jer�nimo teve vergonha de l� voltar, e as suas visitas � filha tornaram-se muito raras.

Tempos depois, Senhorinha entregou � m�e uma conta de seis meses da pens�o do col�gio, com uma carta em que a diretora negava-se a conservar a menina, no caso que n�o liquidassem prontamente a divida. Piedade levou as m�os � cabe�a: "Pois o homem j� nem o ensino da pequena queria dar?! Que lhe valesse Deus! onde iria ela fazer dinheiro para educar a filha?! "

Foi � procura do marido; j� sabia onde ele morava. Jer�nimo recusou-se, por vexame; mandou dizer que n�o estava em casa. Ela insistiu; declarou que n�o arredaria dali sem lhe falar; disse em voz bem alta que n�o ia l� por ele, mas pela filha, que estava arriscada a ser expulsa do col�gio; ia para saber que destino lhe havia de dar, porque agora a pequena estava muito taluda para ser enjeitada na roda!

Jer�nimo apareceu afinal, com um ar triste de vicioso envergonhado que n�o tem animo de deixar o vicio. A mulher, ao v�-lo, perdeu logo toda a energia com que chegara e comoveu-se tanto, que as l�grimas lhe saltaram dos olhos �s primeiras palavras que lhe dirigiu. E ele abaixou os seus e fez-se l�vido defronte daquela figura avelhantada, de peles vazias, de cabelos sujos e encanecidos. N�o lhe parecia a mesma! Como estava mudada! E tratou-a com brandura, quase a pedir-lhe perd�o, a voz muito espremida no aperto da garganta.

- Minha pobre velha... balbuciou, pousando-lhe a m�o larga na cabe�a.

E os dois emudeceram um defronte do outro, arquejantes. Piedade sentiu �nsias de atirar-se-lhe nos bra�os, possu�da de imprevista ternura com aquele simples afago do seu homem. Um s�bito raio de esperan�a iluminou-a toda por dentro, dissolvendo de relance os negrumes acumulados ultimamente no seu cora��o. Contava n�o ouvir ali sen�o palavras duras e �speras, ser talvez repelida grosseiramente, insultada pela outra e coberta de rid�culo pelos novos companheiros do marido; mas, ao encontr�-lo tamb�m triste e desgostoso, sua alma prostrou-se reconhecida; e, assim que Jer�nimo, cujas l�grimas corriam j� silenciosamente, deixou que a sua m�o fosse descendo da cabe�a ao ombro e depois � cintura da esposa, ela desabou, escondendo o rosto contra o peito dele, numa explos�o de solu�os que lhe faziam vibrar o corpo inteiro.

Por algum tempo choraram ambos abra�ados.

- Consola-te! que queres tu?... S�o desgra�as!... disse o cavouqueiro afinal, limpando os olhos. Foi como se eu tivesse te morrido... mas podes ficar certa de que te estimo e nunca te quis mal!... Volta para casa; eu irei pagar o col�gio de nossa filhinha e hei de olhar por ti. Vai, e pede a Deus Nosso Senhor que me perdoe os desgostos que te tenho eu dado!

E acompanhou-a at� o port�o da estalagem.

Ela, sem poder pronunciar palavra, saiu cabisbaixa, a enxugar os olhos no xale de l�, sacudida ainda de vez em quando por um solu�o retardado.

Entretanto, Jer�nimo n�o mandou saldar a conta do col�gio, no dia seguinte, nem no outro, nem durante todo o resto do m�s; e ele, coitado! bem que se mortificou por isso; mas onde ia buscar dinheiro naquela ocasi�o? o seu trabalho mal lhe dava agora para viver junto com a mulata; estava j� alcan�ado nos seus ordenados e devia ao padeiro e ao homem da venda. Rita era desperdi�ada e amiga de gastar � larga; n�o podia passar sem uns tantos regalos de barriga e gostava de fazer presentes. Ele, receoso de contrari�-la e quebrar o ovo da sua paz, at� ai t�o completo com respeito � baiana, subordinava-se calado e afetando at� satisfa��o; no intimo, por�m, o infeliz sofria deveras. A lembran�a constante da filha e da mulher apoquentava-o com pontas de remorso, que dia a dia alastravam na sua consci�ncia, � propor��o que esta ia acordando daquela cegueira. O desgra�ado sentia e compreendia perfeitamente todo o mal da sua conduta; mas s� a id�ia de separar-se da amante punha-lhe logo o sangue doido e apagava-se-lhe de novo a luz dos racioc�nios. "N�o! n�o!! tudo que quisessem, menos isso!"

E ent�o, para fugir �quela voz irrefut�vel, que estava sempre a serrazinar dentro dele, bebia em camaradagem com os companheiros e habituara-se, dentro em pouco, � embriaguez. Quando Piedade, quinze dias depois da sua primeira visita, tornou l�, um domingo, acompanhada pela filha, encontrou-o b�bedo, numa roda de amigos.

Jer�nimo recebeu-as com grande escarc�u de alegria. F�-las entrar. Beijou a pequena repetidas vezes e suspendeu-a pela cintura, soltando exclama��es de entusiasmo.

Com um milh�o de raios! que linda estava a sua morgadinha!

Obrigou-as logo a tomar alguma coisa e foi chamar a mulata; queria que as duas mulheres fizessem as pazes no mesmo instante. Era quest�o decidida!

Houve uma cena de constrangimentos, quando a portuguesa se viu defronte da baiana.

- Vamos! vamos! Abracem-se! Acabem com isso por uma vez! bradava Jer�nimo, a empurr�-las uma contra a outra. N�o quero aqui caras fechadas!

As duas trocaram um aperto de m�o, sem se fitarem. Piedade estava escarlate de vergonha.

- Ora muito bem! acrescentou o cavouqueiro. Agora para a coisa ser completa, h�o de jantar conosco!

A portuguesa op�s-se, resmungando desculpas, que o cavouqueiro n�o aceitou.

- N�o as deixo sair! � boa! Pois hei de deixar ir minha filha sem matar as saudades?

Piedade assentou-se a um canto, impaciente pela ocasi�o de entender-se com o marido sobre o neg�cio do col�gio. Rita, vol�vel como toda a mesti�a, n�o guardava rancores, e, pois, desfez-se em obs�quios com a fam�lia do amigo. As outras visitas sa�ram antes do jantar.

Puseram-se � mesa �s quatro horas e principiaram a comer com boa disposi��o, carregando no virgem logo desde a sopa. Senhorinha destacava-se do grupo; na sua timidez de menina de col�gio parecia, entre aquela gente, triste e assustada ao mesmo tempo. O pai acabrunhava-a com as suas solicitudes brutais e com as suas perguntas sobre os estudos. � exce��o dela, todos os outros estavam, antes da sobremesa, mais ou menos chumbados pelo vinho. Jer�nimo, esse estava de todo. Piedade, instigada por ele, esvaziara freq�entes vezes o seu copo e, ao fim do jantar, dera para queixar-se amargamente da vida; foi ent�o que ela, j� com azedume na voz, falou na divida do col�gio e nas amea�as da diretora.

- Ora, filha! disse-lhe o cavouqueiro. Agora est�s tu tamb�m pr�a� com essa mastiga��o! Deixa as tristezas pr�outra vez! N�o nos amargures o jantar!

- Triste sorte a minha!

- Ai, ai! que temos lam�ria!

- Como n�o me hei de queixar, se tudo me corre mal?!

- Sim! Pois se � para isso que aqui vens, melhor ser� n�o tornares c�!... resmungou Jer�nimo, franzindo o sobrolho. Que diabo! com choradeiras nada se endireita! Tenho eu culpa de que sejas infeliz?... Tamb�m o sou e n�o me queixo de Deus!

Piedade abriu a solu�ar.

- A� temos! berrou o marido, erguendo-se e dando urna punhada forte sobre a mesa. E aturem-na! Por mais que um homem se n�o queira zangar, h� de estourar por for�a! Ora bolas!

Senhorinha correu para junto do pai, procurando cont�-lo.

- Sebo! berrou ele, desviando-a. Sempre a mesma coisa! Pois n�o estou disposto a aturar isto! Arre!

- Eu n�o vim c� por passeio!... prosseguiu Piedade entre l�grimas!. Vim c� para saber da conta do col�gio!...

- Pague-a voc�, que tem l� o dinheiro que lhe deixei! Eu � que n�o tenho nenhum!

- Ah! ent�o com que n�o pagas?!

- N�o! Com um milh�o de raios!

- � que �s muito pior do que eu supunha!

- Sim, hein?! Pois ent�o deixe-me c� com toda a minha ruindade e despache o beco! Despache-o, antes que eu fa�a alguma asneira!

- Minha pobre filha! Quem olhar� por ela, Senhor dos Aflitos?!

- A pequena j� n�o precisa de col�gio! deixe-a c� comigo, que nada lhe faltar�!

- Separar-me de minha filha? a �nica pessoa que me resta?!

- � mulher! voc� n�o est� separada dela a semana inteira?... Pois a pequena, em vez de ficar no col�gio, fica aqui, e aos domingos ir� v�-la. Ora a� tem!

- Eu quero antes ficar com minha m�e!... balbuciou a menina, abra�ando-se a Piedade.

- Ah! tamb�m tu, ingrata, j� me fazes guerra?! Pois v�o com todos os diabos! e n�o me tornem c� para me ferver o sangue, que j� tenho de sobra com que arreliar-me!

- Vamos daqui! gritou a portuguesa, travando da filha pelo bra�o. Maldita a hora em que vim c�!

E as duas, m�e e filha, desapareceram; enquanto Jer�nimo, passeando de um para outro lado, monologava, furioso sob a fermenta��o do vinho.

Rita n�o se metera na contenda, nem se mostrara a favor de nenhuma das partes. "O homem, se quisesse voltar para junto da mulher, que voltasse! Ela n�o o prenderia, porque amor n�o era obrigado!"

Depois de falar s� por muito espa�o, o cavouqueiro atirou-se a uma cadeira, despejou sombrio dois dedos de laranjinha num copo e bebeu-os de um trago.

- Arre! Assim tamb�m n�o!

A mulata ent�o aproximou-se dele, por detr�s; segurou-lhe a cabe�a entre as m�os e beijou-o na boca, arredando com os l�bios a espessura dos bigodes.

Jer�nimo voltou-se para a amante, tomou-a pelos quadris e assentou-a em cheio sobre as suas coxas.

- N�o te rales, meu bem! disse ela, afagando-lhe os cabelos. J� passou!

- Tens raz�o! besta fui eu em deix�-la p�r p� c� dentro de casa!

E abra�aram-se com �mpeto, como se o breve tempo roubado pelas visitas fosse uma interrup��o nos seus amores.

L� fora, junto ao port�o da estalagem, Piedade, com o rosto escondido no ombro da filha, esperava que as l�grimas cedessem um pouco, para as duas seguirem o seu destino de enxotadas.

XX

Chegaram a casa �s nove horas da noite. Piedade levava o cora��o feito em lama; n�o dera palavra por todo o caminho e logo que recolheu a pequena, encostou-se � c�moda, solu�ando.

Estava tudo acabado! Tudo acabado!

Foi � garrafa de aguardente, bebeu uma boa por��o; chorou ainda, tornou a beber, e depois saiu ao p�tio, disposta a parasitar a alegria dos que se divertiam l� fora.

A das Dores tivera jantar de festa; ouviam-se as risadas dela e a voz avinhada e grossa do seu homem, o tal sujeito do com�rcio, abafadas de vez em quando pelos berros da Machona, que ralhava com Agostinho. Em diversos pontos cantavam e tocavam a viola.

Mas o corti�o j� n�o era o mesmo; estava muito diferente; mal dava id�ia do que fora. O p�tio, como Jo�o Rom�o havia prometido, estreitara-se com as edifica��es novas; agora parecia uma rua, todo cal�ado por igual e iluminado por tr�s lampi�es grandes simetricamente dispostos. Fizeram-se seis latrinas, seis torneiras de �gua e tr�s banheiros. Desapareceram as pequenas hortas, os jardins de quatro a oito palmos e os imensos dep�sitos de garrafas vazias. � esquerda, at� onde acabava o pr�dio do Miranda, estendia-se um novo correr de casinhas de porta e janela, e da� por diante, acompanhando todo o lado do fundo e dobrando depois para a direita at� esbarrar no sobrado de Jo�o Rom�o, erguia-se um segundo andar, fechado em cima do primeiro por uma estreita e extensa varanda de grades de madeira, para a qual se subia por duas escadas, uma em cada extremidade. De cento e tantos, a numera��o dos c�modos elevou-se a mais de quatrocentos; e tudo caiadinho e pintado de fresco; paredes brancas, portas verdes e goteiras encarnadas. Poucos lugares havia desocupados. Alguns moradores puseram plantas � porta e � janela, em meias tinas serradas ou em vasos de barro. Albino levou o seu capricho at� � cortina de labirinto e ch�o forrado de esteira. A casa dele destacava-se das outras; era no andar de baixo, e c� de fora via-se-lhe o papel vermelho da sala, a mob�lia muito brunida, jarras de flores sobre a c�moda, um lavat�rio com espelho todo cercado de rosas artificiais, um orat�rio grande, resplandecente de palmas douradas e prateadas, toalhas de renda por toda a parte, num luxo de igreja, casquilho e defumado. E ele, o p�lido lavadeiro, sempre com o seu len�o cheiroso � volta do pescocinho, a sua cal�a branca de boca larga, o seu cabelo mole caldo por detr�s das orelhas bambas, preocupava-se muito em arrumar tudo isso, eternamente, como se esperasse a cada instante a visita de um estranho. Os companheiros de estalagem elogiavam-lhe aquela ordem e aquele asseio; pena era que lhe dessem as formigas na cama! Em verdade, ningu�m sabia por que, mas a cama de Albino estava sempre coberta de formigas. Ele a destru�-las, e o dem�nio do bichinho a multiplicar-se cada vez mais e mais todos os dias. Uma campanha desesperadora, que o trazia triste, aborrecido da vida. Defronte justamente ficava a casa do Bruno e da mulher, toda mobiliada de novo, com um grande candeeiro de querosene em frente � entrada, cujo rev�rbero parecia olhar desconfiado l� de dentro para quem passava c� no p�tio. Agora, entretanto, o casal vivia em santa paz. Leoc�dia estava discreta; sabia-se que ela dava ainda muito que fazer ao corpo sem o concurso do marido, mas ningu�m dizia quando, nem onde. O Alexandre jurava que, ao entrar ou sair fora de horas, nunca a pilhara no vicio; e a esposa, a Augusta Carne-Mole, ia mais longe na defesa, porque sempre tivera pena de Leoc�dia, pois entendia que aquele assanhamento por homem n�o era maldade dela; era praga de algum boca do diabo que a quis e a pobrezinha n�o deixou. - Estava-se vendo disso todos os dias!- tanto que ultimamente, depois que a criatura pediu a um padre um pouco de �gua benta e benzeu-se com esta em certos lugares, o fogo desaparecera logo, e ela ai vivia direita e s�ria que n�o dava que falar a ningu�m! Augusta ficara com a fam�lia numa das casinhas do segundo andar, � direita; estava gr�vida outra vez; e � noite via-se o Alexandre, sempre muito circunspecto, a passear ao comprido da varanda, acalentando uma criancinha ao colo, enquanto a mulher dentro de casa cuidava de outras. A filharada crescia-lhes, que metia medo. "Era um no papo outro no saco!" Moravam agora tamb�m desse lado os dois c�mplices de Jer�nimo, o Pataca e o Z� Carlos, ocupando juntos o mesmo c�modo; defronte da porta tinham um fog�ozinho e um fogareiro, em que preparavam eles mesmos a sua comida. Logo adiante era o quarto de um empregado do correio, pessoa muito calada, bem vestida e pontual no pagamento; saia todas as manh�s e voltava �s dez da noite invariavelmente; aos domingos s� ia � rua para comer, e depois fechava-se em casa e, houvesse o que houvesse no corti�o, n�o punha mais o nariz de fora. E, assim como este, notavam-se por �ltimo na estalagem muitos inquilinos novos, que j� n�o eram gente sem gravata e sem meias. A feroz engrenagem daquela m�quina terr�vel, que nunca parava, ia j� lan�ando os dentes a uma nova camada social que, pouco a pouco, se deixaria arrastar inteira l� para dentro. Come�avam a vir estudantes pobres, com os seus chap�us desabados, o palet� fouveiro, uma pontinha de cigarro a queimar-lhes a penugem do bu�o, e as algibeiras muito cheias, mas s� de versos e jornais; surgiram cont�nuos de reparti��es p�blicas, caixeiros de botequim, artistas de teatro, condutores de bondes, e vendedores de bilhetes de loteria. Do lado esquerdo, toda a parte em que havia varanda foi monopolizada pelos italianos; habitavam cinco a cinco, seis a seis no mesmo quarto, e notava-se que nesse ponto a estalagem estava j� muito mais suja que nos outros. Por melhor que Jo�o Rom�o reclamasse, formava-se ai todos os dias uma esterqueira de cascas de melancia e laranja. Era uma comuna ruidosa e porca a dos dem�nios dos mascates! Quase que se n�o podia passar l�, tal a acumula��o de tabuleiros de lou�a e objetos de vidro, caixas de quinquilharia, molhos e molhos de vasilhame de folha-de-flandres, bonecos e castelos de gesso, realejos, macacos, o diabo! E tudo isso no meio de um fedor nauseabundo de coisas podres, que empesteava todo o corti�o. A parte do fundo da varanda era asseada felizmente e destacava-se pela profus�o de p�ssaros que l� tinham, entre os quais sobressaia uma arara enorme que, de espa�o a espa�o, soltava um formid�vel sibilo

estridente e rouco. Por debaixo ficava a casa da Machona, cuja porta, como a janela, Nenen trazia sempre enfeitada de tinhor�es e beg�nias. O pr�dio do Miranda parecia ter recuado alguns passos, perseguido pelo batalh�o das casinhas da esquerda, e agora olhava a medo, por cima dos telhados, para a casa do vendeiro, que l� defronte erguia-se altiva, desassombrada, o ar sobranceiro e triunfante. Jo�o Rom�o conseguira meter o sobrado do vizinho no chinelo; o seu era mais alto e mais nobre, e ent�o com as cortinas e com a mob�lia nova impunha respeito. Foi abaixo aquele grosso e velho muro da frente com o seu largo port�o de cocheira, e a entrada da estalagem era agora dez bra�as mais para dentro, tendo entre ela e a rua um pequeno jardim com bancos e um modesto repuxo ao meio, de cimento, imitando pedra. Fora-se a pitoresca lanterna de vidros vermelhos; foram-se as iscas de f�gado e as sardinhas preparadas ali mesmo � porta da venda sobre as brasas; e na tabuleta nova, muito maior que a primeira, em vez de "Estalagem de S�o Rom�o" lia-se em letras caprichosas:

"AVENIDA S�O ROM�O"

O "Cabe�a-de-Gato" estava vencido finalmente, vencido para sempre; nem j� ningu�m se animava a comparar as duas estalagens. � medida que a de Jo�o Rom�o prosperava daquele modo, a outra deca�a de todo; raro era o dia em que a pol�cia n�o entrava l� e baldeava tudo aquilo a espadeirada de cego. Uma desmoraliza��o completa! Muitos cabe�as-de-gato viraram casaca, passando-se para os carapicus, entre os quais um homem podia at� arranjar a vida, se soubesse trabalhar com jeito em tempo de elei��es. Exemplos n�o faltavam!

Depois da partida de Rita, j� se n�o faziam sambas ao relento com o choradinho da Bahia, e mesmo o cana-verde 35 pouco se dan�ava e cantava; agora o forte eram os forrobod�s dentro de casa, com tr�s ou quatro m�sicos, ceia de caf� com p�o; muita cal�a branca e muito vestido engomado. - E toca a enfiar para ai quadrilhas e polcas ate romper a manh�!

Mas naquele domingo o corti�o estava banzeiro; havia apenas uns grupos magros, que se divertiam com a viola � porta de casa. O melhor, ainda assim, era o da das Dores. Piedade dirigiu-se logo para l�, sombria e cabisbaixa.

- Com o demo! voc� anda agora que nem o boi castrado! exclamou-lhe o Pataca, assentando-se ao lado dela. As tristezas atiram-se para tr�s das costas, criatura de Deus! A vida n�o d� para tanto! O homem deixou-te? Ora sebo! mete-se com outro e p�e o cora��o � larga!

Ela suspirou em resposta, ainda triste; por�m, a garrafa de parati correu a roda, de m�o em m�o, e, � segunda volta, Piedade j� parecia outra. Come�ou a conversar e a tomar interesse no pagode. Da� a pouco era, de todos, a mais animada, falando pelos cotovelos, criticando e arremedando as figuras ratonas da estalagem. O Pataca ria-se, a quebrar a espinha, caindo por cima dela e passando-lhe o bra�o na cintura.

- Voc� ainda � mulher pr�um homem fazer uma asneira!

- Olha pra que lhe deu o �brio! Solta-me a perna, estupor!

O grupo achava gra�a nos dois e aplaudia-os com gargalhadas. E o parati a circular sempre de m�o em m�o. A das Dores n�o descansava um momento; mal vinha de encher a garrafa l� dentro de casa, tinha de voltar outra vez para ench�-la de novo. "Olha que estafa! V�o beber pro diabo!" Afinal apareceu com o garraf�o e pousou-o no meio da roda.

- Querem saber! Empinem por a� mesmo, que j� estou com os quartos doendo de tanto andar de l� pra c�!

Essa noite, a bebedeira de Piedade foi completa. Quando Jo�o Rom�o entrou, de volta da casa do Miranda, encontrou-a a dan�ar ao som de palmas, gritos e risadas, no meio de uma grande tro�a, a saia levantada, os olhos requebrados, a pretender arremedar a Rita no seu choradinho da Bahia. Era a boba da roda. Batiam-lhe palmadas no traseiro e com o p� embara�avam-lhe as pernas, para a ver cair e rebolar-se no ch�o.

O vendeiro, de fraque e chap�u alto, foi direito ao grupo, ent�o muito mais refor�ado de gente, e intimou a todos que se recolhessem. Aquilo j� n�o eram horas para semelhante algazarra!

- Vamos! Vamos! Cada um para a sua casa!

Piedade foi a �nica que protestou, reclamando o seu direito de brincar um pouco com os amigos.

Que diabo! n�o estava fazendo mal a ningu�m!

- Ora v� mas � pra cama cozer a mona! vituperou-lhe Jo�o Rom�o, repelindo-a. Voc�, com uma filha quase mulher, n�o tem vergonha de estar aqui a servir de palha�o?! Forte b�bada!

Piedade assomou-se com a descompostura, quis despicar-se, chegou a arrega�ar as mangas e sungar a saia; mas o Pataca meteu-se no meio e conteve-a, pedindo a Jo�o Rom�o que n�o levasse aquilo em conta, porque era tudo cacha�a.

- Bom, bom, bom! mas aviem-se! Aviem-se!

E n�o se retirou sem ver a roda dissolvida, e cada qual procurando a casa.

Recolheram-se todos em sil�ncio; s� o Pataca e Piedade deixaram-se ficar ainda no p�tio, a discutir o ato do vendeiro. O Pataca tamb�m estava bastante tocado. Ambos reconheciam que lhes n�o convinha demorar-se ali, por�m nenhum dos dois se sentia disposto a meter-se no quarto.

- Voc� tem l� alguma coisa que beber em casa?... perguntou ele afinal.

Ela n�o sabia ao certo; foi ver. Havia meia garrafa de parati e um resto de vinho. Mas era preciso n�o fazer barulho, por�mor da pequena que estava dormindo.

Entraram em ponta de p�s, a falar surdamente. Piedade deu mais luz ao candeeiro.

- Olha agora! Vamos ficar �s escuras! Acabou-se o g�s!

O Pataca saiu, para ir a casa buscar uma vela, e de volta trouxe tamb�m um peda�o de queijo e dois peixes fritos, que levou ao nariz da lavadeira, sem dizer nada. Piedade, aos bordos, desocupou a mesa do engomado e serviu dois pratos. O outro reclamou vinagre e pimenta e perguntou se havia p�o.

- P�o h�. O vinho � que � pouco!

- N�o faz mal! Vai mesmo com a caninha!

E assentaram-se. O corti�o dormia j� e s� se ouviam, no sil�ncio da noite, c�es que ladravam l� fora na rua, tristemente. Piedade come�ou a queixar-se da vida; veio-lhe uma crise de l�grimas e solu�os. Quando p�de falar contou o que lhe sucedera essa tarde, narrou os pormenores da sua ida com a filha � procura do marido, o jantar em comum com a peste da mulata, e afinal a sua humilha��o de vir de l� enxovalhada e corrida.

Pataca revoltou-se, n�o com o procedimento de Jer�nimo, mas com o dela.

Rebaixar-se �quele ponto! com efeito!... Ir procurar o homem l� na casa da outra!... Oh!

- Ele tratou-me bem, quando l� fui da primeira vez... Hoje � que n�o sei o que tinha: s� faltou p�r-me na rua aos pontap�s!

- Foi bem feito! Ainda acho pouco! Devia ter-lhe metido o pau, para voc� n�o ser tola!

- � mesmo!

- Pois n�o! O que n�o falta s�o homens, filha! O mundo � grande! Para um p� doente h� sempre um chinelo velho!- E ferrou-lhe a m�o nas pernas:- Chega-te para mim, que te esqueceras do outro!

Piedade repeliu-o. Que se deixasse de asneiras!

- Asneiras! � o que se leva desta vida!

A pequena acordara l� no quarto e viera descal�a at� � porta da sala de jantar, para espiar o que faziam os dois.

N�o deram por ela.

E a conversa prosseguiu, esquentando a medida que a garrafa de parati se esvaziava. Piedade deu de m�o aos seus desgostos, p�s-se a papaguear um pouco; as l�grimas foram-se-lhe; e ela manducou ent�o com apetite, rindo j� das pilh�rias do companheiro, que continuava a apalpar-lhe de vez em quando as coxas.

Aquelas coisas, assim, sem se esperar, � que tinham gra�a!... dizia ele, excitado e vermelho, comendo com a m�o, a embeber peda�os de peixe no molho das pimentas. Bem tolo era quem se matava!

Depois lembrou que n�o viria fora de prop�sito uma xicrinha de caf�.

- N�o sei se h�, vou ver, respondeu a lavadeira, erguendo-se agarrada � mesa.

E bordejou at� � cozinha, a dar esbarr�es pela direita e pela esquerda.

- Tento no leme, que o mar est� forte! exclamou Pataca, levantando-se tamb�m, para ir ajud�-la.

L� perto do fog�o agarrou-a de s�bito, como um galo abafando uma galinha.

- Larga! repreendeu a mulher, sem for�as para se defender.

Ele apanhou-lhe as fraldas.

- Espera! Deixa!

- N�o quero!

E ria-se por ver a atitude c�mica do Pataca vergado defronte dela.

- Que mal faz?.. Deixa!

- Sai da�, diabo!

E, cambaleando, amparados um no outro, foram ambos ao ch�o.

- Olha que peste! resmungou a desgra�ada, quando o advers�rio conseguiu saciar-se nela. Marraios te partam!

E deixou-se ficar por terra. Ele p�s-se de p� e, ao encaminhar-se para a sala de jantar, sentiu uma ligeira sombra fugir em sua frente. Era a pequena, que fora espiar � porta da cozinha.

Pataca assustara-se.

- Quem anda aqui a correr como gato?... perguntou voltando a ter com Piedade, que permanecia no mesmo lugar, agora quase adormecida.

Sacudiu-a.

- Ol�! Queres ficar ai, � criatura! Levanta-te! Anda a ver o caf�!

E, tentando ergu�-la, suspendeu-a por debaixo dos bra�os. Piedade, mal mudou a posi��o da cabe�a, vomitou sobre o peito e a barriga uma golfada f�tida.

- Olha o demo! resmungou Pataca. Est� que se n�o pode lamber!

E foi preciso arrast�-la at� a cama, que nem uma trouxa de roupa suja. A infeliz n�o dava acordo de si.

Senhorinha acudira, perguntando aflita o que tinha a m�e.

- N�o � nada, filha! explicou o Pataca. Deixe-a dormir, que isso passa! Olha! se h� lim�o em casa passa-lhe um pouco atr�s da orelha, e veras que amanh� acorda fina e pronta pra outra!

A menina desatou a solu�ar.

E o Pataca retirou-se, a dar encontr�es nos trastes, furioso, porque, afinal, n�o tomara caf�.

Sebo!

XXI

Ao mesmo tempo, Jo�o Rom�o, em chinelas e camisola, passeava de um para outro lado no seu quarto novo. Um aposento largo e forrado de azul e branco com florinhas amarelas fingindo ouro; havia um tapete aos p�s da cama, e sobre a peniqueira um despertador de n�quel, e a mob�lia toda era j� de casados, porque o esperto n�o estava para comprar m�veis duas vezes.

Parecia muito preocupado; pensava em Bertoleza que, a essas horas, dormia l� embaixo num v�o de escada, aos fundos do armaz�m, perto da comua.

Mas que diabo havia ele de fazer afinal daquela peste?

E co�ava a cabe�a, impaciente por descobrir um meio de ver-se livre dela.

� que nessa noite o Miranda lhe falara abertamente sobre o que ouvira de Botelho, e estava tudo decidido: Zulmira aceitava-o para marido e Dona Estela ia marcar o dia do casamento.

O diabo era a Bertoleza!...

E o vendeiro ia e vinha no quarto, sem achar uma boa solu��o para o problema.

Ora, que raio de dificuldade armara ele pr�prio para se coser!... Como poderia agora mand�-la passear assim, de um momento para outro, se o dem�nio da crioula o acompanhava j� havia tanto tempo e toda a gente na estalagem sabia disso?

E sentia-se revoltado e impotente defronte daquele tranq�ilo obst�culo que l� estava embaixo, a dormir, fazendo-lhe em sil�ncio um mal horr�vel, perturbando-lhe estupidamente o curso da sua felicidade, retardando-lhe, talvez sem consci�ncia, a chegada desse belo futuro conquistado � for�a de tamanhas priva��es e sacrif�cios! Que ferro!

Mas, s� com lembrar-se da sua uni�o com aquela brasileirinha fina e aristocr�tica, um largo quadro de vit�rias rasgava-se defronte da desensofrida avidez da sua vaidade. Em primeiro lagar fazia-se membro de uma fam�lia tradicionalmente orgulhosa, como era, dito por todos, a de Dona Estela; em segundo lagar aumentava consideravelmente os seus bens com o dote da noiva, que era rica e, em terceiro, afinal, caber-lhe-ia mais tarde tudo o que o Miranda possu�a, realizando-se deste modo um velho sonho que o vendeiro afagava desde o nascimento da sua rivalidade com o vizinho.

E via-se j� na brilhante posi��o que o esperava: uma vez de dentro, associava-se logo com o sogro e iria pouco a pouco, como quem n�o quer a coisa, o empurrando para o lado, at� empolgar-lhe o lagar e fazer de si um verdadeiro chefe da col�nia portuguesa no Brasil; depois, quando o barco estivesse navegando ao largo a todo o pano - tome l� alguns pares de contos de r�is e passe-me para c� o titulo de Visconde!

Sim, sim, Visconde! Por que n�o? e mais tarde, com certeza, Conde! Eram favas contadas!

Ah! ele, posto nunca o dissera a ningu�m, sustentava de si para si nos �ltimos anos o firme prop�sito de fazer-se um titular mais graduado que o Miranda. E, s� depois de ter o titulo nas unhas, � que iria � Europa, de passeio, sustentando grandeza, metendo invejas, cercado de adula��es, liberal, pr�digo, brasileiro, atordoando o mundo velho com o seu ouro novo americano!

E a Bertoleza? gritava-lhe do interior uma voz impertinente.

- � exato! E a Bertoleza?... repetia o infeliz, sem interromper o seu vaiv�m ao comprido da alcova.

Diabo! E n�o poder arredar logo da vida aquele ponto negro; apag�-lo rapidamente, como quem tira da pele uma n�doa de lama! Que raiva ter de reunir aos v�os mais fulgurosos da sua ambi��o a id�ia mesquinha e rid�cula daquela inconfess�vel concubinagem! E n�o podia deixar de pensar no dem�nio da negra, porque a maldita ali estava perto, a rond�-lo amea�adora e sombria; ali estava como o documento vivo das suas mis�rias, j� passadas mas ainda palpitantes. Bertoleza devia ser esmagada, devia ser suprimida, porque era tudo que havia de mau na vida dele! Seria um crime conserv�-la a seu lado! Ela era o torpe balc�o da primitiva bodega; era o aladroado vintenzinho de manteiga em papel pardo; era o peixe trazido da praia e vendido � noite ao lado do fogareiro � porta da taberna; era o frege imundo e a lista cantada das comezainas � portuguesa; era o sono roncado num colch�o f�tido, cheio de bichos; ela era a sua c�mplice e era todo seu mal- devia, pois, extinguir-se! Devia ceder o lagar � p�lida mocinha de m�os delicadas e cabelos perfumados, que era o bem, porque era o que ria e alegrava, porque era a vida nova, o romance solfejado ao piano, as flores nas jarras, as sedas e as rendas, o ch� servido em porcelanas caras; era enfim a doce exist�ncia dos ricos, dos felizes e dos fortes, dos que herdaram sem trabalho ou dos que, a puro esfor�o, conseguiram acumular dinheiro, rompendo e subindo por entre o rebanho dos escrupulosos ou dos fracos. E o vendeiro tinha defronte dos olhos o namorado sorriso da filha do Miranda, sentia ainda a leve press�o do bra�o melindroso que se apoiara ao seu, algumas horas antes, em passeio pela praia de Botafogo; respirava ainda os perfumes da menina, suaves, escolhidos e penetrantes como palavras de amor; nos seus dedos grossos, curtos, �speros e vermelhos, conservava a impress�o da

t�pida car�cia daquela m�ozinha enluvada que, dentro em pouco, nos prazeres garantidos do matrim�nio, afagar-lhe-ia as carnes e os cabelos.

Mas, e a Bertoleza?...

Sim! era preciso acabar com ela! despach�-la! sumi-la por uma vez!

Deu meia-noite no rel�gio do armaz�m. Jo�o Rom�o tomou uma vela e desceu aos fundos da casa, onde Bertoleza dormia. Aproximou-se dela, p� ante p�, como um criminoso que leva uma id�ia homicida.

A crioula estava im�vel sobre o enxerg�o, deitada de lado, com a cara escondida no bra�o direito, que ela dobrara por debaixo da cabe�a. Aparecia-lhe uma parte do corpo nua.

Jo�o Rom�o contemplou-a por algum tempo, com asco.

E era aquilo, aquela miser�vel preta que ali dormia indiferentemente, o grande estorvo da sua ventura!... Parecia imposs�vel!

- E se ela morresse?...

Esta frase, que ele tivera, quando pensou pela primeira vez naquele obst�culo � sua felicidade, tornava-lhe agora ao esp�rito, por�m j� amadurecida e transformada nesta outra:

- E se eu a matasse?

Mas logo um calafrio de pavor correu-lhe por todos os nervos.

Al�m disso, como?... Sim, como poderia despach�-la, sem deixar sinais comprometedores do crime?... Envenenando-a?... Dariam logo pela coisa!... Mat�-la a tiro?... Pior! Lev�-la a um passeio fora da cidade, bem longe e, no melhor da festa, atir�-la ao mar ou por um despenhadeiro, onde a morte fosse infal�vel?... Mas como arranjar tudo isso, se eles nunca passeavam juntos?...

Diabo!

E o desgra�ado ficou a pensar, abstrato, de casti�al na m�o, sem despregar os olhos de cima de Bertoleza, que continuava im�vel, com o rosto escondido no bra�o.

- E se eu a esganasse aqui mesmo?...

E deu, na ponta dos p�s, alguns passos para frente, parando logo, sem deixar nunca de contempl�-la.

Mas a crioula ergueu de improviso a cabe�a e fitou-o com os olhos de quem n�o estava dormindo.

- Ah! fez ele.

- Que �, seu Jo�o?

- Nada. Vim s� ver-te... Cheguei ainda n�o h� muito... Como vais tu? Passou-te a dor do lado?...

Ela meneou os ombros, sem responder ao certo. Houve um sil�ncio entre os dois. Jo�o Rom�o n�o sabia o que dizer e saiu afinal, escoltado pelo imperturb�vel olhar da crioula, que o intimava mesmo pelas costas.

- Teria desconfiado? pensou o miser�vel, subindo de novo para o quarto. Qual! Desconfiar de qu�?...

E meteu-se logo na cama, disposto a n�o pensar mais nisso e dormir incontinenti. Mas o seu pensamento continuou rebelde a parafusar sobre o mesmo assunto.

- � preciso despach�-la! � preciso despach�-la quanto antes, seja l� como for! Ela, at� agora, n�o deu ainda sinal de si; n�o abriu o bico a respeito da quest�o; mas, Dona Estela est� a marcar o dia do casamento; n�o levar� muito tempo para isso... o Miranda naturalmente comunica a noticia aos amigos... o fato corre de boca em boca... chega aos ouvidos da crioula e esta, vendo-se abandonada, estoura! estoura com certeza! E agora o ver�s! Como deve ser bonito, hein?... Ir t�o bem at� aqui e esbarrar na oposi��o da negra!... E os coment�rios depois!... O que n�o dir�o os invejosos l� da pra�a?... "Ah, ah! ele tinha em casa uma amiga, uma preta imunda com quem vivia! Que tipo! Sempre h� de mostrar que e gentinha de laia muito baixa!... E aqui a engazopar-nos com uns ares de capitalista que se trata � vela de libra! Olha o carapicu pra que havia de dar. Sai sujo!" E, ent�o, a fam�lia da menina, com medo de cair tamb�m na boca do mundo, volta atr�s e d� o dito por n�o dito! Bem sei que ela est� a par de tudo; isso, ol�, se est�! mas finge-se desentendida, porque conta, e com raz�o, que eu n�o serei t�o parvo que espere o dia do casamento sem ter dado sumi�o � negra! contam que a coisa correr� sem o menor esc�ndalo! E eu, no entanto, t�o besta que nada fiz! E a peste da crioula est� ai senhora do terreiro como dantes, e n�o descubro meio de ver-me livre dela!... Ora j� se viu como arranjei semelhante entala��o?... Isto contado n�o se acredita!

E pisava e repisava o caso, sem achar meio de dar-lhe sa�da!

Diabo!

- Ela h� muito que devia estar longe de mim... fiz mal em n�o cuidar logo disso antes de mais nada!... Fui um peda�o d�asno! Se eu a tivesse despachado logo, quando ainda se n�o falava no meu casamento, ningu�m desconfiaria da hist�ria: "Por que diabo iria o pobre homem dar cabo de uma mulher, com quem vivia na melhor paz e que era at�, dentro de casa, o seu bra�o direito?..." Mas agora, depois de todas aquelas reformas de vida; depois da separa��o das camas, e principalmente depois que corresse a noticia do casamento, n�o faltaria decerto quem o acusasse, se a negra aparecesse morta de repente!

Diabo!

Deram quatro horas, e o desgra�ado nada de pregar olho; continuava a matutar sobre o assunto, virando-se de um para outro lado da sua larga e rangedora cama de casados. S� pelo abrir da aurora, conseguiu passar pelo sono; mas, logo �s sete da manh�, teve de p�r-se a p�: o corti�o estava todo alvoro�ado com um desastre.

A Machona lavava � sua tina, ralhando e discutindo como sempre, quando dois trabalhadores, acompanhados de um ruidoso grupo de curiosos, trouxeram-lhe sobre uma t�bua o cad�ver ensang�entado do filho. Agostinho havia ido, segundo o costume, brincar � pedreira com outros dois rapazitos da estalagem; tinham, cabritando pelas arestas do precip�cio, subido a uma altura superior a duzentos metros do ch�o e, de repente, faltara-lhe o equil�brio e o infeliz rolou de l� abaixo, partindo os ossos e atassalhando as carnes.

Todo ele, coitadinho, era uma s� massa vermelha; as canelas, quebradas no joelho, dobravam moles para debaixo das coxas; a cabe�a, desarticulada, abrira no casco e despejava o pir�o dos miolos; numa das m�os faltavam-lhe todos os dedos e no quadril esquerdo via-se-lhe sair uma ponta de osso ralado pela pedra.

Foi um alarma no p�tio quando ele chegou.

Cruzes! que desgra�a!

Albino, que lavava ao lado da Machona, teve uma s�ncope; Nenen ficou que nem doida, porque ela queria muito �quele irm�o; a das Dores imprecou contra os trabalhadores, que deixavam um filho alheio matar-se daquele modo em presen�a deles; a m�e, essa apenas soltou um bramido de monstro apunhalado no cora��o e caiu mesquinha junto do cad�ver, a beij�-lo, vagindo como uma crian�a. N�o parecia a mesma!

As m�es dos outros dois rapazitos esperavam im�veis e l�vidas pela volta dos filhos, e, mal estes chegaram � estalagem, cada uma se apoderou logo do seu e caiu-lhe em cima, a sov�-los ambos que metia medo.

- Mira-te naquele espelho, tenta��o do diabo! exclamava uma delas, com o pequeno seguro entre as pernas a encher-lhe a bunda de chineladas. N�o era aquele que devia ir, eras tu, peste! aquele, coitado! ao menos ajudava a m�e, ganhava dois mil-r�is por m�s regando as plantas do Comendador, e tu, coisa-ruim, s� serves para me dar consumi��es! Toma! Toma! Toma!

E o chinelo cantava entre o berreiro feroz dos dois rapazes.

Jo�o Rom�o chegou ao terra�o de sua casa, ainda em mangas de camisa, e de l� mesmo tomou conhecimento do que acontecera. Contra todos os seus h�bitos impressionou-se com a morte de Agostinho; lamentou-a no intimo, tomado de estranhas condol�ncias.

Pobre pequeno! t�o novo... t�o esperto... e cuja vida n�o prejudicava a ningu�m, morrer assim, desastradamente!... ao passo que aquele diabo velho da Bertoleza continuava agarrado � exist�ncia, envenenando-lhe a felicidade, sem se decidir a despachar o beco!

E o dem�nio da crioula parecia mesmo n�o estar disposta a ir s� com duas raz�es; apesar de triste e acabrunhada, mostrava-se forte e rija. Suas pernas curtas e lustrosas eram duas pe�as de ferro unidas pela culatra, das quais ela trazia um par de balas penduradas em saco contra o peito; as r�seas lustrosas do seu cacha�o lembravam grossos chouri�os de sangue, e na sua carapinha compacta ainda n�o havia um fio branco. Aquilo, arre! tinha vida para o resto do s�culo!

- Mas deixa estar, que eu te despacho bonito e asseado!... disse o vendeiro de si para si, voltando ao quarto para acabar de vestir-se.

Enfiava o colete quando bateram pancadas familiares na porta do corredor.

- Ent�o?! Ainda se est� em val de len��is?...

Era a voz do Botelho.

O vendeiro foi abrir e f�-lo entrar ali mesmo para a alcova.

- Ponha-se a gosto. Como vai voc�?

- Assim. N�o tenho passado l� essas coisas...

Jo�o Rom�o deu-lhe noticia da morte do Agostinho e declarou que estava com dor de cabe�a. N�o sabia que diabo tinha ele aquela noite, que n�o houve meio de pegar direito no sono.

- Calor... explicou o outro. E prosseguiu depois de uma pausa, acendendo um cigarro: pois eu vinha c� falar-lhe... Voc� n�o repare, mas...

Jo�o Rom�o sup�s que o parasita ia pedir-lhe dinheiro e preparou-se para a defesa, queixando-se inopinadamente de que os neg�cios n�o lhe corriam bem; mas calou-se, porque o Botelho acrescentou com o olhar fito nas unhas:

- N�o devia falar nisto... s�o coisas suas l� particulares, em que a gente n�o se mete, mas...

O taberneiro compreendeu logo onde a visita queria chegar e aproximou-se dele, dizendo confidencialmente:

- N�o! Ao contr�rio! fale com franqueza... Nada de receios...

- � que... sim, voc� sabe que eu tenho tratado do seu casamento com a Zulmirinha... L� em casa n�o se fala agora noutra coisa... at� a pr�pria Dona Estela j� est� muito bem disposta a seu favor... mas...

- Desembuche, homem de Deus!

- � que h� um pontinho que � preciso p�r a limpo... Coisa insignificante, mas...

- Mas, mas! voc� n�o desembuchar� por uma vez?... Fale, que diabo!

Um caixeiro do armaz�m apareceu � porta, prevenindo de que o almo�o estava na mesa.

- Vamos comer, disse Jo�o Rom�o. Voc� j� almo�ou?

- Ainda n�o, mas l� em casa contam comigo...

O vendeiro mandou o seu empregado dizer l� defronte � fam�lia do Bar�o que seu Botelho n�o ia ao almo�o. E, sem tomar o casaco, passou com a visita � sala de jantar.

O cheiro ativo dos m�veis, polidos ainda de fresco, dava ao aposento um car�ter insoci�vel de lagar desabitado e por alagar. Os trastes, t�o nus como as paredes, entristeciam com a sua fria nitidez de coisa nova.

- Mas vamos l�! Que temos ent�o?... inquiriu o dono da casa, assentando-se � cabeceira da mesa, enquanto o outro, junto dele, tomava lugar � extremidade de um dos lados.

- � que, respondeu o velho em tom de mist�rio, voc� tem c� em sua companhia uma... uma crioula, que... Eu n�o creio, note-se, mas...

- Adiante!

- �! Dizem que ela � coisa sua... L� em casa rosnou!... O Miranda defende-o, afirma que n�o... Ah! aquilo � uma grande alma! mas Dona Estela, voc� sabe o que s�o as mulheres!... torce o nariz e... Em uma palavra: receio que esta hist�ria nos traga qualquer embara�o!...

Calou-se, porque acabava de entrar um portuguesinho, trazendo uma travessa de carne ensopada com batatas.

Jo�o Rom�o n�o respondeu, mesmo depois que o pequeno saiu; ficou abstrato, a bater com a faca entre os dentes.

- Por que voc� a n�o manda embora?... arriscou o Botelho, despejando vinho no seu e no copo do companheiro.

Ainda desta vez n�o obteve logo resposta; mas o outro tomando, afinal, uma resolu��o, declarou confidencialmente:

- Vou dizer-lhe toda coisa como ela �... e talvez que voc� at� me possa auxiliar!...

Olhou para os lados, chegou mais a sua cadeira para junto da de Botelho e acrescentou em voz baixa:

- Esta mulher meteu-se comigo, quando eu principiava minha vida... Ent�o, confesso... precisava de algu�m nos casos dela, que me ajudasse... e ajudou-me muito, n�o nego! Devo-lhe isso! n�o! ajudar-me ajudou! mas...

- E depois?

- Depois, ela foi ficando para ai; foi ficando... e agora...

- Agora � um trambolho que lhe pode escangalhar a igrejinha! � o que �!

- Sim, que d�vida! pode ser um obst�culo s�rio ao meu casamento! Mas, que diabo! eu tamb�m, voc� compreende, n�o a posso p�r na rua, assim, sem mais aquelas!... Seria ingratid�o, n�o lhe parece?...

- Ela j� sabe em que p� est� o neg�cio?...

- Deve desconfiar de alguma coisa, que n�o � tola!... Eu, c� por mim, n�o lhe toquei em nada...

- E voc� ainda faz vida com ela?

- Qual! h� muito tempo que nem sombras disso...

- Pois, ent�o, meu amigo, � arranjar-lhe uma quitanda em outro bairro; dar-lhe algum dinheiro e... Boa viagem! O dente que j� n�o presta arranca-se fora!

Jo�o Rom�o ia responder, mas Bertoleza assomou � entrada da sala. Vinha t�o transformada e t�o l�vida que s� com a sua presen�a intimidou profundamente os dois. A indigna��o tirava-lhe fa�scas dos olhos e os l�bios tremiam-lhe de raiva. Logo que falou veio-lhe espuma aos cantos da boca.

- Voc� est� muito enganado, seu Jo�o, se cuida que se casa e me atira a toa! exclamou ela. Sou negra, sim, mas tenho sentimentos! Quem me comeu a carne tem de roer-me os ossos! Ent�o h� de uma criatura ver entrar ano e sair ano, a puxar pelo corpo todo o santo dia que Deus manda ao mundo, desde pela manh�zinha at� pelas tantas da noite, para ao depois ser jogada no meio da rua, como galinha podre?! N�o! N�o h� de ser assim, seu Jo�o!

- Mas, filha de Deus, quem te disse que eu quero atirar-te � toa?... perguntou o capitalista.

- Eu escutei o que voc� conversava, seu Jo�o! A mim n�o me cegam assim s�! Voc� � fino, mas eu tamb�m sou! Voc� est� armando casamento com a menina de seu Miranda!

- Sim, estou. Um dia havia de cuidar de meu casamento!... N�o hei de ficar solteiro toda a vida, que n�o nasci para podengo. Mas tamb�m n�o te sacudo na rua, como disseste; ao contr�rio agora mesmo tratava aqui com o seu Botelho de arranjar-te uma quitanda e...

- N�o! Com quitanda principiei; n�o hei de ser quitandeira at� morrer! Preciso de um descanso! Para isso mourejei junto de voc� enquanto Deus Nosso Senhor me deu for�a e sa�de!

- Mas afinal que diabo queres tu?!

- Ora essa! Quero ficar a seu lado! Quero desfrutar o que n�s dois ganhamos juntos! quero a minha parte no que fizemos com o nosso trabalho! quero o meu regalo, como voc� quer o seu!

- Mas n�o v�s que isso � um disparate?... Tu n�o te conheces?... Eu te estimo, filha; mas por ti farei o que for bem entendido e n�o loucuras! Descansa que nada te h� de faltar!... Tinha gra�a, com efeito, que fic�ssemos vivendo juntos! N�o sei como n�o me prop�es casamento!

- Ah! agora n�o me enxergo! agora eu n�o presto para nada! Por�m, quando voc� precisou de mim n�o lhe ficava mal servir-se de meu corpo e ag�entar a sua casa com o meu trabalho! Ent�o a negra servia pra um tudo; agora n�o presta pra mais nada, e atira-se com ela no monturo do cisco! N�o! assim tamb�m Deus n�o manda! Pois se aos c�es velhos n�o se enxotam, por que me h�o de p�r fora desta casa, em que meti muito suor do meu rosto?... Quer casar, espere ent�o que eu feche primeiro os olhos; n�o seja ingrato!

Jo�o Rom�o perdeu por fim a paci�ncia e retirou-se da sala, atirando � amante uma palavrada porca.

- N�o vale a pena encanzinar-se... segredou-lhe o Botelho, acompanhando-o at� a alcova, onde o vendeiro enterrou com toda a for�a o chap�u na cabe�a e enfiou o palet� com a m�o fechada em murro.

- Arre! N�o a posso aturar nem mais um instante! Que v� para o diabo que a carregue! em casa � que n�o me fica!

- Calma, homem de Deus! Calma!

- Se n�o quiser ir por bem, ira por mal! Sou eu quem o diz!

E o vendeiro esfuziou pela escada, levando atr�s de si o velhote, que mal podia acompanh�-lo na carreira. J� na esquina da rua parou e, fitando no outro o seu olhar flamejante, perguntou-lhe:

- Voc� viu?!

- �... resmungou o parasita, de cabe�a baixa, sem interromper os passos.

E seguiram em sil�ncio, andando agora mais devagar; ambos preocupados.

No fim de uma boa pausa, Botelho perguntou se Bertoleza era escrava quando Jo�o Rom�o tomou conta dela.

Esta pergunta trouxe uma inspira��o ao vendeiro. Ia pensando em met�-la como idiota no Hosp�cio de Pedro 11, mas acudia-lhe agora coisa muito melhor: entreg�-la ao seu senhor, restitu�-la legalmente � escravid�o.

N�o seria dif�cil... considerou ele; era s� procurar o dono da escrava, dizer-lhe onde esta se achava refugiada e aquele ir logo busc�-la com a pol�cia.

E respondeu ao Botelho:

- Era e �!

- Ah! Ela � escrava? De quem?

- De um tal Freitas de Melo. O primeiro nome n�o sei. Gente de fora. Em casa tenho as notas.

- Ora! ent�o a coisa � simples!... Mande-a p�ro dono!

- E se ela n�o quiser ir?...

- Como n�o?! A pol�cia a obrigar�! � boa!

- Ela h� de querer comprar a liberdade...

- Pois que a compre, se o dono consentir!... Voc� com isso nada mais tem que ver! E se ela voltar � sua procura, despache-a logo; se insistir, v� ent�o � autoridade e queixe-se! Ah, meu caro, estas coisas, para serem bem feiras, fazem-se assim ou n�o se fazem! Olhe que aquele modo com que ela lhe falou h� pouco � o bastante para voc� ver que semelhante estupor n�o lhe conv�m dentro de casa nem mais um instante! Digo-lhe at�: j� n�o s� pelo fato do casamento, mas por tudo! N�o seja mole!

Jo�o Rom�o escutava, caminhando calado, sem mais vislumbres de agita��o. Tinham chegado � praia.

- Voc� quer encarregar-se disto? prop�s ele ao companheiro, parando ambos � espera do bonde; se quiser pode tratar, que lhe darei uma gratifica��o menos m�...

- De quanto?...

- Cem mil-r�is!

- N�o! dobre!

- Ter�s os duzentos!

- Est� dito! Eu c�, pra tudo que for p�r cobro a relaxamento de negro, estou sempre pronto!

- Pois ent�o logo mais � tarde lhe darei, ao certo, o nome do dono, o lugar em que ele residia quando ela veio para mim e o mais que encontrar a respeito.

- E o resto fica a meu cuidado! Pode d�-la por despachada!

XXII

Desde esse dia Bertoleza fez-se ainda mais concentrada e resmungona e s� trocava com o amigo um ou outro monoss�labo inevit�vel no servi�o da casa. Entre os dois havia agora desses olhares de desconfian�a, que s�o abismos de constrangimento entre pessoas que moram juntas. A infeliz vivia num sobressalto constante; cheia de apreens�es, com medo de ser assassinada; s� comia do que ela pr�pria preparava para si e n�o dormia sen�o depois de fechar-se a chave. � noite o mais ligeiro rumor a punha de p�, olhos arregalados, respira��o convulsa, boca aberta e pronta para pedir socorro ao primeiro assalto.

No entanto, em redor do seu desassossego e do seu mal-estar, tudo ali prosperava forte em grosso, aos contos de r�is, com a mesma febre com que dantes, em torno da sua atividade de escrava trabalhadeira, os vint�ns choviam dentro da gaveta da venda. Durante o dia paravam agora em frente do armaz�m carro�as e carro�as com fardos e caixas trazidos da alf�ndega, em que se liam as iniciais de Jo�o Rom�o; e rodavam-se pipas e mais pipas de vinho e de vinagre, e grandes partidas de barricas de cerveja e de barris de manteiga e de sacos de pimenta. E o armaz�m, com as suas portas escancaradas sobre o p�blico, engolia tudo de um trago, para depois ir deixando sair de novo, aos poucos, com um lucro lind�ssimo, que no fim do ano causava assombros. Jo�o Rom�o fizera-se o fornecedor de todas as tabernas e armarinhos de Botafogo; o pequeno com�rcio sortia-se l� para vender a retalho. A sua casa tinha agora um pessoal complicado de primeiros, segundos e terceiros caixeiros, al�m do guarda-livros, do comprador, do despachante e do caixa; do seu escrit�rio saiam correspond�ncias em v�rias l�nguas e, por dentro das grades de madeira polida, onde havia um bufete sempre servido com presunto, queijo e cerveja, faziam-se largos contratos comerciais, transa��es em que se arriscavam fortunas; e propunham-se negocia��es de empresas e privil�gios obtidos do governo; e realizavam-se vendas e compras de pap�is; e conclu�am-se empr�stimos de juros fortes sobre hipotecas de grande valor. E ali ia de tudo: o alto e o baixo negociante; capitalistas adulados e mercadores falidos; corretores de pra�a, zang�es, cambistas; empregados p�blicos, que passavam procura��o contra o seu ordenado; empres�rios de teatro e fundadores de jornais, em aparos de dinheiro; vi�vas, que negociavam o seu montepio; estudantes, que iam receber a sua mesada; e capatazes de v�rios grupos de trabalhadores pagos pela casa; e, destacando-se de todos, pela quantidade, os advogados e a gente mi�da do foro, sempre inquieta, farisqueira, a meter o nariz em tudo, feia, a papelada debaixo do bra�o, a barba por fazer, o cigarro babado e apagado a um canto da boca.

E, como a casa comercial de Jo�o Rom�o, prosperava igualmente a sua avenida. J� l� se n�o admitia assim qualquer p�-rapado: para entrar era preciso carta de fian�a e uma recomenda��o especial. Os pre�os dos c�modos subiam, e muitos dos antigos h�spedes, italianos principalmente, iam, por economia, desertando para o "Cabe�a-de-Gato" e sendo substitu�dos por gente mais limpa. Decrescia tamb�m o n�mero das lavadeiras, e a maior parte das casinhas eram ocupadas agora por pequenas fam�lias de oper�rios, artistas e praticantes de secretaria. O corti�o aristocratizava-se. Havia um alfaiate logo � entrada, homem s�rio, de su��as que cosia na sua m�quina entre oficiais, ajudado pela mulher, uma lisboeta cor de nabo, gorda, velhusca, com um principio de bigode e cavanhaque, mas extremamente circunspecta; em seguida um relojoeiro calvo, de �culos, que parecia mumificado atr�s da vidra�a em que ele, sem mudar de posi��o, trabalhava, da manh� at� � tarde; depois um pintor de tetos e tabuletas, que levou a fantasia art�stica ao ponto de fazer, a pincel, uma trepadeira em volta da sua porta, onde se viam p�ssaros de v�rias cores e feitios, muito comprometedores para o cr�dito profissional do autor; mais adiante instalara-se um cigarreiro, que ocupava nada menos de tr�s n�meros na estalagem e tinha quatro filhas e dois filhos a fabricarem cigarros, e mais tr�s oper�rias que preparavam palha de milho e picavam e desfiavam tabaco. Florinda, metida agora com um despachante de estrada de ferro, voltara para o S�o Rom�o e trazia a sua casinha em muito bonito p� de limpeza e arranjo. Estava ainda de luto pela m�e, a pobre velha Marciana, que ultimamente havia morrido no hosp�cio dos doidos. Aos domingos o despachante costumava receber alguns camaradas para jantar, e como a rapariga puxava os feitios da Rita Baiana, as suas noitadas acabavam sempre em pagode de dan�a e cantarola, mas tudo de portas adentro, que ali j� se n�o admitiam sambas e chinfrinadas ao relento. A Machona quebrara um pouco de g�nio depois da morte de Agostinho e era agora visitada por um grupo de mo�os do com�rcio, entre os quais havia um pretendente � m�o de Nenen, que se mirrava j� de tanto esperar a seco por marido. Alexandre fora promovido a sargento e empertigava-se ainda mais dentro da sua farda nova, de bot�es que cegavam; a mulher, sempre indiferentemente fecunda e honesta, parecia criar bolor na sua moleza �mida e tinha um ar triste de cogumelo; era vista com freq��ncia a dar de mamar a um pequerrucho de poucos meses, empinando muito a barriga para a frente, pelo h�bito de andar sempre gr�vida. A sua comadre L�onie continuava a visit�-la de vez em quando, aturdindo a atual pacatez daquele cen�bio com as suas roupas gritadoras. Uma ocasi�o em que l� fora, um s�bado � tarde, produzira grande alvoro�o entre os decanos da estalagem, porque consigo levava Pombinha, que se atirara ao mundo e vivia agora em companhia dela.

Pobre Pombinha! no fim dos seus primeiros dois anos de casada j� n�o podia suportar o marido; todavia, a principio, para conservar-se mulher honesta, tentou perdoar-lhe a falta de esp�rito, os gostos rasos e a sua risonha e fatigante palermice de homem sem ideal; ouviu-lhe, resignada, as confid�ncias banais nas horas intimas do matrim�nio; atendeu-o nas suas exig�ncias mesquinhas de ciumento que chora; tratou-o com toda a solicitude, quando ele esteve a decidir com uma pneumonite aguda; procurou afinar em tudo com o pobre rapaz; n�o lhe falou nunca em coisas que cheirassem a luxo, a arte, a est�tica, a originalidade; escondeu a sua mal-educada e natural intui��o pelo que � grande, ou belo, ou arrojado, e fingiu ligar interesse ao que ele fazia, ao que ele dizia, ao que ele ganhava, ao que ele pensava e

ao que ele conseguia com paci�ncia na sua vida estreita de negociante rotineiro; mas, de repente, z�s! faltou-lhe o equil�brio e a m�sera escorregou, caindo nos bra�os de um bo�mio de talento, libertino e poeta, jogador e capoeira. O marido n�o deu logo pela coisa, mas come�ou a estranhar a mulher, a desconfiar dela e a espreit�-la, at� que um belo dia, seguindo-a na rua sem ser visto, o desgra�ado teve a dura certeza de que era tra�do pela esposa, n�o mais com o poeta libertino, mas com um artista dram�tico que muitas vezes lhe arrancara, a ele, sinceras l�grimas de como��o, declamando no teatro em honra da moral triunfante e estigmatizando o adult�rio com a ret�rica mais veemente e indignada.

Ah! n�o p�de iludir-se!... e, a despeito do muito que amava � ingrata, rompeu com ela e entregou-a � m�e, fugindo em seguida para S�o Paulo. Dona Isabel, que sabia j�, n�o desta �ltima falcatrua da filha, mas das outras primeiras, que bem a mortificaram, coitada! desfez-se em l�grimas, aconselhou-a a que se arrependesse e mudasse de conduta; em seguida escreveu ao genro, intercedendo por Pombinha, jurando que agora respondia por ela e pedindo-lhe que esquecesse o passado e voltasse para junto de sua mulher. O rapaz n�o respondeu � carta, e, da� a meses, Pombinha desapareceu da casa da m�e. Dona Isabel quase morre de desgosto. Para onde teria ido a filha?... "Onde est�? onde n�o est�? Procura daqui! procura da�!" S� a descobriu semanas depois; estava morando num hotel com L�onie. A serpente vencia afinal: Pombinha foi, pelo seu pr�prio p�, atra�da, meter-se-lhe na boca. A pobre m�e chorou a filha como morta; mas, visto que os desgostos n�o lhe tiraram a vida por uma vez e, como a desgra�ada n�o tinha com que matar a fome, nem for�as para trabalhar, aceitou de cabe�a baixa o primeiro dinheiro que Pombinha lhe mandou. E, desde ent�o, aceitou sempre, constituindo-se a rapariga no seu �nico amparo da velhice e sustentando-a com os ganhos da prostitui��o. Depois, como neste mundo uma criatura a tudo se acostuma, Dona Isabel mudou-se para a casa da filha. Mas n�o aparecia nunca na sala quando havia gente de fora, escondia-se; e, se algum dos freq�entadores de Pombinha a pilhava de improviso, a infeliz, com vergonha de si mesma, fingia-se criada ou dama de companhia. O que mais a desgostava, e o que ela n�o podia tolerar sem apertos de cora��o, era ver a pequena endemoninhar-se com champanha depois do jantar e p�r-se a dizer tolices e a estender-se ali mesmo no colo dos homens. Chorava sempre que a via entrar �bria, fora de horas, depois de uma orgia; e, de desgosto em desgosto, foi-se sentindo enfraquecer e enfermar, at� cair de cama e mudar-se para uma casa de sa�de, onde afinal morreu.

Agora, as duas cocotes, amigas insepar�veis, terr�veis naquela inquebrant�vel solidariedade, que fazia delas uma s� cobra de duas cabe�as, dominavam o alto e o baixo Rio de Janeiro. Eram vistas por toda a parte onde houvesse prazer; a tarde, antes do jantar, atravessavam o Catete em carro descoberto, com a Juju ao lado; � noite, no teatro, em um camarote de boca chamavam sobre si os velhos conselheiros desfibrados pela pol�tica e �vidos de sensa��es extremas, ou arrastavam para os gabinetes particulares dos hot�is os sensuais e gordos fazendeiros de caf�, que vinham � corte esbodegar o farto produto das safras do ano, trabalhadas pelos seus escravos. Por cima delas duas passara uma gera��o inteira de devassos. Pombinha, s� com tr�s meses de cama franca, fizera-se t�o perita no of�cio como a outra; a sua infeliz intelig�ncia, nascida e criada no modesto lodo da estalagem, medrou logo admiravelmente na lama forte dos v�cios de largo f�lego; fez maravilhas na arte; parecia adivinhar todos os segredos daquela vida; seus l�bios n�o tocavam em ningu�m sem tirar sangue; sabia beber, gota a gota, pela boca do homem mais avarento, todo o dinheiro que a vitima pudesse dar de si. Entretanto, l� na Avenida S�o Rom�o, era, como a mestra, cada vez mais adorada pelos seus velhos e fi�is companheiros de corti�o; quando l� iam, acompanhadas por Juju, a porta da Augusta ficava, como dantes, cheia de gente, que as aben�oava com o seu est�pido sorriso de pobreza heredit�ria e humilde. Pombinha abria muito a bolsa, principalmente com a mulher de Jer�nimo, a cuja filha, sua protegida predileta, votava agora, por sua vez, uma simpatia toda especial, id�ntica � que noutro tempo inspirara ela pr�pria � L�onie. A cadeia continuava e continuaria interminavelmente; o corti�o estava preparando uma nova prostituta naquela pobre menina desamparada, que se fazia mulher ao lado de uma infeliz m�e �bria.

E era, ainda assim, com essas esmolas de Pombinha, que na casa de Piedade n�o faltava de todo o p�o, porque j� ningu�m confiava roupa � desgra�ada, e nem ela podia dar conta de qualquer trabalho.

Pobre mulher! chegara ao extremo dos extremos. Coitada! j� n�o causava d�, causava repugn�ncia e nojo. Apagaram-se-lhe os �ltimos vest�gios do brio; vivia andrajosa, sem nenhum trato e sempre �bria, dessa embriaguez sombria e m�rbida que se n�o dissipa nunca. O seu quarto era o mais imundo e o pior de toda a estalagem; homens malvados abusavam dela, muitos de uma vez, aproveitando-se da quase completa inconsci�ncia da infeliz. Agora, o menor trago de aguardente a punha logo pronta; acordava todas as manh�s apatetada, muito triste, sem animo para viver esse dia, mas era s� correr � garrafa e voltavam-lhe as risadas frouxas, de boca que j� se n�o governa. Um empregado de Jo�o Rom�o, que ultimamente fazia as vezes dele na estalagem, por tr�s vezes a enxotou, e ela, de todas, pediu que lhe dessem alguns dias de espera, para arranjar casa. Afinal, no dia seguinte ao �ltimo em que Pombinha apareceu por l� com L�onie e deixou-lhe algum dinheiro, despejaram-lhe os tarecos na rua.

E a m�sera, sem chorar, foi refugiar-se, junto com a filha, no "Cabe�a-de-Gato" que, � propor��o que o S�o Rom�o se engrandecia, mais e mais ia-se rebaixando acanalhado, fazendo-se cada vez mais torpe, mais abjeto, mais corti�o, vivendo satisfeito do lixo e da salsugem que o outro rejeitava, como se todo o seu ideal fosse conservar inalter�vel, para sempre, o verdadeiro tipo da estalagem fluminense, a legitima, a legend�ria; aquela em que h� um samba e um rolo por noite; aquela em que se matam homens sem a pol�cia descobrir os assassinos; viveiro de larvas sensuais em que irm�os dormem misturados com as irm�s na mesma lama; para�so de vermes, brejo de lodo quente e fumegante, donde brota a vida brutalmente, como de uma podrid�o.

XXIII

� porta de uma confeitaria da Rua do Ouvidor, Jo�o Rom�o, apurado num fato novo de casimira clara, esperava pela fam�lia do Miranda, que nesse dia andava em compras.

Eram duas horas da tarde e um grande movimento fazia-se ali. O tempo estava magn�fico; sentia-se pouco calor. Gente entrava e saia, a passo frouxo, da Casa Pascoal. L� dentro janotas estacionavam de p�, soprando o fumo dos charutos, � espera que desocupassem uma das mesinhas de m�rmore preto; grupos de senhoras, vestidas de seda, faziam lanche com vinho do Porto. Respirava-se um cheiro agrad�vel de ess�ncias e vinagres arom�ticos; havia um rumor quente e garrido, mas bem-educado; namorava-se forte, mas com disfarce, furtando-se olhares no complicado encontro dos espelhos; homens bebiam ao balc�o e outros conversavam, comendo empadinhas junto �s estufas; algumas pessoas liam j� os primeiros jornais da tarde; serventes, muito atarefados, despachavam compras de doces e biscoitos e faziam, sem descansar, pacotes de papel de cor, que os compradores levavam pendurados num dedo. Ao fundo, de um dos lados do sal�o, aviavam-se grandes encomendas de banquetes para essa noite, traziam-se l� de dentro, j� prontas, torres e castelos de balas e trouxas d�ovos e imponentes pe�as de cozinha caprichosamente enfeitadas; criados desciam das prateleiras as enormes baixelas de metal branco, que os companheiros iam embalando em caix�es com papel fino picado. Os empregados das secretarias p�blicas vinham tomar o seu vermute com sif�o; rep�rteres insinuavam-se por entre os grupos dos jornalistas e dos pol�ticos, com o chap�u � r�, �vidos de noticias, uma curiosidade indiscreta nos olhos. Jo�o Rom�o, sem deixar a porta, apoiado no seu guarda-chuva de cabo de marfim, recebia cumprimentos de quem passava na rua; alguns paravam para lhe falar. Ele tinha sorrisos e oferecimentos para todos os lados; e consultava o rel�gio de vez em quando.

Mas a fam�lia do Bar�o surgiu afinal. Zulmira vinha na frente, com um vestido cor de palha justo ao corpo, muito elegante no seu tipo de fluminense p�lida e nervosa; logo depois Dona Estela, grave, toda de negro, passo firme e ar severo de quem se orgulha das suas virtudes e do bom cumprimento dos seus deveres. O Miranda acompanhava-as de sobrecasaca, fitinha ao peito, o colarinho at� ao queixo, botas de verniz, chap�u alto e bigode cuidadosamente raspado. Ao darem com Jo�o Rom�o, ele sorriu e Zulmira tamb�m; s� Dona Estela conservou inalter�vel a sua fria m�scara de mulher que n�o d� verdadeira import�ncia sen�o a si mesma.

O ex-taverneiro e futuro visconde foi, todavia, ao encontro deles, cheio de solicitude, descobrindo-se desde logo e convidando-os com empenho a que tomassem alguma coisa.

Entraram todos na confeitaria e apoderaram-se da primeira mesa que se esvaziou. Um criado acudiu logo e Jo�o Rom�o, depois de consultar Dona Estela, pediu sandu�ches, doces e moscatel de Set�bal. Mas Zulmira reclamou sorvete e licor. E s� esta falava; os outros estavam ainda � procura de um assunto para a conversa; afinal o Miranda que, durante esse tempo contemplava o teto e as paredes, fez algumas considera��es sobre as reformas e novos adornos do sal�o da confeitaria. Dona Estela dirigiu, de m�, a Jo�o Rom�o v�rias perguntas sobre a companhia l�rica, o que confundiu por tal modo ao pobre do homem, que o p�s vermelho e o desnorteou de todo. Felizmente, nesse instante chegava o Botelho e trazia uma noticia: a morte de um sargento no quartel; quest�o entre inferior e superior. O sargento, insultado por um oficial do seu batalh�o, levantara a m�o contra ele, e o oficial ent�o arrancara da espada e atravessara-o de lado a lado. Estava direito! Ah! ele era rigoroso em pontos de disciplina militar! Um sargento levantara a m�o para um oficial superior!... devia ficar estendido ali mesmo, que d�vida!

E faiscavam-lhe os olhos no seu inveterado entusiasmo por tudo que cheirasse a farda. Vieram logo as anedotas an�logas; o Miranda contou um fato id�ntico que se dera vinte anos atr�s e Botelho citou uma enfiada deles intermin�vel.

Quando se levantaram, Jo�o Rom�o deu o bra�o a Zulmira e o Bar�o � mulher, e seguiram todos para o Largo de S�o Francisco, lentamente, em andar de passeio, acompanhados pelo parasita. L� chegados, Miranda queria que o vizinho aceitasse um lugar no seu carro, mas Jo�o Rom�o tinha ainda que fazer na cidade e pediu dispensa do obs�quio. Botelho tamb�m ficou; e, mal a carruagem partiu, este disse ao ouvido do outro, sem tomar f�lego:

- O homem vai hoje, sabe? Est� tudo combinado!

- Ah! vai? perguntou Jo�o Rom�o com interesse, estacando no meio do largo. Ora gra�as! J� n�o � sem tempo!

- Sem tempo! Pois olhe, meu amigo, que tenho suado o topete! Foi uma campanha!

- H� que tempo j� tratamos disto!...

- Mas que quer voc�, se o homem n�o aparecia?... Estava fora! Escrevi-lhe v�rias vezes, como sabe, e s� agora consegui pilh�-lo. Fui tamb�m � pol�cia duas vezes e j� l� voltei hoje; ficou tudo pronto! mas voc� deve estar em casa para entregar a crioula quando eles l� se apresentarem...

- Isso � que seria bom se se pudesse dispensar... Desejava n�o estar presente...

- Ora essa! Ent�o com quem se entendem eles?... N�o! tenha paci�ncia! � preciso que voc� l� esteja!

- Voc� podia fazer as minhas vezes...

- Pior! Assim n�o arranjamos nada! Qualquer d�vida pode entornar o caldo! � melhor fazer as coisas bem feitas. Que diabo lhe custa isto?... Os homenzinhos chegam, reclamam a escrava em nome da lei, e voc� a entrega - pronto! Fica livre dela para sempre, e daqui a dias estoura o champanha do cas�rio! Hein, n�o lhe parece?

- Mas...

- Ela h� de choramingar, fazer lam�rias e coisas, mas voc� p�e-se duro e deixe-a seguir l� o seu destino!... Bolas! n�o foi voc� que a fez negra!...

- Pois vamos l�! creio que s�o horas.

- Que horas s�o?

- Tr�s e vinte.

- Vamos indo.

E desceram de novo a Rua do Ouvidor at� ao ponto dos bondes de Gon�alves Dias.

- O de S�o Clemente n�o est� agora, observou o velho. Vou tomar um copo d��gua enquanto esperamos.

Entraram no botequim do lugar e, para conversar assentados, pediram dois c�lices de conhaque.

- Olhe, acrescentou o Botelho; voc� nem precisa dizer palavra... fa�a como coisa que n�o tem nada com isso, compreende?

- E se o homem quiser os ordenados de todo o tempo em que ela esteve em minha companhia?...

- Como, filho, se voc� n�o a alugou das m�os de ningu�m?!... Voc� n�o sabe l� se a mulher � ou era escrava; tinha-a por livre naturalmente; agora aparece o dono, reclama-a e voc� a entrega, porque n�o quer ficar com o que lhe n�o pertence! Ela, sim, pode pedir o seu saldo de contas; mas para isso voc� lhe dar� qualquer coisa...

- Quanto devo dar-lhe?

- A� uns quinhentos mil-r�is, para fazer a coisa � fidalga.

- Pois dou-lhos.

- E feito isso - acabou-se! O pr�prio Miranda vai logo, logo, ter com voc�! Ver�!

Iam falar ainda, mas o bonde de S�o Clemente acabava de chegar, assaltado por todos os lados pela gente que o esperava. Os dois s� conseguiram lugar muito separados um do outro, de sorte que n�o puderam conversar durante a viagem.

No Largo da Carioca uma vit�ria passou por eles, a todo o trote. Botelho vergou-se logo para tr�s, procurando os olhos do vendeiro, a rir-se com inten��o. Dentro do carro ia Pombinha, coberta de j�ias, ao lado de Henrique; ambos muito alegres, em p�ndega. O estudante, agora no seu quarto ano de medicina, vivia � solta com outros da mesma idade e pagava ao Rio de Janeiro o seu tributo de rapazola rico.

Ao chegarem � casa, Jo�o Rom�o pediu ao c�mplice que entrasse e levou-o para o seu escrit�rio.

- Descanse um pouco... disse-lhe.

- �, se eu soubesse que eles se n�o demoravam muito ficava para ajud�-lo.

- Talvez s� venham depois do jantar, tornou aquele, assentando-se � carteira.

Um caixeiro aproximou-se dele respeitosamente e fez-lhe v�rias perguntas relativas ao servi�o do armaz�m, ao que Jo�o Rom�o respondia por monoss�labos de capitalista; interrogou-o por sua vez e, como n�o havia novidade, tomou Botelho pelo bra�o e convidou-o a sair.

- Fique para jantar. S�o quatro e meia, segredou-lhe na escada.

J� n�o era preciso prevenir l� defronte porque agora o velho parasita comia muitas vezes em casa do vizinho.

O jantar correu frio e contrafeito; os dois sentiam-se ligeiramente dominados por um vago sobressalto. Jo�o Rom�o foi pouco al�m da sopa e quis logo a sobremesa.

Tomavam caf�, quando um empregado subiu para dizer que l� embaixo estava um senhor, acompanhado de duas pra�as, e que desejava falar ao dono da casa.

- Vou j�, respondeu este. E acrescentou para o Botelho: - S�o eles!

- Deve ser, confirmou o velho.

E desceram logo.

- Quem me procura?... exclamou Jo�o Rom�o com disfarce, chegando ao armaz�m.

Um homem alto, com ar de estr�ina, adiantou-se e entregou-lhe uma folha de papel.

Jo�o Rom�o, um pouco tr�mulo, abriu-a defronte dos olhos e leu-a demoradamente. Um sil�ncio formou-se em torno dele; os caixeiros pararam em meio do servi�o, intimidados por aquela cena em que entrava a pol�cia.

- Est� aqui com efeito... disse afinal o negociante. Pensei que fosse livre...

- � minha escrava, afirmou o outro. Quer entregar-ma?...

- Mas imediatamente.

- Onde est� ela?

- Deve estar l� dentro. Tenha a bondade de entrar...

O sujeito fez sina! aos dois urbanos, que o acompanharam logo, e encaminharam-se todos para o interior da casa. Botelho, � frente deles, ensinava-lhes o caminho. Jo�o Rom�o ia atr�s, p�lido, com as m�os cruzadas nas costas.

Atravessaram o armaz�m, depois um pequeno corredor que dava para um p�tio cal�ado, chegaram finalmente � cozinha. Bertoleza, que havia j� feito subir o jantar dos caixeiros, estava de c�coras, no ch�o, escamando peixe, para a ceia do seu homem, quando viu parar defronte dela aquele grupo sinistro.

Reconheceu logo o filho mais velho do seu primitivo senhor, e um calafrio percorreu-lhe o corpo. Num relance de grande perigo compreendeu a situa��o; adivinhou tudo com a lucidez de quem se v� perdido para sempre: adivinhou que tinha sido enganada; que a sua carta de alforria era uma mentira, e que o seu amante, n�o tendo coragem para mat�-la, restitu�a-a ao cativeiro.

Seu primeiro impulso foi de fugir. Mal, por�m, circunvagou os olhos em torno de si, procurando escapula, o senhor adiantou-se dela e segurou-lhe o ombro.

- � esta! disse aos soldados que, com um gesto, intimaram a desgra�ada a segui-los. - Prendam-na! � escrava minha!

A negra, im�vel, cercada de escamas e tripas de peixe, com uma das m�os espalmada no ch�o e com a outra segurando a faca de cozinha, olhou aterrada para eles, sem pestanejar.

Os policiais, vendo que ela se n�o despachava, desembainharam os sabres. Bertoleza ent�o, erguendo-se com �mpeto de anta bravia, recuou de um salto e, antes que algu�m conseguisse alcan��-la, j� de um s� golpe certeiro e fundo rasgara o ventre de lado a lado.

E depois embarcou para a frente, rugindo e esfocinhando moribunda numa lameira de sangue.

Jo�o Rom�o fugira at� ao canto mais escuro do armaz�m, tapando o rosto com as m�os.

Nesse momento parava � porta da rua uma carruagem. Era uma comiss�o de abolicionistas que vinha, de casaca! trazer-lhe respeitosamente o diploma de s�cio benem�rito.

Ele mandou que os conduzissem para a sala de visitas.

FIM

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